Como Uma Onda no Mar

Alguns Paralelos Entre Surf e Meditação

Nós dois nascemos em Minas Gerais e como bons mineiros amávamos ir para a praia. Com minha família ia todas as férias e alguns feriados para os litorais carioca e do Espírito Santo. Me lembro sempre da alegria em chegar e avistar o mar se encontrando com o céu no horizonte e da felicidade que era “pegar jacarezinhos”. Mushin san passava as férias com seu pai que morava no Rio de Janeiro e se sentia encantado pelos vizinhos mais velhos que com suas pranchas deslizavam nas ondas do mar. Dessa forma, nós dois nutríamos desde crianças essa admiração e desejo pelo surf. De alguma forma, isso acabou nos levando à ilha de Florianópolis, onde nos conhecemos e começamos a surfar. Mushin san em 2011, e eu em 2012. Em 2014 iniciamos nosso caminho no Zen Budismo. Ao longo desses anos praticando zazen e surf, percebemos muitos paralelos e é sobre isso que gostaríamos de compartilhar nessa edição.

O surf é um esporte popular em todo o mundo e considerado de aventura por muitos. No surf a pessoa desliza em pé na superfície da água com ajuda de uma prancha, aproveitando uma onda que se quebra. O esporte se tornou oficialmente uma prática olímpica em 2021 e tem uma longa história. Existem muitas contradições e discussões a respeito de qual é a origem do surf. Até o momento, não há um registro histórico que comprove sua origem e ninguém sabe dizer ao certo como ele foi criado e quem foi a primeira pessoa a ter a ideia. A hipótese mais aceita é que ele tenha nascido no Peru ou na Polinésia, duas regiões cercadas pelas águas do Oceano Pacífico. Os primeiros relatos afirmam que o surf foi introduzido no Havaí por um rei polinésio. Porém, há registros que afirmam que, antes dos havaianos, os peruanos já usavam uma canoa de junco para deslizar sobre as ondas na praia. Ao que tudo indica, após trabalhar no mar pescando, esses homens perceberam que era mais emocionante e desafiador retornar à praia em pé, sobre o casco das embarcações. Porém, assim como grande parte dos relatos existentes, a origem dessa informação é duvidosa. De forma geral, os diversos povos do Pacífico têm até hoje relações vitais com o mar, o que se faz presente em seus modos de vida.

Quando se fala sobre onde foi criado o surf, muitas pessoas acreditam que tenha sido no Havaí. O que se sabe é que os polinésios eram grandes marinheiros, por isso conseguiram cruzar o Equador e chegar às ilhas havaianas. No Havaí, eles deram origem a uma civilização, adaptando a cultura e o modo de vida, inclusive com relação à prática com as ondas. A atividade não era restrita a um grupo, portanto, participavam mulheres, homens, jovens e crianças. Enquanto os nativos havaianos tinham o hábito de surfar, os europeus nem imaginavam que essa prática existia. Por isso, quando se fala sobre qual é a origem do surf, a descendência não é europeia.

Esporte ou prática ancestral, surfar exige muita disciplina e envolve muito mais do que “simplesmente” aprender a subir na prancha e descer as ondas. Surfar é aprender a se relacionar com o mar, com os ventos, as marés, as diferentes fases da lua, a chuva, o sol, os peixes, golfinhos, focas, pinguins, tubarões, medos, frio, calor, outras pessoas. Antes de tudo é preciso se acostumar com o mar, e se você já é acostumado com ele, aprender a estar no mar com uma prancha, que no início parece um grande incômodo e com o tempo passa a ser uma verdadeira aliada. E esse talvez seja um dos primeiros paralelos com a meditação. No surf é impossível pensar na onda que você pegou sem entender todas as causas egressas para que ela tenha se formado e chegado daquele jeito até você. Thich Nhat Hanh, em seu livro O Coração da Compreensão, fala sobre o termo interser, que significa que nada existe por si só, mas sempre em relação com outras coisas e seres. Para o mestre zen vietnamita, se olharmos profundamente para uma folha de papel veremos que há uma nuvem flutuando, já que sem nuvem não há chuva, sem chuva as árvores não crescem e sem as árvores não é possível fazer o papel. Dessa forma, a nuvem, a chuva, as árvores e a folha de papel intersão. Como ensina Thich Nhat Hanh:

Se olharmos ainda mais profundamente para dentro desta folha de papel, nós poderemos ver os raios de sol nela. Se os raios do sol não estiverem lá, a floresta não pode crescer. De fato, nada pode crescer. […] Olhando ainda mais profundamente, nós podemos ver que nós estamos nesta folha também. Isto não é difícil de ver, porque quando olhamos para uma folha de papel, a folha de papel é parte da nossa percepção. A sua mente está aqui dentro e a minha também. Então podemos dizer que todas as coisas estão aqui dentro desta folha de papel” (HAHN, 2014, p.15,16).

