Mitos sobre o Budismo: O Que Pensam os Leigos

 

Antes de começar de fato a praticar junto à comunidade Daissen, eu nutria muitas informações completamente equivocadas sobre o Budismo. Muitas noções oriundas do senso comum e restritas ao que via em desenhos animados e no cinema – sobretudo em filmes como O Pequeno Buda (1993), de Bernardo Bertolucci; Kundun (1997), de Martin Scorsese; e Sete Anos no Tibet (1997), de Jean-Jacques Arnaud. O acesso que eu tinha ao Budismo, era, portanto, filtrado e geralmente focado no Budismo Tibetano. Inclusive, quando via algo sobre o Budismo Theravada tailandês, por desconhecimento, enxergava ali também o tibetano, pela semelhança das cores.  Logo, para mim, o Budismo era algo homogêneo, reduzido ao Tibet e ao Budismo tibetano, de caráter altamente esotérico e ritualístico, com práticas voltadas para espíritos, outros mundos e para a identificação de Budas reencarnados. A figura que logo me vinha à mente era a do Dalai Lama, personalidade mundialmente conhecida e respeitada, que sintetizava, para mim, o que seria esta religião. Recordo-me que, na adolescência, completamente por acaso, deparei-me na biblioteca da escola com um pequeno livro sobre a vida de Sidarta Gautama, e guardei na memória apenas o fato de que ele fora um humano comum antes de se tornar o Buda, um ser de natureza divina tal qual o Cristo dentro do Cristianismo.

Para tentar entender se, ainda hoje, alguns destes mitos continuam de pé, e se há outros, entrevistei – separadamente – três pessoas de minha convivência e que não são praticantes budistas, professando inclusive outras religiões ou nenhuma. Fiz perguntas sobre o Budismo com o intuito de identificar suas crenças e noções sobre algumas das bases práticas e dos pensamentos budistas.  A respeito, então, de quem seria o Buda, uma das pessoas que entrevistei também fez a aproximação da figura dele à do Cristo e até mesmo à de Zeus, no sentido de serem entidades sobre-humanas que ocupariam uma posição de grande líder, de ser soberano e que, de algum modo, ainda agiria sobre a vida dos seus seguidores. Para ela, aqui chamada de P1[1], o Buda teria se tornado um ser iluminado, bom, puro e símbolo de valores como paz e sinceridade. Aqui, vemos uma aproximação com o que respondeu P3, que o considera também como um espírito de luz, mas no sentido de alguém que teria alcançado o máximo da evolução e que reencarnaria, sucessivamente e por vontade própria, com o intuito de ajudar os humanos na Terra. Estas respostas, apesar de revelarem alguns dos mitos mais comuns sobre o Buda e o Budismo (Buda como uma figura divina; a existência da reencarnação como forma de uma mesma pessoa voltar à vida em momentos diferentes), também revelam um certo conhecimento sobre algumas crenças centrais importantes para o Budismo: a de que o Buda foi alguém que alcançou um estado de paz e sabedoria percorrendo um caminho que a maioria das pessoas ainda desconhece; e o ideal do Bodhisattva, ou seja, o ideal de buscar o despertar ou iluminação não para benefício próprio, mas para benefício dos outros seres.

Sobre o que seria de fato o Budismo para as pessoas entrevistadas, apesar de algumas variações, percebo que houve um consenso acidental, já que todas veem o budismo como uma filosofia de vida, voltada para a busca de uma espiritualidade que deseja mudar a forma de ver o mundo; que deseja o autoconhecimento e o equilíbrio interno; e que deseja construir um comportamento de paz, transcendendo a si mesmo. Em suas respostas, as pessoas entrevistadas destacaram ainda o fato de a relação com o cotidiano ser algo importante e que a meditação exerce um papel fundamental nesta prática.

