Arte Zen

 

Prefácio

Temporalidade, vazio e o sublime reconhecimento da arte além de si mesma – ou talvez a despeito de si mesma. Neste ensaio, Danielle Seichō nos revela um  momento do tempo e sua frágil realidade a partir da proposta das obras de Barnett Newman e o efetivo processo de descentralização da arte.

Por descentralização quero dizer todo e qualquer esforço artístico em remover da obra sua limitada afirmação conjuntural, reapresentando-a como um amplo momento além dos limites egoístas da percepção.

E o que é o tempo na arte? “O tempo é o próprio quadro”, diz Newman. Talvez essa a relação última entre arte e o momento seja, como afirma Danielle Seichō, citando o filósofo Jean-François Lyotard, a “relação espectador-obra, sem intermediário, sem mensagem ou interpretação”.

Em uma expressão gestáltica da arte como parte – e muito além – de um todo, a obra torna-se o tempo. Em meu ensaio “A Arte Desconstruída” (2006) eu afirmo:

“Quando a arte se desfaz em suas várias partes, podemos discernir melhor o quanto a vida pode ser um campo fértil para as manifestações criativas do Ser. Sim, tenho convicção de que o objetivo da arte tanto em sua prática como em sua filosofia é levar o ser humano  a um crescimento perceptivo, fundamentado na perspectiva metaconceitual característica da mente (…) não-dualista.”

Esta convicção de que a arte incorpora tempo e percepção, transcendendo as meras expectativas do indivíduo, torna-se reafirmada neste maravilhoso ensaio, onde a própria experiência da arte é definida como uma sublime integração espaço (vazio) – apreensão (fruição plena) – tempo (em sua reconstituição atemporal). A abstração como expressão pura da experiência sensível humana.

Os paralelismos com as mesmas descobertas feitas pela arte zen, séculos antes, tornam-se claros. Ambas as linguagens buscam descobrir aquela plena significação do objeto observado, ou seja, uma significação transformada, essencial e além da mera significação comum.

Fico honrado em apresentar a vocês este belo, intuitivo ensaio de arte. E convido a todos o ler com cuidado e plena atenção. A arte é uma porta para a mente zen. Seja

feita pelo pincel de um monge, ou expressa nas ousadas intenções pós-modernas. O tempo é a arte; e o tempo na arte é também a sublimação do olhar que contempla. Abra os olhos, afine seus sentidos. Se assim fizer, você será capaz de perceber a maravilha da vida contida na fluidez de cores, movimentos e palavras expressas no universo criativo humano.

Monge Kōmyō – Setembro, 2022.

 

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Arte Zen

Barnett Newman: o Sublime em Lyotard

“O tempo é o próprio quadro”

 

Colocar a questão do tempo na centralidade do pensamento sobre a arte pós-moderna foi a grande contribuição que a obra do artista norte-americano Barnett Newman trouxe como reflexão à arte contemporânea.   Instigado pela sua obra e pensamento, o filósofo francês Jean-François Lyotard abre uma discussão sobre a transversalidade da estética do sublime na concepção da temporalidade da obra de arte.

Sua pesquisa surge a partir do texto de Newman “The Sublime is Now”, publicada em 1948, um ano antes da conclusão de sua obra de grande magnitude chamada “Vir heroïcus sublimis – Homem, Heróico e Sublime” –   pintada em uma tela de dimensões esmagadoras [2,40m x 5,40m].  A composição dessa obra consiste em um único campo de cores quentes levemente moduladas [colorfields] e separadas por faixas verticais e estreitas [zips].  Esses dois elementos, funcionando como uma única entidade, marcam a autonomia e o valor expressivo e espacial da cor, onde os “zips” ao mesmo tempo que dão escala ao trabalho, servem de contraste ao “campo de cores” maciço.

Muitos críticos contemporâneos de Barnett Newman referem-se à emancipação dos elementos pictóricos como sua tentativa de capturar o tangível e o intangível, “espírito e matéria” e a grandiosidade como a epítome dessa luta.  Essa conjuntura fez emergir reflexões filosóficas profundas e complexas sobre o sublime na contemporaneidade.

