Meditando em Terras que Não Nos Pertencem

 

Segundo texto da série memórias de um casal de peregrinos

 

Existe algo sobre viajar que sempre nos atraiu, antes mesmo de adotarmos uma vida de peregrinos. Um estado mental alerta e aberto ao novo. Quando andamos por ruas desconhecidas, ouvimos palavras que não entendemos e observamos hábitos que não são nossos, a tarefa de se cultivar a atenção é facilitada. Claro que nem toda viagem traz isso e que, dependendo do humor e dos condicionamentos de cada um, essa atenção pode ser o gatilho para o estresse e para o descontentamento. Mas se encarada com leveza, é uma condição mental enriquecedora.

De olhos e ouvidos despertos, caminhamos por solos estrangeiros e recepcionamos línguas que não “dominamos”. Os costumes estranhos de terras distantes podem nos ensinar sobre possibilidades de se ser humano de formas diferentes. Por isso, cada vez mais, fui me sentindo levado a crer que a posse, tão buscada e festejada em nosso pequeno mundo, é empobrecedora. “Minha casa”, “minha rua”, “minha cultura”. E, em meio a tantas coisas “minhas”, corro o risco de ficar tão confortavelmente relaxado que posso passar a pensar que não preciso mais observar e escutar. E quem desaprende a usar olhos e ouvidos, logo se pega enraivecido quando entra em contato com uma ideia desconhecida. “Como ousa? ”, então questionaríamos, diante do pensamento que não nos pertence.

Por outro lado, uma vez na estrada, é fácil se deixar seduzir pelo ritmo acelerado de uma vida cheia de novidades e acabar tão ou mais entorpecido do que se estava antes de embarcar. Viajar guarda em si a potencialidade de uma vivaz abertura ao outro, mas é só potencialidade, é preciso um esforço real na direção correta para que elas se concretizem. E a verdade é que todo canto, mesmo, ou talvez principalmente, o “nosso” canto, está cheio de caminhos e ideias que nos escapam.

Quando Siddhartha despertou, ele estava parado, sentado à sombra de uma árvore, e toda verdade que Bodhidharma descobriu estava ali, contida em sua própria natureza, enquanto imóvel encarava, à sua frente, a parede da caverna. Portanto, é um erro pensar que é preciso cruzar oceanos para se praticar o Dharma. Ao mesmo tempo, entretanto, as viagens, as peregrinações, as grandes migrações são partes indissociáveis da história do budismo. Ao abandonar sua vida palaciana, Siddharta vagou em busca de mestres e treinamentos e, após se tornar o Buddha, viajou pelo resto da vida de uma cidade para outra com seus discípulos, se estabelecendo aqui e ali durante as monções indianas; a China só conheceu e desenvolveu o Chan porque Bodhidharma rumou ao oriente; Dogen despertou, “abandonando corpo e mente”, após anos de prática, diariamente voltando para a mesma sala de meditação, no mesmo monastério chinês, para se sentar em seu zafu, mas, antes disso, ele havia deixado o Japão em busca de ensinamentos e depois voltou à sua terra natal para compartilhar suas descobertas.

Os deslocamentos de anônimos também contribuíram para a difusão do Dharma e, junto com os mais diversos produtos, sutras percorreram a Rota da Seda. Bem mais tarde, a diáspora tibetana e a migração japonesa espalharam praticantes, mestres e textos reverenciados pelo mundo. Ao longo do século passado, ocidentais passaram a fazer o caminho oposto indo buscar na Ásia algum contato maior com o que havia chegado até eles pelos livros e pelas palavras dos professores vindos de lá. Há, por exemplo, relatos incríveis como o de Alexandra David-Néel, uma francesa cantora de ópera que foi para o Tibete estudar e viver o budismo, ou o dos ex-soldados britânicos que após a Segunda Guerra Mundial foram para o Sri Lanka e se tornaram os Bhikkhus Nanamoli e Nanavira.