Sobre a meditação em si, P2 e P3 afirmaram que teriam dificuldades em meditar por se considerarem impacientes ou excessivamente agitadas. Em suas falas, aparecem os mitos de que meditar seria não pensar em nada, exigiria ser uma pessoa calma e pacífica – mitos estes que eu mesmo também tinha, considerando-me incapaz de meditar exatamente porque sofria de pensamentos acelerados e sentia terrível inquietação ao tentar ficar imóvel sem fazer nada.

Demonstraram, ainda, a crença difundida de que, para meditar, é sempre necessário ter um ponto específico de concentração como recurso para ajudar a interromper o pensamento. Embora esta seja uma possibilidade meditativa presente no Budismo, não representa todas as práticas conhecidas e, no caso específico do Zen, não corresponde à sua prática meditativa por excelência, o zazen – marcado pelo apenas sentar-se.

Por outro lado, em suas respostas – e aqui incluo o que disse P1 -, elas disseram que a meditação permite que se alcance o equilíbrio mental, ademais de ser fundamental para o processo de autoconhecimento e também para expandir a consciência para além de si mesmo, buscando integrar o outro e o mundo. Elas reconheceram ainda que a meditação é uma prática que exige dedicação, certo esforço, e não precisa ser algo que gera desprazer para ser realizado, podendo, inclusive, ser feita em meio à natureza.

 

Como relatei mais acima, para mim, só existia o Budismo Tibetano e o Dalai Lama era a figura budista mais conhecida e mesmo o símbolo do próprio Budismo. Ao serem perguntadas sobre o que seria o Zen Budismo, as três pessoas afirmaram que se trata de uma vertente ou um tipo de Budismo, porém, não souberam dizer nada sobre o que ele teria de específico. Fiquei surpreso porque esperava que elas mencionariam, pelo menos, a associação muito comum entre zen e calma, serenidade, o que não aconteceu. E também não fizeram qualquer menção ao Dalai Lama quando perguntadas sobre monges budistas conhecidos, citando, todas, o nome da Monja Coen, exclusivamente. O que pode fazer pensar sobre o impacto que a internet e as redes sociais têm tido no imaginário atual sobre o Budismo – entre os brasileiros, pelo menos. Poderia ser uma questão geracional, já que duas das pessoas que entrevistei têm entre 20 e 25 anos; porém, essa hipótese não se confirma já que a terceira pessoa tem mais de 40 anos de idade.

Percebo pelas respostas das três que, em seu imaginário, predomina a ideia de que monjas e monges budistas são indivíduos sempre pacíficos, bondosos, pacientes e equilibrados – mito este que também nutri por muito tempo, sendo, inclusive, chamado de “monge” como uma chacota, já que eu parecia sempre calmo e pacifico ao olhar dos outros, mesmo de meus familiares. As respostas delas apontam que este mito permanece vivo e é um dos mais persistentes, já que ainda o escuto diversas vezes em variados contextos, inclusive, em relatos de membros da comunidade Daissen que entraram para a vida monástica.

As perguntas que fiz e as respostas que eu obtive revelam que, de fato, os mitos mais difundidos sobre o Budismo no mundo ocidental permanecem fortes: Buda como uma figura divinizada; a reencarnação como uma crença budista; a meditação associada ao não pensar em nada; monges como pessoas imperturbáveis. Porém, apesar das barreiras culturais, das informações veiculadas em massa e da ausência de estudos aprofundados, o imaginário dos leigos (ao menos, das pessoas que entrevistei, todas com, no mínimo, formação superior em andamento ou concluída) é também penetrado por uma compreensão surpreendentemente precisa sobre o fato de o Budismo propor uma nova forma de ver e agir no mundo, pautada pela busca do autoconhecimento, do equilíbrio mental, da paz e do alívio do sofrimento. Isso reforça a importância do trabalho de um veículo como o Budismo Hoje, que contribui para a difusão de informações corretas sobre o Budismo para aqueles que possam se interessar, e, sobretudo, a riqueza e relevância dos ensinamentos do Buda e dos mestres que o sucederam.

 

Texto de Uendel de Oliveira Silva. Praticante na Daissen Ji. Escola Soto Zen.

 

 

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