Estudar a Si mesmo. Mas… que Si Mesmo, Mesmo?

 

Estudar o Zen é estudar a si mesmo, estudar a si mesmo é esquecer de si mesmo, esquecer de si mesmo é ser iluminado por todas as coisas”…

Essa é uma passagem encontrada no Genjōkōan, um dos principais capítulos do Shōbōgenzō, importantíssimo livro do Mestre Dōgen Zenji. Muitos mestres citam-na porque ela é extremamente profunda e sintetiza muito bem o Zen e a natureza do Despertar.

Vou lhe apresentar uma versão que eu adoro e me arriscarei a comentar alguns pontos que são relevantes para mim. Um comentário detalhado desse pequeno parágrafo resultaria em uma tese de doutorado em Filosofia. Este não é meu objetivo e duvido que eu esteja apto a empreender essa tarefa. Quero apenas lhe dar algo, mesmo que parcial e incompleto, para que você mesmo busque seu entendimento, ou, quem sabe, eu deveria dizer sua vivência?

Sei que traduzir textos Zen para línguas ocidentais não é uma tarefa fácil. Assim, temos várias versões dessa passagem. Eu gosto de comparar diferentes traduções e acho que a tradução do Shōbōgenzō feita por Gudo Wafu Nishijima e Chodo Cross é muito bonita, a tradução dessa passagem para o inglês proposta por eles é a seguinte:

To learn the Buddha’s truth is to learn ourselves. To learn ourselves is to forget ourselves. To forget ourselves is to be experienced by myriad Dharmas. To be experienced by myriad Dharmas is to let our own body and mind, and the body and mind of the external world, fall away. There is a state in which the traces of realization are forgotten; and it manifests the traces of forgotten realization for a long, long time

Uma livre tradução para o português dessa versão inglesa pode ser:

Estudar a Verdade do Buda[1] é estudar a si mesmo. Estudar a si mesmo é esquecer de si mesmo. Esquecer de si mesmo é ser vivenciado por todas as coisas. Ser vivenciado por todas as coisas é deixar cair (abandonar) nosso próprio corpo e mente e o corpo e mente das coisas externas a nós. Há um estado no qual os traços do Despertar são esquecidos; e mesmo assim, os traços do Despertar esquecido se manifestam por um longo, longo tempo”.

Essa versão inicia com a Verdade do Budha, em substituição a Zen. De cara temos algo muito interessante. Zen e Verdade do Budha podem ser vistos como sinônimos. Esse entroncamento de sentidos me remete às Quatro Nobres Verdades. Mestre Dogen Zenji nos convida a ver, entender e viver as Verdades. Acho fundamental, a qualquer praticante, estar sempre em contato com elas. Ao longo do meu percurso, meu entendimento sobre elas mudou muito. Espero que continue mudando.

Podemos unir as duas frases e dizer que “Verdade do Buda” (a natureza do sofrimento) é esquecer de si mesmo. Quando deixamos ir esse conceito de Eu fixo, independente, autossuficiente, fica mais fácil ver as coisas tais como elas são. Vemos a interdependência e a impermanência de tudo, inclusive (e, quem sabe, principalmente) a nossa própria. Neste estado, o sofrimento adquire uma nova dimensão. Eu acho que o Zen não propõe eliminar o sofrimento e, consequentemente, conquistar uma vida de um “eterno deslumbramento”. Não é isso, é apenas viver. Bom é bom, ruim é ruim. Até que bom e ruim se tornem apenas estados passageiros. Tudo é vida. Tudo é impermanente.

Em seguida, quero chamar a atenção para a afirmação: conhecer a si mesmo é esquecer de si mesmo. Uma vez, em Dokusan, Saikawa Roshi me disse: “a mente não pode perceber a mente”. Esse ensinamento está sempre comigo, ele sempre volta. Percebo que devemos nos esquecer de quem somos para deixar que a mente dualista “adormeça”. Esquecer de si mesmo elimina todo dualismo e nos coloca como uma simples parte do universo, ou, até quem sabe, como todo o universo.

Ao falar que somos todo o universo, devemos ter muito cuidado. A princípio, pode parecer que somos arrogantes ao afirmar: “Somos TUDO”. Nada disso. Até muito pelo contrário. Ser o universo é ser vazio e desprovido de identidade própria. Vemos muito essa afirmação em importantes textos e dita por importantes mestres. Assim, ser todo o universo é ser completamente vazio, desprovido de diferenças.

Seguindo, para o Zen o “si mesmo” é uma invenção do nosso ego. Não é que não existamos, claro que não é isso, estou aqui escrevendo e você está aqui lendo! Estamos aqui! Mas quem lê e quem escreve estão separados? São diferentes? São acabados? Você consegue me mostrar o seu “si mesmo”?