No surf não é diferente, sem a ação do vento, que ao soprar por longas distâncias empurra a água até gerar nela ondulações, não há ondas. Sem as bancadas de areia, corais ou pedras, a onda não se quebra e não é possível pegar ondas. Sem a prancha que foi feita com o trabalho de alguém e outros equipamentos importantes também não teria como surfar. Ao aprender a surfar, você também aprende a ler e a se relacionar com o mar, o vento, a lua…antes de sair de casa você já começa a saber qual é o vento que está soprando, a sua direção, força e isso já diz muito sobre se e onde vai ser possível surfar. Para entrar no mar você primeiro olha e descobre onde está a corrente de retorno que vai te facilitar a entrada, você percebe como e onde as ondas estão quebrando, com que frequência, qual o tamanho, qual a direção. E então você entra, tem dias que mais facilmente, tem dias que com muita dificuldade, outros que nem consegue entrar e é preciso saber respeitar. No começo, e dependendo do dia, essa é uma das maiores dificuldades, porque o seu corpo ainda está se acostumando com essa postura, com a prancha, com a necessidade de remar. Nos primeiros dias até se manter sentada em cima da prancha já é um grande desafio.

Assim como na prática de meditação é preciso criar rotina, manter a disciplina. Se você faz esse compromisso e se dedica a cada dia, você vai percebendo os resultados. Sentar-se na prancha já não é um problema, a remada fica mais forte e você entra com mais facilidade no mar, vai aprendendo a ficar em pé, a fazer joelhinho (furar a onda com a prancha), a entrar na onda no momento certo, a encontrar o lugar onde ela está quebrando, ler o lado que ela vai quebrar. Passa muito tempo só “tomando vaca” (caindo da prancha), depois pouco a pouco consegue ficar em pé e descer reto em algumas ondas, mais vacas, com o tempo aprende a ir para os lados e depois tem as manobras…assim como os votos do Bodisattva, um caminho sem fim de aprendizados e possibilidades.

Também assim como na meditação, o esforço e disciplina são necessários e farão você caminhar, mas não garantirão que esse caminho será linear. Quem pratica meditação por algum tempo sabe que tem dias que é mais fácil voltar para o presente, que tem épocas na vida que está tudo mais favorável para meditar, mas que tem outros que sua mente não para nem por um segundo e você só espera que o sino bata para terminar. Ainda assim, o recomendado é que sigamos sentando-nos, firmes, com disciplina, dia após dia, sem julgar se a meditação foi boa ou ruim. No surf tem épocas que você consegue praticar mais e percebe que está evoluindo, tem dias incríveis, pega muitas ondas boas, mas de repente no outro ou até no mesmo dia tudo muda e parece que você nem sabe mais como surfar. Ainda assim, o que mais fazemos quando surfamos é sentar-nos, observar e esperar. Há estudos que dizem que surfistas passam mais tempo sentados ou remando do que em cima da prancha deslizando sobre as ondas. É bastante tempo dedicado a remar para entrar no mar, se posicionar para pegar as ondas, esperar a onda certa para você e finalmente ter alguns segundos de um sentimento mágico que é se tornar uma com a onda, apenas sentindo o que ela te pede, como te empurra, para que lado vai e o que precisa ser feito no próximo instante. Quando pegamos a onda não existe passado ou futuro, apenas aquele momento que se apresenta. Algumas decisões precisam ser tomadas, mas elas não dependem da sua vontade e sim do que aquela determinada onda te permite; é preciso fazer o melhor que você pode com aquilo que te é apresentado. É necessário entrar em conexão com a onda, ir junto com ela. O surf nunca é sobre vencer ou ir contra o mar, mas aprender a estar com ele.