A partir da obra de Newman, a questão do tempo se torna um diferencial na arte contemporânea.  Muitos eram os artistas vinculados ao expressionismo abstrato norte-americano que estavam voltados para a questão do tempo. Era preciso investigar, distinguir e diferenciar as inúmeras formas desse tempo em seu emaranhamento com a pintura. Era preciso separar seus cortes móveis do contínuo temporal e encontrar os “lugares no tempo” constituintes da obra.

Até então essas obras apresentavam seus elementos comprimidos em um tempo-espaço cartesiano, tendo seu movimento temporal intrinsicamente ligado às representações narrativas.  A diferença à qual se distingue Newman de todo panorama da vanguarda artística é o salto qualitativo de seu olhar sobre a problemática da estética desse período. A resposta se define quando Newman afirma que “o tempo é o próprio quadro”.   A partir desse novo estatuto da pintura concebido pelo artista, Lyotard apresenta um novo modelo, uma nova abordagem na relação espectador-obra, não mais vinculado somente à visão e a espacialidade, mas recorrendo a outras esferas dos sentidos numa alusão à temporalidade.  Para essa nova abordagem, Lyotard propõe uma escuta da obra. Não tão simples assim, é preciso uma pré-disposição, uma permanência, uma tardança para que a escuta se dê.  Essa atitude ou modus, o filósofo chama de “obrigação”.

Lyotard desenvolve a ideia de obrigação, para que a dimensão temporal seja revelada pela escuta. Seu pensamento analisa a dinâmica constituinte da fruição nas obras pictóricas pós-modernas, já emancipadas das narrativas, e descreve como as imagens são apresentadas; claras informações de que tudo está contido ali, formas, cores, materiais, sem nenhum recurso figurativo e puro em abstração. São as imagens-percepção, elementos constituintes que se desdobram em seguida em movimento.  Contudo, sem narrativa, não há muito a se fazer, o movimento do olhar se perde, se distrai na sua procura por um espaço homogêneo, num tempo homogêneo, à procura por um significado, um sentido. Inspirado nos trabalhos de Newman, Lyotard propõe uma abordagem que não remete à uma significação da obra, muito menos à uma instigação emocional.  Sua proposta diz diretamente a relação espectador-obra, sem intermediário, sem mensagem ou interpretação.  A proposta do filósofo é um convite à uma entrega, uma espera pela ocorrência, um convite à uma escuta que faz mais jus ao tempo que ao espaço.  À essa escuta, como experiência temporal da obra, Lyotard acrescenta um novo elemento, possível somente como momentum resultante da escuta complacente, a esse fenômeno Lyotard chama de “presença”, a presença do informe na ausência.  Ele define nestes termos:

“A presença é o instante que irrompe o caos da história e lembra ou chama apenas, que “há” antes de qualquer significado daquilo que há.  É uma ideia que podemos qualificar de mística, já que se trata do mistério do ser.”

A escuta da obra se configura como atitude da espera da ocorrência, do instante ou da presença.  Essa espera não é vazia, mas cheia de potencial de ocorrências.  Não se sabe como a presença se dará, neste sentido ela se veste de indeterminação.  A indeterminação como elemento imbricado na origem da ocorrência revela a natureza do potencial de abertura, a secreta surpresa de como a ocorrência irá se apresentar é o que a torna uma experiência da ordem do “mistério do ser.”

Para ele a obra é uma ocorrência que se apresenta suspensa no tempo.  O filósofo explica que essa suspensão se dá no instante anterior à ocorrência.  Esse é o instante de imanência pura e originária do caos primordial; o momento da criação, como relatada no Gênesis.  Ao resgatar este instante, Newman o diferencia como “tema”, ou um “enigma de criação”. Esse instante de pura imanência é o momento em que a obra, em suspenso, se apresenta como silêncio, uma pausa antes do que está por vir.  Essa liberação do tempo de sua mistura com o espaço e com a forma, quando deixa de correr homogeneamente para se tornar suspensão ou duração, suscita uma afecção em relação à obra, um afeto ligado à espera, que antecede o questionamento do que está por vir; momento de temor pela indeterminação e de dúvida pela surpresa.  Após a ocorrência, o jogo prossegue, as sensações, afecções, reminiscências e toda ordem de fragmentos se constituem como o “depois”.   Tanto para Lyotard, quanto para Newman, o sublime estaria contido nessa ocorrência inicial, na apresentação do instante.

