A Posição de Lótus: Corpo, Arte e Cultura

 

 

“Esta bela flor ainda cresce e prospera na mais lamacenta das águas.”

Kalyani Hauswirth Jain

 

A pose de lótus, ou Padmasana, seu nome em sânscrito que traduz para quase a mesma coisa, “assento” e “lótus”, é a grande herança cultural milenar da Índia ancestral. Hoje se faz tão viva como nunca na prática da meditação sentada de muitas tradições, entre elas, o budismo. Sua simbologia originária, a flor de lótus, de importância marcada indubitavelmente no imaginário das tradições orientais, dá à prática budista parte fundamental de sua identidade.

Siddhartha Gautama, o Buda histórico, usou a posição em seus anos de prática abaixo da árvore Bodhi, sentando com o seu pé direito sobre a coxa esquerda e o pé esquerdo sobre a coxa direita. Tomando refúgio nessa postura, que já era parte de sua cultura milênios antes de nascer, suas pétalas desabrocharam no despertar último, que deu o tom aos 2600 anos de budismo a partir dali: da lama, surgiu a flor de lótus.

 

Como a flor de lótus,

Surgida na água, floresce,

Com puro aroma e agradando a mente,

Mas sem ser encharcada pela água,

 

Da mesma forma, nascido no mundo,

O Buda habita no mundo;

E, como a lótus na água,

não se encharca com o mundo.[1]

 

Dois milênios depois, praticantes budistas copiam sua postura, sentando sozinhos e em comunidade por toda a Terra. Mas, afinal, qual é a origem da posição de lótus?

A posição de lótus é um dos asanas, que compõem, basicamente falando, as diferentes posturas da tradição da prática do Yoga. E ela tem esse nome, justamente, porque se assemelha à flor de lótus, planta aquática nativa de várias partes do continente asiático, emblemática por mostrar sua delicada beleza em meio à água enlameada.

Demarcando sua importância cultural e histórica, é possível observar como várias entidades das tradições espirituais das religiões dármicas (Budismo, Hinduísmo e Jainismo) são representadas nessa posição em artefatos ancestrais. Como Shiva, uma das principais entidades do hinduísmo, ou os tirtancaras do jainismo, por exemplo.

 

Estátua de Prajnaparamita, arte da cultura Java[2]

Para a prática do Yoga, é considerada uma das posturas mais antigas, se não a mais antiga, e muito importante. Com mestres apontando seus benefícios à saúde e seu auxílio vital àqueles que aderem à uma prática contemplativa. Para os praticantes que podem experimentá-la, seja em sua forma original ou em suas variações, como a meia lótus ou a birmanesa, se destaca a estabilidade corporal que propiciam, oferecendo um contexto favorável para a prática da meditação. Os joelhos ficam bem firmes no chão, possibilitando à lombar manter a coluna ereta. Na lótus-cheia, ou lótus completa, a sensação de estabilidade é tal que não é anormal sentir como se fôssemos colocados automaticamente em uma posição ereta e integral ao assumir a posição, as pernas se juntando e se confundindo, como se fossem uma só com todo o corpo.

Kosho Uchiyama Roshi, mestre zen, nos oferece uma perspectiva ainda mais aprofundada e interessante da significância cultural da posição de lótus, localizando-a no próprio cerne da cultura e da filosofia oriental. No seu livro, “Opening the Hand of Thought”, ou “Abrindo mão do pensamento”, a compara com O Pensador (Le Penseur), a estátua francesa cuja posição o mestre identifica como sendo representante da cultura e da filosofia Ocidental.

O Pensador, de Rodin

Para o mestre, a postura do Pensador é feita para pensar, imergir profundamente em pensamentos e imaginação. O foco da postura está na cabeça, e a mão até lhe serve de suporte. Essa é a postura daqueles que pensam, calculam, usam do raciocínio, característica da cultura e do pensamento ocidental.

“O Pensador senta-se curvado, com os ombros puxados para frente e o peito comprimido, numa postura de perseguição de ilusões. Os braços e pernas são dobrados, o pescoço e os dedos são dobrados, e até mesmo os dedos dos pés estão enrolados. Quando nosso corpo está dobrado e contorcido assim, o fluxo de sangue e a respiração ficam congestionados; ficamos presos em nossa imaginação e somos incapazes de nos libertar. Por outro lado, quando nos sentamos em zazen[3] (na posição de lótus), tudo é reto – tronco, costas, pescoço e cabeça. Como nosso abdômen repousa confortavelmente sobre pernas solidamente dobradas, o sangue circula livremente pelo abdômen, e a respiração se move facilmente em direção ao tanden[4]. A congestão é aliviada, a excitabilidade é reduzida e não precisamos mais perseguir fantasias e delírios.” [5]

A posição de lótus, por outro lado, seria o oposto de O Pensador. É uma posição integrada, com o foco no abdômen, completamente ereta e desperta. “Na postura zazen (da lótus completa) somos capazes de nos acalmar e nossa excitação mental diminui. É por natureza um postura na qual é impossível pensar continuamente na mesma coisa e as ficções que montamos em nossa cabeça dissolvem-se”[6].

As duas posturas, talvez, sinalizem culturas diferentes, com focos e formas de pensamento distintas, mas que, nas últimas décadas, vem se mostrando cada vez mais capazes de uma síntese. Cada uma propiciando à outra o que possui de potencial.

Aqui jaz, acredito, a significância cultural e artística da posição de lótus: em si, representa não apenas uma antiga herança histórica e uma poderosa postura para a meditação, como tem virado, no popular, símbolo da assimilação das práticas orientais no Ocidente, movimento que possibilita conhecermos o Dharma. Ao praticarmos na posição de lótus não estamos sozinhos, mas fazemos parte de uma linhagem imemorável de pessoas que assim também praticaram e praticam.

No mais, vale lembrarmos das palavras de Genshô Sensei, que sinaliza: Não é a postura que faz a prática. Servem de auxílio, sim, mas é possível cultivar a mente de Buda até em pé, deitados, sentados ou em uma cadeira.

 

Texto de Matheus Coutinho, praticante da comunidade Daissen Ji, escola Soto Zen.

 

Fontes:

https://www.sotozen.com/por/practice/zazen/howto/index.html

Imagens 1, 3, 4 e 5: Wikimedia Commons
Imagem 2: Unsplash, Jon Geng

[1] Poema Udayin Thera, traduzido do Pali para inglês por Andrew Olendzki, e do inglês para o português por Matheus Coutinho.

 [2]  Bodhisattvadevi (bodhisattva feminino) Prajnaparamita; a entidade budista da sabedoria transcendental, personificada em uma estátua do século 13, arte javanesa

 

[3] A meditação sentada Zen Budista, comumente feita na posição de lótus (Za = Sentar Zen = Concentração)

[4] O centro energético do corpo, que se encontra no abdomen, três dedos abaixo do umbigo

[5] Excerto do livro Opening the Hand of Thought, página 45. Tradução por Matheus Coutinho. Parenteses e notas de rodapé do tradutor.

[6] Página 104 do mesmo livro

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