Dos Tatames Para o Zafu: Notas Sobre Jiu Jitsu e Zen

 

Aqui serão apresentadas algumas observações sobre a influência mútua que a prática das artes marciais e do Zen, potencialmente, têm entre si a partir do ponto de vista pessoal de um praticante, sem qualquer pretensão de generalização das experiências e conclusões relatadas. Como é sabido, o universo das artes marciais japonesas foi nutrido por ideias, conceitos e posturas advindas do zen budismo[1].

Os samurais precisavam encarar a verdade de anicca, a impermanência, de forma inelutavelmente mais direta e brutal que os cidadãos comuns. Daí a atração exercida na classe guerreira japonesa pelo Zen com suas lições de desapego, de desenvolvimento da concentração e de “não nascimento” e “não morte”. Além disso, atividades tão variadas quanto a pintura, a poesia, a caligrafia, os arranjos florais, o ato de fazer e beber chá, por exemplo, foram altamente influenciadas e passaram a ser vistas como manifestações do “espírito” zen.

No mundo contemporâneo, as artes marciais, de forma geral, foram transformadas em esportes, deixando os aspectos filosóficos e de treinamento da mente relegados ao segundo plano – isso quando não foram simplesmente esquecidos. Se muito, vemos técnicas de meditação, no estilo mindfulness, sendo usadas pontualmente como mais uma ferramenta em busca de aumento de performance competitiva. Mas de forma geral, existem aspectos do Zen que simplesmente estão tão arraigados à mentalidade das artes marciais que se tornaram indistinguíveis delas.

Desde criança me formei entre lutadores, pratiquei Capoeira e Tae Kwon Do por anos, mas foi no Jiu Jitsu que, na adolescência, encontrei uma arte que me fascinou pela sua eficiência e pela possibilidade de aplicação em situação real sem causar maiores danos ao adversário. Assim, cheguei à chamada Arte Suave e continuei a praticá-la por quase três décadas. De certa maneira, as distinções do Jiu Jitsu japonês para o brasileiro são de natureza próxima às diferenças entre o Karatê da ilha de Okinawa e o do continente japonês. A versão continental japonesa se preocuparia mais com a estética e a precisão formal dos movimentos, enquanto o karatê original de Okinawa ou o Jiu Jitsu adaptado em terras brasileiras buscam a eficiência prática em detrimento da forma.

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A disciplina

Ainda assim, nos meus cerca de 30 anos como artista marcial e 10 como praticante budista, encontrei muitas semelhanças entre os dois universos. A primeira, e mais evidente, é a disciplina. Farei, a seguir, algumas comparações básicas e um tanto quanto superficiais para ilustrar:

Jiu Jitsu: Não se chega atrasado a um treino, por exemplo. Se chegar e tiver uma explicação muito boa, poderá “pagar” o atraso (caso seu professor seja do estilo mais condescendente) com flexões e exercícios extras, caso contrário assistirá à aula do lado de fora, sentado em um banco e sem reclamar. Aliás, nunca se reclama sobre nada com o mestre ou professores assistentes, você apenas obedece.

Zen: não se pode entrar no zendō após o mestre. Uma vez que ele tenha entrado, o praticante atrasado ficará do lado de fora (mesmo que esteja nevando, como acontece em templos japoneses no inverno, como o monge Genshō nos relatou).

Jiu Jitsu: Existe um respeito pelo local de treino e pelos objetos que o envolvem. Cumprimenta-se com uma reverência o tatame quando se sobe nele e quando se sai dele (para, por exemplo, beber água em um intervalo). Trata-se com respeito a própria faixa e a dos companheiros. E um detalhe interessante sobre as faixas é que elas nunca são lavadas, pois seu desgaste deve ser natural e acontecer exclusivamente nos treinos, representando, de tal maneira, o esforço de quem a porta.

Zen: Fazemos reverências na entrada do zendō assim como para o altar, para o zafu, para o oryoki etc. Todo objeto deve ser tratado com o máximo respeito.

Além disso, a relação hierárquica, com seus simbolismos, tão evidente no Zen, também pode ser vista no Jiu Jitsu[2]. O professor, seus assistentes e alunos antigos são cumprimentados em ordem de graduação. Além disso, não se pode nunca chamar um lutador mais graduado para treinar. Ou seja, faixas pretas, por exemplo, só podem ser convidados para um treino por outros faixas pretas e eles, por sua vez, podem chamar qualquer um dos portadores de faixas coloridas (que não devem, em contrapartida, recusar o convite). Outro ponto é que da mesma forma que, no zendō, os praticantes mais antigos se sentam mais próximos dos senseis, na formação que se faz ao final de cada treino existe uma fila que vai do faixa preta mais antigo ao faixa branca recém-chegado.

