Caminhando entre Ruínas: Peregrinos Budistas

Texto da série “Memórias de um Casal de Peregrinos”

 

Há cerca de sete anos, em vias de embarcar com Kakuji em mais um voo, escrevi um texto que hoje releio:

“Queria ter acordado hoje e saído por ruas que não conheço, observado hábitos que não são meus, escutado línguas que não domino. 

Ruas desconhecidas me fazem atento para não me perder. Costumes estranhos me ensinam sobre possibilidades de se ser humano de formas diferentes. 

E, assim, de olhos e ouvidos abertos, se caminha por terras outras que não as suas.

Por isso, a posse, tão buscada e festejada em nosso pequeno mundo, é sempre empobrecedora. “Minha casa”, “minha rua”, “meus costumes”. E, em meio a tantas coisas minhas, fico tão confortavelmente relaxado que não preciso mais olhar e ouvir. ”

 Peregrinar é – ao menos, também o é – tornar-se fisicamente íntimo de espaços nos quais há muito tempo a história foi escrita, caminhar entre resquícios arquitetônicos, buscando capturar a presença do não-presente, tentar inspirar o que porventura restar de um testemunho histórico que ainda paire naqueles ares.

Quando percorremos com nossos passos cansados as ruínas de Ayutthaya[1], Tamara[2] e eu alternávamos momentos de deslumbramento com outros de impaciência com a multidão de turistas vindos das mais diversas partes do mundo. Tínhamos que lembrar a nós mesmos que éramos parte do problema da superlotação. Buscávamos alimentar nossos espíritos reverentes, cultivando a atenção em cada olhar, mas tudo se perdia no momento seguinte quando sentíamos cotovelos empurrando nossas costelas ou gritos invadindo nossos ouvidos. Passamos, então, a partir de um determinado momento, a buscar não as ruínas mais famosas, mas, pelo contrário, as menos frequentadas. Uma parede ou pilastra quebradas rodeadas por pequenas estátuas ganhavam, assim, para nós, um status mais elevado do que as mais colossais estruturas ou imagens.

Respirando outras eras

De tal forma foi ficando claro que nossa experiência era moldada apenas parcialmente pelo ambiente, pois grande parte dela dependia de como nos sentíamos naquele momento. Mais tarde, essa percepção foi extremamente importante para que aproveitássemos mais nossas visitas ao Angkor Wat[3] e a Bodh Gaya. Era preciso abstrair a presença das outras pessoas e se entregar à não-presença de outras vidas e outras épocas. Stephen Batchelor fala sobre a importância da imaginação no processo de peregrinação:

Você tem que, de alguma forma, ser capaz de retornar com imaginação a como esses lugares podem ter sido. A abordagem que estou adotando é, na verdade, sentar-me calmamente nesses lugares, fazer as práticas que teriam sido feitas lá 1.000 ou 1.500 anos atrás, considerar o texto que teria sido originalmente pensado nesses lugares e, assim, tentar recriar a atmosfera que esteja em conformidade com a finalidade para a qual o local foi construído.”[4]

Em uma época de tanta exposição imagética por meio das mídias tradicionais e, principalmente, da internet, o contato real fica em segundo plano, quando não é simplesmente esquecido. Ao desligarmos nossas quase onipresentes telas e nos aventurarmos pelo mundo, tentamos tocar o presente, mas, também, invocamos o passado. Ali, nas ruínas, está não somente a prova de um evento que já se dissolveu no tempo, mas a carga histórica dos olhares de cada peregrino que lá esteve antes de nós.

A autenticidade de uma coisa é a quintessência de tudo o que foi transmitido pela tradição, a partir de sua origem, desde sua duração material até seu testemunho histórico. Como este depende da materialidade da obra, quando ela se esquiva do homem através da reprodução, também o testemunho se perde. Sem dúvida, só esse testemunho desaparece, mas o que desaparece com ele é a autoridade da coisa, seu peso tradicional. ” (BENJAMIN, 1985, p. 168)

A arte e a linguagem em sua busca por eternizar

Mas o que percebi é que mesmo quando nos colocamos diante do “original” ele não existe independentemente do nosso olhar. Tanto se fala da deturpação da realidade provocada pelo uso dos filtros dos aplicativos – o que é sem dúvida um problema de nosso tempo. Mas sempre há algum filtro, mesmo quando largamos nossos celulares, computadores, e cruzamos o mundo para encararmos um monumento que até então só conhecíamos por fotos e vídeos. E foi o nosso filtro de peregrinos budistas que permitiu sermos tomados das mais belas emoções ao, por exemplo, nos sentarmos próximos à árvore que dizem ser descendente da árvore original em cuja sombra o jovem Gautama se abrigou até despertar, em Bodh Gaya.