Após nossos primeiros retiros, inspirados por tantas histórias de viajantes e de uma convicção que pareceu surgir do nada e nos dominar, a ideia de irmos para a Ásia estudar e praticar meditação se tornou tão forte que logo nos vimos fazendo pesquisas, lendo livros, entrando em contato com autores de blogs, que relatavam suas experiências asiáticas, e garimpando dicas em fóruns de mochileiros internacionais.

Nosso primeiro destino foi Bangkok. Queríamos conhecer seus famosos templos e usaríamos a cidade como uma base de onde partiríamos para a Thai Plum Village, em Pak Chong, e para a cidade histórica de Ayutthaya, com suas impressionantes ruínas.

A maior dificuldade quando nos afastamos dos centros turísticos é a barreira da língua, mas uma vez que se assuma uma postura atenta e respeitosa, as portas vão se abrindo. Para poder ilustrar isso melhor, a nossa narrativa deixa Bangkok, por ora, e segue para o Norte do país. Daqui, Tamara assume o texto para dividir um pouco da nossa primeira ida a um monastério Theravada da Tradição da Floresta.

Os uivos do cachorro acompanhavam uma pressa disfarçada dos westerners que estavam sempre mais atrasados do que todos os Thais[1] juntos. Eu olhava aquela agitação já em minha almofada, com o livro de cânticos nas mãos, entoando mentalmente o verso Namo Tassa Bhagavato Arahato Samma Sambuddhassa em um ritmo embriagante, que me fazia balançar levemente de um lado para o outro. Cantávamos sempre as estrofes em Pali, depois tailandês e, por fim, inglês – ou o que a maioria dos linguistas aplicados chamariam de World English, por não ser exatamente o inglês “da rainha”, nem dos propriamente colonizados –, antes da última sessão de meditação da noite. E, por fim, despedíamo-nos do Dhamma Hall[2], desejando felicidade e fim do sofrimento a todos os seres, e compartilhando méritos que, porventura, tínhamos alcançado na prática.

Eu ainda falava com o Thomás por mais alguns poucos minutos, antes das luzes serem apagadas. Você escolhe passar o retiro, ou parte dele, sem falar, vestindo um crachá com a palavra “silêncio” em tailandês e inglês. Ia para o kuti[3] cheia de cobertores, porque o frio das montanhas no norte da Tailândia em dezembro não é para qualquer carioca. Com olhos baixos, observava as minhas meias não mais tão brancas, que destoavam da calça, sempre mais alva, comprada no mercado mais local de Chiang Mai a que dois brasileiros perdidos numa tarde conseguiram chegar.

Mangsawerat Kao Soi! – Digo sorrindo, orgulhosa por ter sido entendida.

A garçonete era tão sorridente e comunicativa, que arrisquei pedir mais do que uma comida vegetariana, e engatei algo que gostaria que fosse compreendido como: “onde comprar roupas brancas baratas para monastério Theravada? ”; e, quase uma hora depois, andarilhando, percebi que a sorte estava do nosso lado! Calça e blusa brancas na sacola, uniforme completo dos leigos para o retiro que estávamos prestes a começar.