Nagarjuna coloca muito bem essa questão: Caminho, caminhante e caminhar se completam e se suportam. São interdependentes, se originam mutuamente e instantaneamente. Se manifestam em completude, interdependentes. Originação dependente. Elimine um e os outros dois desaparecem, instantaneamente. Dê origem a um e aqui, imediatamente, estão os outros dois! O “si mesmo” só existe em relação aos outros. Elimine um e o outro desaparece.

Agora quero leva-lo para minha parte predileta: “Esquecer de si mesmo é ser vivenciado por todas as coisas”. Nessa versão em inglês, o tradutor optou por uma forma diferente da tradicional. O esquecer de si mesmo não é uma ação, ou princípio, que parte do sujeito em direção ao objeto (todo o universo, todas as coisas ou todos os Dharmas). Muito pelo contrário; é um movimento inverso! Um movimento que parte do objeto em direção ao sujeito. Nossa, como é linda essa passagem!

Acredito que Mestre Dogen Zenji (e os tradutores, que decidiram colocar aqui essa relação objeto sujeito) quer evidenciar a passividade deste encontro, ou seja, um encontro que não é conduzido, controlado ou comandado pelo sujeito. É um movimento que apenas acontece e é percebido pelo sujeito[2]. Ele opta por mostrar que é o “fora” que vem ao encontro do “dentro”. Ou seja, não há nem fora nem dentro, nesse estado.

É sempre muito difícil colocar em palavras esses conceitos. A primeira vez que li essa tradução, eu achei que o que ele dizia é que deveríamos nos abrir. Infelizmente, não é simples assim. O “abrirmo-nos” é um movimento do sujeito em direção ao objeto, ou seja, o contrário do que é proposto. Nesse sentido não é nem “simplesmente estar presente”, pois, mais uma vez, temos aí o sujeito atuando. Para mim essa frase é um Grande Koan! Aborde-a dessa forma! Procure sua própria realização sobre essa passagem. Deixe que ela se revele!

Seguindo, na próxima frase, o tradutor já opta pelo retorno à forma sujeito e objeto, quando ele coloca o ato de abandonar o próprio corpo e mente, seguido de abandonar o corpo e mente de tudo mais. É um dualismo interessante, quase como dizer que quando o objeto vem ao encontro do sujeito, este perde, automaticamente, sua representação.

Mestre Dogen Zenji atinge o Despertar Pleno, escutando seu mestre, Nyōjo Zenji, dizer: Deixe cair corpo e mente. Acho que é por respeito a esse ensinamento que os tradutores mantiveram a relação sujeito objeto nesta passagem. Mas, de qualquer forma, quando corpo de mente se vão, o que fica? Mais um Koan para você aqui.

O fechamento desta pequena passagem é magnifica: “os traços do Despertar esquecido se manifestam por um longo, longo tempo”.

Despertar esquecido! Sempre guardo com muito carinho este ensinamento. O Despertar não é absolutamente nada, não é importante, não é o objetivo, não é nada. Já somos todos Despertos. Meu Mestre, Mokugen Roshi, sempre diz: Sentar  Zazen já é o despertar. Estamos, momento após momento, apenas manifestando a vida. Somos nada mais nada menos do que um canal de manifestação da vida. Assim, tudo se simplifica e a vida perde todo sentido. Sim! Paradoxal? Eu sei, uma vida sem sentido… mais um Koan aqui? Deixo para você decidir.

Sei que essas poucas palavras nem começaram a desvendar toda a maravilha e profundidade deste ensinamento. Espero apenas ter te inspirado a olhá-lo com carinho. Dedicar a essa pequena passagem algum tempo. Afinal, não é à toa que ela é tão comentada e valorizada pelos mestres. Ela mostra, ao mesmo tempo, a profundidade e a simplicidade das ideias do Mestre Dōgen Zenji. Boa prática!

Gasshô.

Texto de monge Kō Hō Rō Tsū. Monge no Templo Zen das Alterosas.

Instagram: @rotsu_zen

 

[1] Muitas vezes, vemos a expressão “Caminho do Buda” “Verdade do Budha” substituída por Zen.

[2] Usei aqui a expressão “percebido pelo sujeito”, única e exclusivamente pela minha limitação no uso de palavras melhores. Esse movimento não tem nada de percebido, assimilado ou sequer vivido. Nem é um movimento de integração, união ou qualquer coisa do gênero. Poderia ter usado as palavras “absorvido, vivenciado, incorporado”, mas elas também não são boas. Nesta proposta de Mestre Dōgen Zenji há, sim, um sujeito, mas ele não é mais separado das coisas e nem é ativo no sentido tradicional.

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