A Via da Misericórdia

Quando comecei a estudar a história do Buddha Shakyamuni fiquei de certa forma enamorado de Sujata. Para mim ela encarna a figura da misericórdia e da compaixão. Curioso como em quase todas as grandes religiões (ou, se preferirmos, em todas as grandes correntes espirituais) existe uma figura feminina cheia de senso prático, sensível às necessidades do outro. Para quem conhece o cristianismo, Maria é um exemplo: “eles não têm mais vinho”, diz Maria a seu filho, numa festa de casamento onde, por falta da bebida, os noivos corriam o risco de passar vergonha. O evangelho conta que, nesse casório judeu que durava cerca de uma semana, já no final das comemorações, Jesus faz seu primeiro milagre. Não, não estou a pregar aqui. Mas me admiro dessa delicadeza feminina, desse olhar que a nós, os “machos”, falta.

Nenhum caminho espiritual, a meu ver, é autêntico se não nos leva à misericórdia. Primeiro conosco (pois somos nossos piores juízes) e depois para com o outro. Se minha prática espiritual não me enche de compaixão, não me predispõe ao perdão e à compreensão, há algo de muito errado nela. A prática da misericórdia diviniza-nos, porque nos faz mais humanos. Porque esse é o caminho para o divino: tornarmo-nos mais e mais humanos.

Vivemos tempos difíceis onde, por vezes, a força bruta, a indelicadeza, a grosseria e a insensibilidade diante do sofrimento alheio são exaltadas. Tempos onde a solução para tudo parece estar no cano de um fuzil. Entretanto, se olharmos a História, veremos que toda tentativa de pacificação mediante o uso da violência só gerou mais violência, ódios eternos e desejos de vingança.

No museu Hermitage, em São Petersburgo, há uma famosa pintura de Rembrandt chamada “O retorno do filho pródigo”. Nele vemos o filho pródigo (gastador), ajoelhado, todo maltrapilho, diante do seu pai a quem exigira, tempos antes, sua parte na herança e a dilapidara da pior forma possível. Ali, ajoelhado, roto, envergonhado, ele é abraçado pelo pai. A parábola de Jesus, que inspirou o quadro, conta que o pai, todos os dias, ficava na sacada vendo se o filho voltava. Quando, por fim, avistou-o, o pai desceu correndo foi ao encontro daquele filho ingrato e abraçou-o. Sequer deixou que ele lhe pedisse perdão. Tão humano e, no entanto, mais que humano!

Há uma outra história, dessa vez passada em Ouro Preto, Minas Gerais: o filho de uma viúva resolveu ir embora. Cansou-se de estar ali, queria conhecer o mundo. Ele se foi, sem nem se despedir! A partir daquele dia, Dona Maria, a viúva, nunca mais fechou a porta da sua casa. Dia e noite ela permanecia aberta. Os vizinhos, preocupados, diziam: “Dona Maria, feche a porta ao menos à noite! Vai que entra um ladrão! ” Ao que ela retrucava: “Eu quero deixar essa porta sempre aberta porque, caso meu filho volte à noite, ele não a encontre trancada e possa entrar em casa. ”

Somos capazes de tanta misericórdia? Somos capazes de perdoar mesmo quando todos condenam? Somos capazes de quem sabe, passar por bobos e fracos aos olhos de uma sociedade que, de tanto pretender ser humanizada e inclusiva, dá-nos mostras de ser exatamente o contrário? Se meu ideal de justiça é passar de oprimido a opressor, então nada vai mudar. Nada. Se minha prática espiritual, se meu zazen não me humaniza, então (desculpem, é a opinião de um leigo) estou sentando em vão. Um caminho espiritual sincero não pode tornar-me intolerante, insensível, intransigente, inflexível.

Quando eu era religioso católico, um professor disse-nos, certa vez, que a Regra (do Mosteiro) era para o monge e não o monge para a Regra. Portanto, quando necessário, ela podia ser adaptada, mudada, sem perder a sua essência. Há pessoas que temem a misericórdia, temem ser tomadas por fracas. Contudo, se existe algo de profundamente desconcertante, de profundamente revolucionário, é abraçar e perdoar quem nos fez algum mal. A misericórdia é tão ameaçadora que os que a praticam muitas vezes são considerados inimigos do Estado. Porque muitos não imaginam um mundo sem algo para odiar. Pare e pense: o que nós faríamos sem nossos ódios atávicos e viscerais?

“Morreu no abraço o mal que eu fiz”, diz a letra de uma música cristã, de autoria de Valdeci Farias. Só se vence o mal com o amor (por mais clichê que esta frase possa parecer). O abraço desarma, porque não é possível mais levantar a mão para golpear quando se está envolvido nos braços do perdão.  E ali, abraçados, a frieza de corações endurecidos vai amolecendo no fogo cálido do perdão.

 

Texto de Zaqueu de Paula Collecta. Praticante na Daissen Ji. Escola Soto Zen.

 

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