Nos mais diversos sentidos, o surf não é diferente da vida. As ações de vento que formam as ondas não são sempre iguais, muda a direção, a corrente, o tipo de fundo que a onda encontra ao chegar perto da praia. No Brasil, por exemplo, boa parte das praias é formada por fundos de areia, que são ainda mais instáveis que os fundos de coral e de pedra. O que isso quer dizer é que o mar nunca é igual e as ondas não são nunca as mesmas. O mar não escapa da impermanência da vida. Existe um termo budista que se chama Anicca ou Anittya, que significa impermanência. Komyô Sensei diz que “a impermanência é um conceito muito importante não só no estudo do budismo; é um conceito essencial também na vida, na nossa vida. A vida é feita de impermanência”. Essa ideia nos chama a olhar o mundo como um fluxo que não para de se transformar o tempo inteiro. Tudo muda, inclusive nós e nossos corpos e mentes e isso não é diferente com o mar, as ondas, os ventos, as marés, a natureza. É muito comum que no mesmo dia você vá surfar pela manhã e, por causa do tipo de vento e da maré, as ondas estejam de um jeito, e vá pela tarde e tudo já esteja muito diferente. Você pode tentar fazer de tudo para controlar as coisas na sua vida, mas o mar e o surf vão te lembrar o tempo inteiro da impermanência e que é preciso aprender a lidar com isso. É graças às mudanças que aprendemos a não cometer os mesmos erros, que as flores nascem, as árvores dão frutos, as ondas se formam e quebram, envelhecemos e “morremos”. É só por causa da impermanência que é possível surfar, porque se não fosse isso a onda nunca quebraria. Compreender e aceitar isso é o que pode nos fazer felizes, pois não há felicidade na busca incessante por estabilidade. A vida não é estável, ela é Dukkha, ou seja, cíclica e insatisfatória; sobe e desce o tempo inteiro. As ondas também são cíclicas e, a não ser que você vá surfar em uma piscina de ondas programadas, elas serão sempre diferentes e vão exigir de você a arte de se adaptar, sentar-se, observar, esperar, e saber aceitar o dia que não sai como você queria. Denshô Quintero Sensei, mestre zen colombiano, diz que é frequente o desejo de que:

Nossa prática nos permita criar uma vida ideal na qual não encontraremos tropeços, nos imunizaremos das experiências dolorosas ou não teremos que nos confrontar com pessoas que nos tornam a vida difícil e põem obstáculos ao nosso avanço. (QUINTERO, 2019, p.31,32).

No entanto, é preciso entender que surf, meditação ou a própria vida é muito mais sobre processo do que resultado. Você pode até traçar planos, ter sonhos, metas, querer pegar a onda perfeita e aprender a fazer uma certa manobra, mas não pode se apegar a nada disso. O surf e o mar nos ensinam que cada momento é novo, que cada dia é diferente…que tem dia que será mais difícil para entrar no mar, para “dropar” as ondas e pode até parecer que esquecemos como de surfar. Mas vai ter dia que vai estar tudo mais fácil e pegaremos muitas ondas. O que importa mesmo é aprender a viver todos os tipos de dia e saber celebrar e sorrir cada passinho do caminho. Não há felicidade, tristeza ou situação que dure para sempre; como diria o zen-surfismo de Lulu Santos, “tudo muda o tempo todo no mundo” e o segredo da felicidade está em aceitar isso, em aprender a ser Um com o fluxo da Vida, a ser como as ondas no mar.

 

Texto de Nathália Fusô e Monge Mushin. Praticantes na Daissen Ji. Escola Soto Zen.

 

 

Referências:

A Música e o Dharma: Como Uma Onda (Zen-surfismo) em

https://www.budismohoje.org.br/a-musica-e-o-dharma-como-uma-onda-zen-surfismo/

Denshô Quintero. Duvidar da própria compreensão: indagações no caminho do zen. João Pessoa: Daissen Ji, 2019.

Monge Genshô. Anicca. Disponível em

https://www.youtube.com/watch?v=dlqZnSL9xy0

Monge Komyô. A vida é feita de impermanência. Disponível em

https://www.daissen.org.br/a-vida-e-feita-de-impermanencia-monge-komyo/

Thich Nhat Hanh. O Coração da Compreensão: comentários ao Sutra do Coração Prajnaparamita Sutra. Edição e tradução Enio Burgos. Bodigaya, 2014.

Você sabe qual é a origem do surf? Disponível em

https://www.costadosauipe.com.br/blog/voce-sabe-qual-e-a-origem-do-surf-confira-aqui

 

 

 

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