 

O Espaço, o Tempo e a Mente

Por que viajar se todo o cosmos pode se apresentar quando estamos sentados em nosso zafu? Essa era a pergunta que tantas vezes nos fizemos. E a única resposta que encontramos é que sabíamos que não sabíamos, então precisávamos buscar. O quê, onde e como eram indagações incertas. O pouco que tínhamos era a convicção adquirida nos retiros previamente feitos no Brasil de que havia muito a descobrir sobre nós mesmos, sobre os outros, sobre a vida e sobre a morte. Compreendíamos que tudo era muito mais amplo do que julgávamos antes de começarmos a estudar o Dharma e que nossas visões haviam sido transformadas após o início da nossa entrega à prática.

Nossas dúvidas eram tão grandes quanto nosso foco, tanto que decidimos abandonar o mundo conhecido para iniciarmos nossas buscas na Ásia. Pico Iyer certa vez disse que as novas “imaginações e pensamentos às vezes vêm até nós com mais força quando estamos cercados pelo estranho, ou pelo que não podemos entender, e o próprio ato de partir em uma jornada fala de um tipo de abertura e amadurecimento que é de fato o primeiro passo no caminho da transformação. É um reconhecimento público de que você não sabe tudo e que algumas dessas coisas podem chegar até você tão facilmente na estrada quanto na sua almofada de meditação; é uma maneira de virar a chave dos seus sentidos para o ‘modo LIGADO’, pondo-se em estado desperto e tentando se unir a esse senso muito maior de eu – ou não-eu – que às vezes perdemos quando estamos sonâmbulos em nossas vidas.”[5]

Angkor Wat o novo veste o antigo

É verdade que a viagem pode servir como mais um mecanismo de fuga dentre tantos outros, que podemos estar buscando o diferente e o novo para evitar encarar o nosso “velho” eu. É verdade, também, que foi imóvel, por anos, diante de uma parede de caverna que Bodhidharma revolucionou os rumos do budismo no extremo oriente e que, tão imóvel quanto, sentado nas raízes de uma árvore e se confundindo com elas que Siddhārtha despertou. Mas também é um fato que a história da busca espiritual é composta por muitas pessoas que deixaram seus lares. O próprio príncipe dos Shakyas percorreu florestas e povoados em busca de aprendizado; Dogen Zenji enfrentou as ondas que separavam seu país originário da China; o próprio Bodhidharma deixou a Índia; Huineng caminhou por dezenas de dias após ouvir a recitação de um Sutra, encontrou seu mestre e só foi reconhecido como discípulo após transformar em poesia sua experiência mística.

A viagem se torna aprendizado quando estamos abertos à mudança, o turismo dá lugar à peregrinação quando imaginação e reverência nos servem como bússola. É preciso imaginação para não se conformar com as fronteiras geográficas, sociais e mentais e é necessário reverência para enxergar os sutis rastros deixados pelos antepassados que já percorreram o Caminho.


Milênios no Ar

Não se afobe, não

Que nada é pra já

O amor não tem pressa

Ele pode esperar em silêncio

Num fundo de armário

Na posta-restante

Milênios, milênios no ar

 (Chico Buarque)

Escadas e torres

Era um pouco mais de 5h30 da manhã e íamos ruína acima. Nem parecia o mesmo local que no dia anterior inundara-se em máquinas fotográficas, muitos chineses, alguns europeus e poucos americanos – seja do norte, do centro ou do sul das américas. Agora, éramos apenas Muryo e eu. O motorista do tuk-tuk tinha ficado infinitos degraus abaixo, orgulhoso de si, por termos expressado nossa alegria com a dica que nos dera de sairmos bem cedinho. Além de evitarmos a escaldante temperatura que nos derretera há menos de 20 horas, fugíamos, também, de turistas que, em meio a risos altíssimos e selfies sem fim, acabavam por tirar um pouco de prazer que víamos em uma lenta contemplação. Lembrava de ter pesquisado que dentro da moldura do que restava daquelas construções, um dia, 20 mil pessoas lá viveram. Antes da pandemia, por ano, em média, o mesmo lugar recebia mais de 2 milhões e meio de visitantes. Quanto amor, ressentimento, vida, discórdias essas 20 mil pessoas deixavam para aquele oceano de turistas? Nós, escafandristas. O quanto dessa época, em cada passo, escadaria acima, grudava em nossos pés? Adentrava nossa pele?