As mímicas, os objetos ao alcance da mão durante uma conversa e uma boa conexão de internet – hoje, mas não à época – são de grande ajuda para se conseguir driblar o limite linguístico. Percebo, entretanto, que a escuta acolhedora e o olhar respeitoso são, na verdade, o que realmente supera tal obstáculo e faz a comunicação, de fato, ocorrer. Nesse intuito, somos ratos de sebo por onde quer que passemos. Em uma dessas investidas, esbarramos em “Phra Farang[4], um livro que encontramos em Chiang Mai, escrito por um monge britânico, ordenado na tradição Theravada. Enquanto íamos para a segunda missão: descobrir a melhor maneira de chegarmos à rodoviária, o que mais me chamava a atenção eram os inúmeros grupos, trios, pares, de meninos-monges, em seus robes alaranjados que passavam por nós. Entrando e saindo das lojas Seven Eleven, caminhando com seus guarda-chuvas, nas ruas do norte do país, brincalhões, atrapalhados, em idade escolar, eles eram os objetos da minha perscruta. Meu olhar tentava desvendar suas intenções monásticas. O Phra britânico conta que, para grande parte dos homens tailandeses, o monasticismo é quase um fato da vida. Assim, embora haja aqueles que querem se aprofundar nos ensinamentos de Buda, e, eventualmente, se tornarem monges dedicados por toda a vida, existe também a possibilidade de uma ordenação temporária. Nesse último caso, muitas vezes, ela é vista como um rito cultural a partir do qual o garoto deixa de ser um khon dip – “homem imaturo”, em tailandês – e outras como uma maneira de se conquistar mérito para seus progenitores ou de driblar restrições socioeconômicas e ter acesso a alimentação e estudo na juventude.

Em meio a agregados comunicacionais e olhares curiosos, íamos verificando os preços dos red cabs[5] que passeiam pela cidade ao custo de um pouco mais de um dólar, para viagens de até 10 km. Quando percebemos que se alugássemos uma bicicleta cada um, por 24h, economizaríamos a metade disso, pois seria como se pagássemos somente a ida, a dúvida se dissipou. Pedalaríamos até a rodoviária! Este era apenas o começo de um modus operandi que foi o que nos ajudou a prolongar nossa vida na Ásia. Anos depois, na Índia, já não precisávamos nem mais refletir para saber que não pediríamos cada um a sua xícara de cappuccino e que, ainda assim, só reviveríamos esse paladar quinzenalmente.

Durante os 10km do nosso trajeto, em bicicleta sem marcha, reflito sobre minha língua. E, de imediato penso na filóloga francesa Bárbara Cassin quando fala da relação de posse que impomos à língua materna. Ela nos alerta ao fato de que embora nos consideremos “mestres [dela] porque podemos dizer o que queremos [por meio dela], é ela que nos tem porque ela determina nossa maneira de pensar, nosso modo de vida, nossa maneira de ser” (CASSIN, 2012, p. 14-15). E, nesse golpe, ela abre meus pensamentos para questionar a dualidade entre o falante e a língua que o profere.

Uma buzina me alerta para o aqui-agora. Freamos. Usando o poste do semáforo de refúgio. Depois de três respirações, fechamos os olhos, silenciamos, e passamos alguns segundos assim. Dias antes tínhamos estado em um retiro Zen vietnamita em que sem aviso, ou hora marcada, uma badalada de sino indicava hora de parar o que quer que estivéssemos fazendo, para respirar e pensar “cheguei, sou minha casa”. O trânsito em nossas peregrinações sempre foi um desconhecido nosso. Talvez ainda seja, mas lá, em nossa respiração, éramos nossas casas.

Ho Chi Minh, a antiga Saigon, foi nossa primeira maior experiência de falta de preparo cultural para se atravessar uma rua a pé. Depois de muita observação, tentativas e erros, aprendi que o segredo era não driblar os carros, e deixar para eles fazerem esse papel ativo. Segurava a mão do Thomás do mesmo jeito que o abraçaria, no ano seguinte, em meio a uma tempestade de raios que quase destruiu a nossa barraca – que era mais amadora do que seus próprios ocupantes –, quando estávamos acampando a uma altura de 1.900 metros em Moucherotte, na França. Em ambas as situações, dentro de mim, entoava o mantra do apego: “que morramos juntos”. Agora, pedalar em meio ao tsunami de bicicletas, sem ciclovias, era mais uma dessas experiências que fazia necessário o treinamento de passar a cada porta, com a consciência de que não há nenhuma certeza de que por ela se passará novamente.

Entre escolhas de caminho equivocadas, sol escaldante, subidas abruptas em calçadas, motos a dois dedos de nossos guidões, chegamos sem nenhum acidente à rodoviária. Ponto para nós!