Treino-em-Sydney-Australia

A equanimidade

Todos esses aspectos formais semelhantes, de alguma maneira, deram desde meus primeiros contatos uma sensação de familiaridade reconfortante no universo zen budista. Mas as conexões mais importantes para mim são internas e menos aparentes. A equanimidade foi um dos pontos que mais desenvolvi nos tatames e que só fui tomar total consciência quando participei dos meus primeiros retiros. Sentado em minha almofada, tentando concentrar minha mente e sofrendo com dores nas pernas, joelhos e costas eu percebi o quanto os anos como lutador me ajudaram a desenvolver a resiliência necessária para continuamente trabalhar o foco da mente sem adicionar ainda mais sofrimento psicológico e emocional às inevitáveis dores físicas.

Treinar Jiu Jitsu é lidar com o desconforto em níveis razoavelmente altos diariamente. Fora isso, não se pode perder a calma. Os leigos (interessante notar que no mundo das lutas costuma-se classificar como leigos os que nunca receberam treinos formais em artes marciais), comumente, pensam que o lutador raivoso e passional levaria algum tipo de vantagem em um confronto, quando a verdade é diametralmente oposta e aquele que consegue se manter mais frio em meio às maiores adversidades será capaz de aplicar melhor suas técnicas. A equanimidade é treinada na mente e no corpo ao mesmo tempo, criando profundas marcas no indivíduo.

Além disso, é preciso se acostumar a apanhar, muitas vezes na frente de muitas outras pessoas, sem se deixar afetar. Existe uma frase exaustivamente repetida: “É preciso deixar o ego fora do tatame”. E esse é outro aspecto pouco vislumbrado pelos de fora: o que mais fazem os melhores lutadores é apanhar. Quanto mais eles se colocam em situações de risco e saem do seu tipo de “jogo”, mais tendem a evoluir.

Treino-em-Paris-com-Kakuji-san

Em algumas situações tenta-se fazer uma “poker face” para que o adversário não perceba o nível de pressão que você está suportando, mas o que verdadeiramente se busca com o treinamento é desenvolver essa quase indiferença à dor e ao desconforto. Após anos suficientes treinando, começa-se a perceber que o esforço e as dores nunca vão passar, eles são parte da condição de se ser um lutador e não somente uma fase antes de se chegar ao seu auge.

Outra frase famosa no meio é “o faixa preta é o faixa branca que não desistiu”. É recorrente que desde que se comece a treinar mais seriamente, almeje-se a faixa preta, mas logo se aprende que toda demonstração de interesse em ser graduado para a próxima faixa será repreendida pelo professor e muitas vezes até punida. Aos poucos, é entendido que quanto mais se tiver dedicação ao processo sem pensar em resultados, maiores as chances de se chegar a eles – e mais agradável será o seu dia a dia de treinos. Na realidade, o praticante com o verdadeiro espírito das artes marciais é o que profundamente não dá importância à própria graduação. Em uma conversa recente com um amigo, um faixa preta de outra modalidade, ele me confidenciou que nunca teve o menor interesse em participar dos “exames” de graduação. Esse deveria ser, portanto, o estado mental a ser alcançado pelo “praticante modelo” do caminho do guerreiro.

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Estar totalmente presente

O professor, com seu tratamento muitas vezes duro, está lhe ajudando a entender que tudo o que existe é o cotidiano de esforços, repetições, pequenas evoluções e recorrentes retrocessos. Qualquer coisa fora disso é pura projeção da ansiedade fantasiosa que costumamos alimentar em nossas vidas, nunca estando contentes com o presente.

A ideia é que se repita tanto determinados movimentos em resposta a diferentes situações, que eles passem a se tornar parte do lutador e aconteçam sem pensar, instantaneamente, quando a hora de usá-los chegar. Quaisquer ansiedades quanto aos resultados dos treinos – assim como ficar remoendo erros ou fazendo comparações com o desempenho de outros – irão bloquear o processo. Quanto antes se entender isso, maiores as chances de se mergulhar verdadeiramente na essência das artes marciais e deixar de se estar apenas praticando um esporte.

Essa mente, disciplinada, treinada para focar no processo e não no resultado, para se entregar sem relutância às repetições e acostumada a lidar com as dores, as aversões, os medos, as ansiedades, os retrocessos e as decepções, pode ajudar na prática espiritual. Nem tudo são vantagens, no entanto, uma vez que o processo de treinos, que lhe coloca diariamente enfrentando adversários, alimenta a ideia de separação e pode mesmo fortalecer o ego e a vaidade. É preciso muito cuidado.