Newman afirma que seus quadros não se referem à imagem, à manipulação do espaço ou à narrativa, mas à sensação no tempo.  Para ele há um silêncio que ecoa da tela, que se faz presente na ausência de uma narrativa, mas que se refere às afecções da ordem do sublime.  Estas afecções seriam suscitadas por lugares tidos como sagrados ou espaços constituintes de experiências da ordem do secreto.  A obra intitulada Lamma Sabachtani é representativa, faz referência ao momento em que Jesus, sabendo do que aconteceria, pergunta a Deus: “Por que me abandonaste?” Apresenta apenas a indicação “Sê”. Nada a indagar, interpretar ou significar, apenas o instante da origem das ocorrências em um espaço sagrado, em um tempo indeterminado. O lugar é o tempo.  O tempo é o próprio quadro.

Lyotard aponta à condição da obra de arte em seu percurso histórico como complacência do belo, desde a renascença até as portas da modernidade, como representação e narrativa. A perfeição da forma, a intensidade da expressão, a pluralidade de afecções entrelaçadas por mistos de impressões-sensações manteve a obra de arte subjugada a interpretações contaminadas pelo logos. Contudo, o abstracionismo pós-moderno trouxe uma liberação das simultaneidades dos elementos da obra e isto bastava para os artistas dessa estética; para Barnett Newman, não.  Numa inversão da ordem de apreensão da realidade, onde primeiro, as ideias e conteúdos acumulados pela história em sua linearidade temporal antecipam a experiência, o pintor propõe uma subversão dessa ordem, colocando o instante que configura a experiência de sua obra como antecedente a ocorrência e seus desdobramentos. Esse instante na obra de Barnett Newman é afirmado na filosofia de Lyotard como “now”, conceito este que se coloca próximo ao misticismo ou de uma ideia de sagrado.  Essa aproximação da estética do sublime com a experiência mística se dá por conta da ausência, da implicação do nada devido à falta de comandos da consciência.  A suspensão do tempo pela obra de arte, sendo ela própria esse tempo que se suspende, traz à nossa intuição, no jogo provocado pelo sublime, a possibilidade de um devir vazio, a possibilidade de uma não ocorrência. Esse nada acontecer justifica o sentimento de angústia e ao mesmo tempo prazer, na espera ansiosa pelo devir, pelo indeterminado, uma súbita surpresa. Nesse misto de prazer e desprazer, num jogo de forças entre a imaginação que é impulsionada ao infinito, e que fracassa, e o entendimento que não mais encontra a conformidade das formas configuradas pela imaginação, recorre a razão.  Esta, por compreender a condição humana, em sua finitude por um lado e sua grandiosidade por outro, a resgata e a faz gigante no jogo do sublime, que por último se faz reconhecer no interior da obra de Barnett Newman.

 

Texto de Danielle Seichō 清 調. Praticante na Daissen Ji.Escola Soto Zen.

 

 

Bibliografia:

BURKE, Edmund. Investigação filosófica sobre a origem de nossas ideias do sublime e da beleza. Tradução: Daniel Moreira Miranda. São Paulo; Edipro, 2018.

DANTO, Arthur C. O abuso da beleza. Tradução:  Pedro Süssekind.  São Paulo: Martins Fontes, 2015.

KANT, Immanuel.  Crítica da Faculdade de Julgar. Tradução:  Daniela Botelho B. Guedes.  São Paulo: Editora Ícone, 2009, 336p.

LINO, Sulamita Fonseca.  O sublime e a pintura: entre a sensação no tempo e a destruição da beleza. Viso: Cadernos de estética aplicada. Revista eletrônica de estética. Número 28, jan-jun/2021. < http://www.revistaviso.com.br/ > Acesso: 8 de março 2022.

LYOTARD, J.F. O Inumano: considerações sobre o tempo. Lisboa: editora Estampa, 1997.P

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