Ao longe, identifico a logo da empresa de ônibus que faz o trajeto até – quase – o monastério. “Eu não tenho senão uma língua, e ela não é minha” (DERRIDA, 1996, p. 13). O filósofo franco-magrebino Jacques Derrida me assalta aos berros, enquanto caminho em direção ao guichê. Nós, dois brasileiros, lançando mão do inglês, ou de um inglês, que ali compartilhamos, despimos dele um vínculo de posse, e, atrás do vidro do balcão, a risonha atendente compreende meu papelzinho. Em letras romanas, apresento-lhe o nome do monastério. Gentilmente, toma-o de mim, e escreve no verso algo no alfabeto tailandês – derivado do alfabeto Khmer –, ou seja, nada compreendo. Batendo a ponta da caneta sobre seus escritos, repete três vezes os mesmos sons. Reconheço os sons! É o nome do monastério.

O retiro fica na metade do caminho entre duas cidades. Na cabine de ônibus, você pode comprar a passagem para Pai ou Mae Hon Son, e de lá achar seu segundo transporte, ou, conseguir explicar que quer descer no meio do caminho e pagar somente um ticket, como fizemos, entre risos e thai wais[6].

O dia da viagem chegou. Quando saímos do Brasil, sabíamos que nosso retorno demoraria. A inexperiência, então, fez com que carregássemos o máximo que desse em malas de rodinhas, e não o mínimo do impossível em mochilas. Nessas condições, e em países estrangeiros, um recepcionista de hotel, torna-se seu melhor amigo, com quem você deixa todos os seus pertences até voltar de um retiro, por exemplo. Porém quando, e somente quando, há uma volta. No nosso caso, iríamos sair do retiro nas montanhas e seguir, de lá, de barco, pelo Rio Mekong, até o próximo país.

Três eram as malas. Fomos nos aproximando da Van que dizia Mae Hon Son, e o motorista já nos identificando como seus futuros passageiros, chamou os colegas recostados em outras vans, disse algo, e todos riram. Nós? Sorrimos. Apresentei-lhe o papel escrito pelas mãos da vendedora de passagem, que, para mim, valia mais do que o próprio bilhete de viagem. Para ser sincera, a essa altura, a falta de certeza de que seríamos deixados onde queríamos quase me impulsionava a fazer daquele papel um crachá, ou um chapéu, melhor ainda, uma bandeira. O acenar de cabeça acompanhado do largo sorriso do motorista me fez entrar na van mais confiante. Enquanto isso, Thomás ajudava-o a colocar nossa bagagem em cima da van. Seguimos na fé de que ao findar as próximas 5 horas, as malas ainda estariam lá e nós seríamos levados ao ponto da estrada mais próximo para o trecho final e solitário: uma cainhada de 2km, carregando dois corpos cansados e três malas até a entrada do monastério.

Dez minutos após a partida, dando seta, o motorista diminui a velocidade, e para em um posto de gasolina. Foi encher o tanque. Descobrimos, com a experiência, que não importa, desde transfer para aeroportos a ônibus interestaduais, esse é um procedimento padrão. O passageiro sempre ganha um tour até alguma bomba de combustível. Quase uma hora depois, em meio às subidas e curvas sinuosas. Outra parada. Ele desceu, nós não, e ninguém mais. Dois curiosos e 8 despreocupados a bordo. Subiu tão calado quanto descera. Passei os próximos minutos com as minhas conjecturas: Foi dar um telefonema? Devia estar apertado? Nessas viagens já paro de beber água quase duas horas antes de partir. Meu pai, traumatizado pelas viagens com três crianças e uma esposa que funcionava à base de diuréticos, fez um bom condicionamento com a família.

