A mesma lua

A prática que torna atual e real o caminho de Buddha

 

Com passos cuidadosos, para que nenhum graveto sendo quebrado acusasse sua posição, ele tentava alcançar aquele estranho, metros à sua frente. Empunhava o cabo de sua lâmina com uma triste familiaridade, enquanto já conseguia prever o desfecho do encontro que estava por vir: sangue, gritos, talvez súplicas e até mesmo choro. Em seguida, mais um corpo e mais um dedo cortado, a fuga, o medo de ser apanhado, as rondas noturnas pela aldeia do assassinado, quando veria o silêncio da noite ser substituído pelos prantos dos familiares da vítima. No dia seguinte, da segurança de um esconderijo improvisado, imaginaria os órfãos que fez e a viúva que, tentando se manter sã pelo bem dos filhos, busca afastar os pensamentos suicidas. Ali, em uma vida que alternava tocaia, ataque e fuga, contemplaria sua mórbida guirlanda…

Por volta de um milênio depois, em um país no extremo oriente, outro homem percebe que talvez não sobreviva a mais uma noite no meio da neve. Já não sente os pés e imagina que logo os perderá – congelados e necrosados – se continuar ali em pé. Mas recuar nunca foi uma possibilidade, assim como não o é entrar na caverna sem ter sido formalmente convidado. Não, melhor perder os pés. Sentindo o ar gelado entrar pelas narinas, tentando controlar os tremores e quase desmaiando, ele saca o seu punhal e em um só movimento colore a neve com um vermelho vivo. Pela primeira vez, o homem de dentro da caverna lhe dirige o olhar…

Mais séculos se passam. Em um pequeno país vizinho, um garotinho mostra seus talentos recitando poesias chinesas para sua mãe. Naquele final de tarde, enquanto versos estrangeiros saíam de sua boca, ele não poderia imaginar que em dois anos sua mãe também o deixaria e que, cheio de dores e questões, iria se mudar para um monastério. Menos ainda seria capaz de prever que, descontente com as explicações dadas pelos seus mestres, em um futuro não muito distante, largaria não só o monastério e a tradição que seguia, como enfrentaria o mar e as perigosas estradas que separam Japão e China para só então encontrar as respostas…

Mais tempo passa em nossa narrativa, e chegamos ao século passado. Febril, acordando e voltando a desmaiar, ele já perdeu a conta dos dias. A cabeça atravessada por um tiro, nunca suporiam que ele ainda respira. Como foi parar ali, se pergunta. Órfão, criado na casa do tio entre jogatinas e prostituição, de maltrato em maltrato chegou a um monastério, mas não o ordenaram. Sozinho, escondido, fazia zazen até ser descoberto. A pessoa que até então, também, o maltratava agora o reverencia. O poder do zazen muda sua vida. Mas agora, tornado soldado em uma guerra insana – como todas as guerras –, luta para continuar respirando…

Um salto de décadas e chegamos ao hoje. Aqui, eu, você que me lê, nossos companheiros de sangha, nosso mestre, cada um de nós carregando não só a história de nossa vida atual, como também das incontáveis manifestações passadas, quando nos sentamos em zazen, nos colocamos no mesmo lugar que já foi ocupado por cada uma das pessoas de cujas vidas narrei fragmentos tão dramáticos. Nós estamos buscando algo dentro de nós mesmos que eles também buscaram. Vemos as pegadas, por vezes a calda e, se vacilamos, tudo se perde novamente. Depois de muito esforço – talvez anos, talvez décadas, talvez vidas – laçamos o boi e travamos uma angustiante batalha para trazê-lo para casa. Se persistimos suficientemente, se nos entregarmos à prática como quem presenteia seu mestre com um braço, poderemos abrir mão do laço e do chicote, pois o boi se tornará manso. Todo o esforço e a entrega darão lugar ao esquecimento de si e do boi que possibilita, então, o estado de se ser iluminado por todo o universo.

Assim foi que aconteceu com o menino que declamava poesia chinesa e que se tornou monge, quando ao finalizar uma sessão de zazen, em um país estrangeiro, após anos da mais séria prática, foi até seu mestre, acendeu um incenso e revelou que “corpo e mente foram abandonados”.

Voltando à primeira narrativa do texto, o assassino em série percebe que não consegue alcançar sua vítima em potencial e ordena que ela pare.

Como resposta escuta daquele homem, à sua frente, que há tempos já parara e que, de fato, é ele próprio, Angulimala, quem ainda não parou.

Não parou de causar sofrimentos. Aquela não foi uma frase de efeito, mas a mais profunda verdade que a mente perturbada de um homem que carregava muitas mortes nas costas poderia ouvir. E uma verdade sendo proclamada em uma voz cristalina que só poderia vir de alguém liberto de todo medo e aversão. Sua lâmina atirada fora toca o chão ao mesmo tempo em que seus joelhos, logo seguidos por suas lágrimas. Ordenado monge, ainda havia muitas marcas kármicas das quais se liberar, mas com muita devoção, aquele homem, que havia levado dor e medo por onde passara, também viu o boi, o alcançou, subiu em suas costas e voltou ao lar. Um dia, ele olhou para a lua e percebeu que ele e ela eram um só.

A mesma lua foi vista por Taiso Eka nas três noites em que esperou pela aprovação de Bodhidharma, cercado pela neve na entrada da caverna de seu futuro mestre. Uma vez aceito como discípulo, ele praticou com toda sua energia, até que com uma prostração silenciosa atingiu a medula de seu mestre e se tornou seu sucessor.

E quantos são os sucessores de Kodo Sawaki que mudaram, e continuam mudando, as vidas de tantos japoneses e ocidentais? Sawaki precisou sobreviver física, mental e emocionalmente aos abusos sofridos na infância e a uma guerra. Mas, já idoso, disse que não poderia ter tido uma vida melhor. Pois ele sabia que aquela trajetória o permitiu conhecer o Zen e se entregar a ele com todo o seu ser.

Quais histórias levam cada um de nós ao nosso zafu um dia após o outro? Como reagiremos aos primeiros kenshōs? Nos envaideceremos e, com isso, perderemos as pegadas do boi ou nos deixaremos levar pela prática e pelos ensinamentos de nosso mestre até o despertar? Se assim o for, poderemos voltar ao grande mercado do samsara e, observando os olhares e passos perdidos, veremos a nós mesmos naquelas pessoas a quem estenderemos nossas mãos.

Até lá, inspiremo-nos nas histórias dos que percorreram o Caminho antes de nós. Pois quando praticamos, estamos tornando atual e real o caminho de Buddha e de cada um de seus discípulos.

 

Texto de

Monge Muryo 無量. Monge na Daissen Ji. Escola Soto Zen.

 

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