Chegávamos a Siem Reap vindos de um retiro de cerca de duas semanas, em que ficamos, mais uma vez, separados e incomunicáveis. As motos, os comerciantes, os barulhos todos eram mais intensos do que talvez teriam sido há 15 dias daquele desembarcar. Tínhamos poucas horas para encontrar um motorista com quem firmaríamos um contrato praticamente não-verbal, que se apoiaria em muitos gestos e boa vontade, para nos acompanhar por alguns dias de visita às ruínas de Angkor Wat. Após muito negociar, íamos dormir com uma tranquila e conhecida incerteza de termos sido compreendidos. A essa altura já relativizávamos a expressão: “deu tudo certo” – ou “tudo errado”.

Escadas e torres

Não sei se eram as poucas horas de sono que tínhamos tido, juntadas ao calor delirante ou a beleza estonteante do lugar, mas o onírico embalava aquele cenário. As raízes das árvores envelopando os vestígios dos templos pareciam garras a escorrer pelas paredes. Me perguntava o que seus tentáculos tanto queriam engolir? E o que disso restaria para nós? Seríamos nós os futuros amantes daquela cidade que não-mais-era, servindo-nos, sem pressa, do que foi deixado como uma espécie de herança a um ente desconhecido?

Sábios em vão

Tentarão decifrar

O eco de antigas palavras

Fragmentos de cartas, poemas

Mentiras, retratos

Vestígios de estranha civilização

Em trajetos labirínticos, apreendíamos que a imaginação empresta a tal decifrar suas asas. Vimos o quanto concordamos com Norman Fischer quando ele afirma que “a imaginação aprofunda e enriquece a realidade, acrescenta textura, profundidade, dimensão, sentimento e possibilidade. […] Para ir além do possível até o impossível, precisamos imaginá-lo”. (FISCHER, 2021, p.15)

E parecíamos não mais escafandristas, mas, sim, antigos habitantes ressurgidos dos escombros. Sentíamos os passos mais íntimos, aqueles turistas eram nossos compatriotas. Os funcionários na entrada de cada ruína – para verificar se estávamos com os ombros e os joelhos cobertos em sinal de respeito – eram os guardiões, tuk-tuks eram a cavalaria, que misturavam os Cham com os Khmer. E assim observávamos restos de templos hindus, identificávamos práticas budistas e mudávamos nosso caminhar por aqueles corredores, pátios, átrios, escadarias.

Depois de termos sido deixados de volta em nosso hotel, saímos para comer a primeira refeição do dia. O restaurante: uma cozinha menor do que a de muitas casas. Era uma minúscula cambojana que se ocupava de todos os pratos. Ela casara-se com um altíssimo belga e ambos misturavam suas especialidades para manterem o restaurante e o filho. O cardápio, assim como as músicas que lá escutávamos, contemplava o sul da Ásia e a Bélgica, o cabelo do menino que corria entre as parcas mesas contrastava com seus olhos. E essa mistura de passados e presentes iam revelando a presença do que subsiste milênios e milênios no ar.

 

Texto de

Monja Kakuji 覚慈, Monja na Daissen Ji. Escola Soto Zen.

Monge Muryo 無量, Monge na Daissen Ji. Escola Soto Zen.

 

 

Referências:

BATCHELOR, Stephen. The Atheist Pilgrim. Acesso em:  https://tricycle.org/magazine/atheist-pilgrim/

BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas: Magia e técnica, arte e política. São Paulo, Brasiliense, 1985.

FISCHER, Norman. O mundo poderia ser diferente: imaginação e o caminho do Bodisatva. Lúcida Letra, 2021.

IYER, Pico. The Long Road to Sitting Still. Acesso em: https://tricycle.org/magazine/long-road-sitting-still/

[1] Fundada em 1350, Ayutthaya tornou-se a segunda capital siamesa depois de Sukhothai. Foi destruída pelos birmaneses no século XVIII. Os seus vestígios, caracterizados pelos prang (torres relicárias) e gigantescos mosteiros, dão uma ideia do seu esplendor passado. In: https://whc.unesco.org/en/list/576/

[2] Hoje monja Kakuji.

[3] “Angkor é um dos sítios arqueológicos mais importantes do Sudeste Asiático. Estendendo-se por cerca de 400 km2, incluindo área florestal, o Parque Arqueológico de Angkor contém os magníficos vestígios das diferentes capitais do Império Khmer, do século IX ao XV”. Acesso em: https://whc.unesco.org/en/list/668/

[4] BATCHELOR, Stephen. The Atheist Pilgrim. Acesso em:  https://tricycle.org/magazine/atheist-pilgrim/

[5] IYER, Pico. The Long Road to Sitting Still. Acesso em: https://tricycle.org/magazine/long-road-sitting-still/

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