Duas horas após a partida inicial, de fato, paramos. Motorista abre a porta da van, fala algo, todos descem, nós não. Ele volta. Fala o que acredito ser “15, 15, 15”, em inglês – no inglês dele –, gesticulando e espalmando as mãos; às vezes as duas, às vezes somente uma. A fila do banheiro era gigante: 19 mulheres, todas com cara de estrangeiras, nenhuma tailandesa. Fazendo as contas, pensei: “se todas usarem o banheiro em menos de um minuto, tenho alguma chance de fazer xixi”. Olhando para o início da fila, bem em frente à porta do banheiro, percebi que tailandesas entravam e saíam. “Por que não estão na nossa fila? ”. Pedi que guardassem meu lugar, fui até a porta e tudo se explicou. A tal fila era para a única cabine com a placa “western toilet” (banheiro ocidental)[7]. Mais uma vez minha flexibilidade – mental e corporal – permitiu-me enxergar as coisas de forma diferente. Ponto para nós!

Os 15 minutos se multiplicaram – pois se gastei 2 na fila do banheiro, foi só por desatenção – e pude analisar o balcão de quitutes que estavam à venda. 90% fruta! A manga em palitos me atraiu. Na primeira mordida, as papilas gustativas já riam de mim, ali, mais uma vez, a língua não era minha. Comíamos manga com sal e pimenta. Sem água. Sem água por mais umas 3 horas. Perdemos dois pontos.

Uma língua não é passível de pertencimento”, volta Derrida aos meus pensamentos. Não por natureza, nem por essência. Uma vez li algo que me pareceu muito sábio a se falar sobre a língua que se adjetiva inglesa: “É motivo de grande orgulho e satisfação para os falantes nativos de inglês que sua língua seja um meio internacional de comunicação. Mas a questão é que ela só é internacional na medida em que não é sua língua” (Widdowson, 1994, p. 385 – itálicos meus). E o que é? A cada fala uma impostura; percebo que nada nos é, uma vez que nada somos. Esse agregado de coisas que faz que andemos, falemos, comamos, e interajamos, nada mais é do que pó. E a poeira da van a caminho do monastério vai tapando um pouco as janelas, mas sorrio, apertando a mão do meu companheiro de Dharma. E permanecemos simplesmente sentindo partes da paisagem que apreendemos e que, por fim, é o que fica em nós registrado como a paisagem.

Bud-dho, Bud-dho. A cada respiração, um passo. O abade, quando presente, puxa a fila depois o monge mais velho, os mais experientes, seguidos pelos noviços, e nós. Homens à frente das mulheres. E, assim, a paisagem empoeirada, que vivera há uns 15 dias, era substituída por aquelas montanhas, frescas e úmidas, palco de nossas meditações caminhando. Duas vezes ao dia, após 40 minutos de meditação sentada, saíamos para mais uns 30 de meditação caminhando e, por fim, ainda, meditávamos deitados. As outras meditações do dia eram todas sentadas. Cinco da manhã o dia iniciava com cânticos em “meu” kuti. Às seis, organizávamos os pratos de arroz, para oferecer o alimento aos monges – alms round. Sete, café da manhã (arroz com algum caldo de legumes). Oito, meditávamos e logo após era a palestra sobre a técnica. Almoço – última refeição do dia – às onze. Duas horas depois, mais meditação. Um pouco antes de termos horário livre, para o banho e descanso, limpávamos o monastério. Seis da noite nos sentávamos novamente para os cânticos de sutras, seguidos de mais meditação, findando com a recitação de metabhavana: Sab be, sat ta a-ve ra, su kha je vi no, ka tam, pun nam pa lam, may ham, sab be, pa khi, pa van tu, te…

