Comunicação Não Violenta: a Responsabilidade Compartilhada e Fala Correta

Presente na espécie humana, a compaixão é a vontade de querer eliminar o sofrimento dos outros.

Em continuidade ao texto da edição anterior, é importante reforçar o conceito de Comunicação Não-Violenta (CNV), que é definida por Marshal Rosenberg como “uma abordagem da comunicação, que compreende as habilidades de falar e ouvir, que leva os indivíduos a se entregarem de coração” (MENDES, 2019). Isso abre espaço para uma maior conexão com os outros e consigo próprio, e o desenvolvimento de atributos como a compaixão1 e a autocompaixão.

O termo Não-Violência não é novo. Rosenberg se apropriou da definição dada por Mahatma Gandhi, para quem ninguém tem o poder de ferir psicologicamente alguém, sem que este alguém tenha dado a própria permissão para isso. A Não-Violência, portanto, além de compor uma condição existencial básica, pode se tornar um ato consciente em prol de uma vida compassiva e baseada na cultura de paz. Mas, como ponderou Rosenberg (2006) em vários de seus livros, não se trata de algo fácil. Requer força de vontade, repetição e persistência.

Há de se alargar este conceito e entender a CNV como uma técnica focada em determinadas nuances da linguagem e de constantes (re)formulações no modo como nos expressamos e, também, como ouvimos as outras pessoas. Tanto as minhas falas quanto as interpelações que faço a partir dos diálogos escutados não podem ser meros frutos de ações compulsivas. Somos convidados a ser mais conscientes e presentes em cada encontro, a partir de uma escuta ativa, curiosa, profunda, respeitosa e empática2.

“Para compreender as pessoas, devo tentar escutar o que elas não estão dizendo, o que elas talvez nunca venham a dizer”. Sir John Enoch Powell

Uma comunicação equilibrada, como a proposta pela CNV, evita a ocorrência de uma série de mal-entendidos

 

Em outras palavras, a comunicação como um todo é um fator preponderante para a qualidade dos relacionamentos, tendo em vista que tanto os conflitos quanto as soluções surgem a partir do modo como interagimos e compreendemos o outro (ou nos fazemos compreender). Sendo assim, fica cada vez mais claro que a Comunicação Não-Violenta possibilita que uma série de discussões e desentendimentos sejam evitados, além de permitir que ampliemos nosso repertório linguístico e de estratégias relacionais.

“A responsabilidade de todos é o único caminho para a sobrevivência humana”.

Dalai Lama

Rosenberg também alerta para o que ele chamou de “comunicação alienante da vida”, ou seja, é um tipo de comunicação baseada em projeções, em que podemos cair na tentação de nos eximir de nossas responsabilidades (num movimento semelhante à má fé existencial, ou seja, numa recusa de reconhecer a nossa parte naquilo que nos desagrada nos outros). Narrativas carregadas de muitos julgamentos moralizantes e generalizantes também compõem este cenário.

Sobre este último aspecto, importante lembrar-se do conceito junguiano (JUNG, 1964) de tendência à polarização psíquica, ou seja, para “facilitar” processos existenciais, temos a inclinação de polarizar determinados temas, dividindo-os em bem e mal, certo e errado (ou qualquer outra dicotomia) e, adivinhem, nos autoproclamamos como os sujeitos que estão do lado “certo”. Agindo assim, é impossível estabelecer diálogos maduros. Porque cada parte, a seu modo, vai considerar que é legítima. Gandhi já dizia que “olho por olho e o mundo acabará cego”. Claro, isso não nos exime de senso de justiça, e de denunciar a quebra de direitos elementares, mas é um alerta importante sobre a nossa corresponsabilidade diante daquilo que não gostamos.

“A empatia é uma das únicas capacidades que nos salva de generalizarmos nossas verdades pessoais em detrimento da realidade que é fornecida pelo outro”.

Josie Conti

A escuta qualificada é um dos fatores que possibilitam uma maior conexão entre as pessoas.

Retomando o assunto, torna-se importante destacar que para se comunicar bem é imprescindível escutarmos bem. Na psicologia, a esse processo damos o nome de “escuta ativa” ou qualificada (dentre outros nomes). Essa entrega total e interessada ao diálogo é um dos pressupostos da empatia, e evita que ocorra algo muito comum hoje em dia, que é o impulso para doutrinar ou para competir pelo sofrimento (KARNAL, 2019). Em CNV, não é necessário que um dos interlocutores tenha razão. Não é isto que está em jogo. O objetivo, mesmo, é sabermos quais as nossas emoções e necessidades que estão em jogo e, em igual medida, possibilitarmos que os interlocutores também acessem esses aspectos essenciais de suas existências.

Nesse sentido, praticar a Comunicação Não-Violenta é, antes de tudo, um gesto em torno do autodesenvolvimento. Isto é especialmente importante diante de uma sociedade cada vez mais narcisista3 e que isola os seus integrantes em determinadas bolhas que restringem o contato com pessoas que pensam diferente de nós. A vida adulta, como bem lembrava Jung, requer necessariamente que saibamos estabelecer diálogos maduros e que leve em conta o contraditório.

