É maravilhoso existir. Em tantos bilhões de anos, dentro da infinitude espacial, em um pequeno planeta, condições específicas contribuíram para que moléculas, feitas de átomo, que são formados por partículas, começassem a se unir no nosso planeta e criar a vida. Átomos de tempo incontável. O que é a vida? Nada mais que um conjunto especificamente organizado de partículas. As mesmas partículas que formam planetas, luas, estrelas, rochas, lava… Somos todos partículas advindas de um único corpo celeste, que também teve sua razão de existir.
Somos feitos de poeira de estrelas. Cada átomo do nosso corpo tem a idade do universo.
Um acontecimento evolutivo extremamente raro nos possibilitou, durante milhões de anos, ir aprimorando a organização de nossos átomos até que o ser humano se tornasse viável, com toda a sua complexidade, seus incontáveis minúsculos processos químicos e físicos que nos possibilitam a vida e, ainda mais raro, a consciência.
Só somos a espécie que somos, vivemos como vivemos e pensamos como pensamos pela combinação de inúmeros fatores aleatórios. Temos uma origem complexa. Tudo o que existe tem uma origem, nada surge do nada, nada simplesmente é, nada é mais ou menos importante. Essa é a originação dependente.
Mas temos essa consciência, que nos domina e nos faz pensar que somos o que pensamos, enquanto há tanta maravilha e ordinariedade em um fenômeno natural como o ser humano. É difícil se libertar das amarras da mente. É difícil sair de dentro da própria cabeça pra pertencer ao todo, que é nossa casa.
Sentir o vento, o calor, o movimento do próprio corpo, observar atentamente, ser impactado pelas tantas existências raras ao nosso redor… Isso é estar vivo. Perceber o ar se movendo ao redor de seus braços e pernas quando se movimenta. Saber que somos a mesma coisa, eu e o ar (sim, até mesmo o que chamamos de ar é feito das mesmas partículas!). A água dentro de nós se movimenta. A mesma água que preenche os oceanos. Quando nos movimentamos, tudo se movimenta conosco.
É importante demais se sentar e apenas estar, imóvel e presente, e paralisar o corpo pra que a mente se acalme. Mas, agregado a isso, temos esse corpo que precisa de movimento, e temos essa mente e esse cérebro que nos provocam sensações e sentimentos. Conectar-se com o momento presente e estar ciente das suas ações, posturas, palavras e pensamentos também é possível em movimento. E a dança é uma possibilidade disso.
Quando dançamos, podemos estar alheios ao presente, com a mente ocupada com outras coisas, tentando dançar ao som altíssimo pra mascarar o que sentimos e pensamos, pra fugir da realidade. No entanto, também podemos dançar com o universo. Podemos nos apropriar dos sentimentos e acontecimentos que nos levaram até ali, para que projetemos nosso abdômen pra frente com todo o nosso “eu” fictício e passemos a expressar e diluir tudo isso. Podemos acalmar e compreender sentimentos ruins, ressignificar pensamentos ruins, tentar limpar a mente e apenas se entregar ao movimento, com os átomos que somos e também os pensamentos que não somos, pra tentar encontrar a paz nessa guerra entre o que verdadeiramente somos e o que pensamos que somos.
Tem algo que acho muito interessante na dança que é a nossa relação com a respiração. Ela deve ser sempre harmônica com o que dançamos. Algo tão visceral e tão importante. O ar entrando ou saindo dos nossos pulmões, os movimentos musculares que gastam energia pra auxiliar esse processo quando dançamos, a troca de gases que fazemos com o ambiente, tudo isso é importante ao dançar. Ela confere impulso, leveza, força, precisão. Tudo porque existem átomos no ar que precisam entrar no pulmão pra que possamos permanecer vivos, e porque temos que expelir e devolver átomos dentro de nós que não nos fazem bem, mas são necessários para o funcionamento do todo. Não existe dança fora do espaço, fora da interconexão entre todas as coisas.
Acredito que, quando nos emocionamos com a dança de alguém e somos tocados por aqueles movimentos que expressam tanto, é porque essa pessoa está dançando com o que sente, o que pensa e o que verdadeiramente é. Dança com o universo e acaba que sentimos que quem dança somos nós. Choramos aquele sentimento que pensamos não ser nosso, sabe? Mas o choramos porque é nosso também.
Porque a arte é um meio pra gente se reconectar, pra sermos capazes de sentir o que o outro sente. O outro que na verdade também somos nós. Ou seja, pra sermos capazes de sentir o que verdadeiramente sentimos. Podemos olhar e pensar “nossa, esse dançarino é excepcional”, racionalizando a experiência. Mas aquela sensação de unicidade com aqueles movimentos, aquela música, aquelas expressões faciais e microcontrações musculares que nos tocam tanto, essa sensação naquele exato momento que a cada segundo se constrói e termina, ela é potente para nós.
Por isso dizemos que nossa prática de meditação pode beneficiar a todos os seres. Porque nosso sofrimento é o sofrimento de todos os seres. E, da mesma forma, nossa clareza e domínio da mente, quando alcançadas, também são de todos os seres. O Zen é um caminho individual a ser percorrido. Nossas pernas criam nossa estrada nesse caminho até o rio que devemos atravessar. Mas os resultados dessa experiência são compartilhados com tudo o que existe pelas ações e reações, através de interconexões, por meio desse ser único que somos. Então, tentamos ir reduzindo o sofrimento que existe, para que chegue o dia em que poderemos nos libertar dessa prisão, dessa mente que pensa que é maior do que tudo. Quando isso acontecer, poderemos ser um ser a menos para agregar sofrimento e ruim carma ao universo. A verdadeira liberdade. Não mais buscar “ser”, sozinho e separado de tudo, e mergulhar na nossa verdadeira existência: o todo.
Texto escrito por Angella Monteiro Santiago, da comunidade zen-budista Daissen, Soto Zen.
Fonte das imagens
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