E assim, por três semanas, vivíamos nossa primeira experiência em um monastério da tradição da floresta. Quando nos demos conta, a meditação ocupava um espaço importante de nossas vidas, espaço que antes era o habitat de outras atividades e vontades. Existem incontáveis caminhos possíveis para se construir uma vida centrada no Dharma, pois há tantas vias, quanto há praticantes. Na nossa história, por uma mistura de acasos, vontades e oportunidades, o desenvolvimento inicial da nossa prática foi totalmente permeado pela experiência de vivermos na Ásia. Sair do “nosso” lugar fez mais fácil a tarefa de abrir mão daquilo que antes considerávamos nossas prioridades. O Dharma só pôde, passo após passo, se deslocar para o centro do nosso dia a dia, quando abandonamos a ideia que tínhamos do que formava um dia normal. Para nós, foi necessário criar uma nova vida, na qual éramos, antes de tudo, estrangeiros, para podermos olhar para nossa existência passada e ver que nada daquilo era inevitável ou insubstituível, que tudo era construído e que, portanto, poderia ser, agora, reconstruído de uma forma enormemente diferente. Esse foi um passo importantíssimo para o amadurecimento de uma crescente sensação de liberdade, pois percebemos que, estranhamente, nos sentíamos mais em casa do que nunca. Nosso lar era, então, constituído pelos alojamentos dos monastérios, ou kutis quando éramos favorecidos pelo acaso, pelas almofadas de meditação, pelas vans que subiam e desciam montanhas em ziguezague, pelos quartos de hóspedes que alugávamos. Renunciamos a um cotidiano velho conhecido para recebermos, em troca, tempo e espaço para a criação e para a descoberta. E isso era só o começo.

 

Texto de Tamara Carneiro, Linguista Aplicada e professora de línguas. Praticante na Daissen Ji, Escola Soto Zen

Thomás Rosa, professor de Teorias da Comunicação e Jornalista.  Praticante na Daissen Ji, Escola Soto Zen.

 

 

Referências

CASSIN, Barbara. Plus d’une langue. Montrouge: Bayard, 2012.

DERRIDA, Jacques. Le monolinguisme de l’autre: ou la prothèse d’origine. Paris: Éditions Galilée, 1996.

PANNAPADIPO, Phra Peter. Phra Farang: An English Monk in Thailand. Uk.  Arrow Books, 2005.

WIDDOWSON, H. G. 1994. ‘The ownership of English’. TESOL Quarterly 28/2: 377–88.

 

 

[1] Na Tailândia, é interessante perceber que há uma divisão bem ampla entre os nativos, que se chamam de “Thai people” (que seria uma tradução direta de povo tailandês) e os “westerners”, os vindos do ocidente. Sendo este último indistintamente europeus, norte-americanos, latino-americanos etc.

[2] Dhamma Hall é como é chamada a sala de meditação, em inglês, na tradição Theravada, uma vez que empregam nomes em pali e não em sânscrito (Dharma).

[3] Um kuṭi é uma pequena cabana onde um monge da tradição da floresta vive e é um dos quatro requisitos básicos dos ordenados na tradição Theravada: mantos monásticos, alimentação, hospedagem e remédios.  Alguns kutis eram oferecidos para que leigos se hospedassem, a maioria, entretanto, ficava em alojamentos, que foi o que aconteceu com o Thomás nas primeiras 2 ou 3 vezes em que fomos para esse monastério.

[4] “Phra” é um pronome de tratamento tailandês usado para se referir a monges. “Farang” é como os thais chamam os estrangeiros, uma corruptela da palavra inglesa “foreign” (adjetivo que significa “não familiar” ou “estrangeiro”).

[5] Os red cabs são caminhonetes vermelhas, usadas como táxis, em que as pessoas se sentam na caçamba, e ao longo do trajeto, o motorista vai pegando e deixando os passageiros.

[6] Assim é chamado o cumprimento tailandês, quando colocamos as palmas das mãos juntas na frente do peito, inclinamos a cabeça e arqueamos levemente o corpo para frente.

[7] Na Tailândia, como no resto do sul asiático, o vaso sanitário que conhecemos no ocidente não é a forma mais comum presente nos banheiros públicos. Embora esse cenário já tenha se transformado bastante desde a nossa primeira ida, ainda assim, em lugares frequentados mais pelos moradores locais do que pelos estrangeiros, a maioria das cabines terão a privada nivelada com o chão, e não na altura de uma cadeira, como no ocidente.

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