Acolher a si mesmo (a) é imprescindível para que possamos saber acolher os outros.

 

Desenvolver habilidades comunicacionais e sociais, portanto, são pressupostos tanto da inteligência emocional (a capacidade de conhecer e manejar bem as próprias emoções) quanto da inteligência social (a capacidade de construir valor a partir das interações sociais). E, mais do que isso, tornou-se um importante capital existencial que reverbera positivamente em diferentes cenários de nossa vida, do casamento ao mercado de trabalho. Afinal, é gratificante poder estabelecer conexões humanas autênticas e conseguir colocar-se no lugar do outro de forma transparente e com espírito de abertura.

Por fim, é igualmente importante abordar a nossa capacidade de escolhermos diferentes estratégias para lidar com problemas persistentes. Para tanto, é necessário que desenvolvamos recursos internos a partir de uma melhor compreensão do modo como enxergamos o mundo, além de desenvolver capacidade de fluidez, autocompaixão e capacidade empática. Isso pode ser desenvolvido e aprimorado se permitirmos nos conectar mais conosco mesmo, em um “diálogo” honesto com nossas necessidades e atentos ao valor existencial de nossas experiências cotidianas, num movimento de abertura incondicional para a vida.

 

Saiba mais

  1. O que é Compaixão? Para Dzongsar Jamyang Khyentse, “compaixão é a capacidade de compreender o estado emocional de outra pessoa ou de si mesmo. Muitas vezes confundida com a empatia, a compaixão tem o elemento adicional de ter um desejo de aliviar ou reduzir o sofrimento do outro”. É possível e saudável construir relações a partir da compaixão. “Quando não nos relacionamos com o outro através de nossa visão restrita e de mundos limitados, somos capazes de olhar para o sofrimento, sentir junto com o outro e, a partir disso, encontrar soluções mais lúcidas para os problemas. Ter compaixão por alguém envolve mais do que colocar-se em seu lugar e genuinamente querer compreendê-lo ou mesmo ajudá-lo. Envolve começar a ter uma perspectiva totalmente diferente quando se trata de como você percebe os outros”. (BATTISTELLI, 2018)
  2. Definição de Empatia:Empatia é um processo imaginativo complexo no qual um observador simula estados psicológicos situado sem outra pessoa, mantendo clara diferenciação eu-outro. Dizer que a empatia é complexa, é dizer que ela é, simultaneamente, um processo cognitivo e afetivo. Dizer que a empatia é uma simulação, é dizer que o observador replica ou reconstrói experiências do outro, mantendo um senso claro de diferenciação eu-outro”. (COLPLAN, A., 2011, p. 5-6 [tradução direta])
  3. O que é Narcisismo? Para Schwartz-Salant. “O termo narcisismo surgiu bem cedo na teoria psicanalítica, e o fez de forma particularmente pejorativa. Inicialmente, indicou o amor-próprio num grau patológico e uma impenetrabilidade associada, carregando um prognóstico terapêutico pessimista. Ser narcisista era, com efeito, ser mau.  Era um julgamento segundo o qual a pessoa, não apenas estava voltada para si mesma, mas também estava fora de alcance.  Esse decreto do pensamento psicanalítico se estendia à meditação, à introversão e à fantasia criativa, razão por que dificilmente causa surpresa o fato de Jung raramente usar o termo” (1995, p. 9).

 

Texto de Sonielson Luciano de Sousa. Psicólogo clínico e jornalista. Praticante na Daissen Ji. Escola Soto Zen.

 

Referências:

BATTISTELLI, Juliana (2018). Compaixão: os benefícios de desenvolver um olhar compassivo ao outro. Disponível em < https://www.vittude.com/blog/compaixao-os-beneficios-de-desenvolver-um-olhar-compassivo-ao-outro/>. Acesso em 11 de jan 2021.

COPLAN, A. & al. Empathy: Philosophical and Psychological Perspectives. New York: Oxford University Press, 2011.

JUNG, Carl G. O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1964.

KARNAL, Leandro (2019). Ninguém ouve mais ninguém. Disponível em < https://www.youtube.com/watch?v=YuMi2VRvpnQ >. Acesso em 12 de jan 2021.

MENDES, Tatyane (2019). O que é compreensão interpessoal e empatia. Disponível em < https://www.napratica.org.br/o-que-e-compreensao-interpessoal-e-empatia/ > . Acesso em 12 de jan 2021.

ROSENBERG, Marshall B. Comunicação não violenta. Técnicas para aprimorar relacionamentos pessoais e profissionais 1 ed. São Paulo: Summus, 2006.

SCHWARTZ-SALANT, N. Narcisismo e transformação do caráter: a psicologia das desordens do caráter narcisista. São Paulo, SP: Cultrix, 1995.

 

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