Dando-uma-aula-em-academia-de-Bangkok-na-Tailandia

Autoconhecimento

Foi se tornando crescentemente mais claro como os treinos me proporcionavam um cenário perfeito para o desenvolvimento do autoconhecimento. Monge Genshō sempre nos explica que os sesshins criam uma crise artificial e, assim, aprofundamos a nossa prática. Percebi, pois, que nos tatames também são construídas crises artificiais com as quais temos que lidar diariamente. O Jiu Jitsu, dentro de suas regras, estabelece um enfrentamento no qual todas as suas energias, física e mental, são usadas com o objetivo de “sobreviver” e, se possível, derrotar o adversário. Quando seu adversário encaixa uma finalização, você sinaliza a desistência com três tapas no corpo ou no chão – o que for mais rápido. É um tipo de “jogo” que muitas vezes leva seus participantes a limites psicológicos que não chegariam muito frequentemente no cotidiano. Em um treino de alto nível, não é possível fingir ser quem não se é. Tudo é extremamente objetivo, nada pode negar a realidade dos “três tapinhas”, você foi finalizado, teria sido estrangulado ou, por exemplo, teria seu braço quebrado em uma situação sem as regras.

É criado, assim, um cenário no qual nossos padrões mentais vêm à tona. Nossas imposturas, inseguranças, vaidades são desveladas impiedosamente a cada dia. A pessoa sabe que está se colocando em um território no qual será exigido muito foco quando veste o kimono, amarra a faixa na cintura, reverencia o tatame, depois as fotos de Mitsuyo Maeda[3], Carlos e Hélio Gracie (os fundadores do Jiu Jitsu brasileiro) e o nosso mestre ou professor. A partir daquele momento, o lutador cumprirá ordens, não poderá descansar quando decidir e será colocado à prova diversas vezes antes do encerramento do treino. Após os primeiros anos de prática meditativa, passei a apreciar ainda mais esse ambiente, pois percebia que ele criava uma oportunidade única para conhecer melhor o funcionamento da minha mente e de perceber melhor como lidava com as emoções e hábitos mentais arraigados.

Kakuji-san-fazendo-aula-de-Jiu-Jitsu-e-defesa-pessoal

Conforme o tempo passou, acabei me tornando muito mais um praticante budista do que um lutador. Mas trago comigo muitas coisas boas que as artes marciais me deram junto com as cicatrizes – incluindo algumas que me trazem dor extra no zazen, como meus joelhos operados, com meniscos arrancados e um ligamento reconstruído, e a minha lombar bastante maltratada pelos anos de esforços. Sou muito grato pela disciplina que precisei desenvolver, pela confiança nos processos de transformação advindos dos esforços, pensamentos e ações, pela oportunidade de encarar meus medos e vaidades que me permitiu trabalhar para enfraquecê-los, pela equanimidade diariamente trabalhada no corpo e na mente e pelos treinos para agir de forma espontânea e com a mente o mais vazia possível. Tive o privilégio de ter um professor do mais alto nível técnico e moral, Vinicius Aieta, uma pessoa muito generosa e gentil com todos, ao mesmo tempo em que é exigente e detalhista.

Com-meu-professor-Vinicius-Aieta

Agora que a minha única grande prioridade é o Zen, e que sou guiado pelo meu mestre monge Genshō, o meu trabalho tem sido em grande parte o de desaprender. Ao mesmo tempo em que tento usar tudo de bom que me foi ensinado nas artes marciais, é necessária uma vigilância constante para nunca me deixar esquecer do quão ilusório é o ego. Carrego a história de um lutador, mas trabalho para abrir mão dela também e “esquecer de mim mesmo”, para com isso poder experimentar a verdade de ser um com todo o universo.

 

Texto de

Thomás Muryo 無量, faixa preta de Jiu Jitsu e praticante na Daissen Ji, Escola Soto Zen.

 

[1] Mais sobre o assunto pode ser lido no texto de Monge Chudô: https://www.budismohoje.org.br/zen-e-aikido/

[2] Essas regras variam em maior ou menor grau de acordo com a equipe da qual se faz parte.

[3] Mais conhecido como Conde Koma, o lutador japonês, nascido na cidade de Hirosaki, foi o professor da família Gracie. A partir de seus ensinamentos, Hélio e Carlos elaboraram o chamado “Gracie Jiu Jitsu”, depois chamado de Jiu Jitsu Brasileiro.

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