A Influência Do Zazen Nas Práticas Do Sufismo Islâmico

 

Antes de encontrar o zen, estudei o sufismo islâmico. Na verdade cheguei a me iniciar em uma ordem sufi (tariqqat) e fiquei 14 anos sobre a orientação de um guia (Sheykh ou Pir). Existe uma diversidade grande de ordens sufis, não sei precisar a quantidade, mas ouvi do meu antigo guia que seria na casa das centenas espalhadas por vários países do mundo islâmico, além de atualmente está presente na Europa e América.

Quando comecei minha busca espiritual procurei ler sobre vários caminhos e tradições, e de todas que conheci havia me apaixonado pelo zen. No entanto naqueles anos (2006) eu não conseguia encontrar um mestre zen para estudar e apreender sobre o Dharma, eu era muito novo, não trabalhava e a internet ainda não era tão popular. O zen tornara-se um sonho distante. Naquele mesmo ano um membro de uma ordem sufi levou seu guia para palestrar na cidade em que eu morava e pude assistir a palestra. Não gostei do conteúdo que ouvi, achei muito voluntarista e devocional, mas fiquei atraído pela figura misteriosa do Sheykh. Era como se eu estivesse na presença de algo “antigo” e raro. Moral da história foi que me interessei pelo Sufismo e fui me aprofundar nesse caminho, experiência que durou 14 anos até eu me reencontrar com o Zen e “voltar” para minha antiga paixão, que há alguns anos tem se tornado o caminho de transformação de minha mente.

Uma das coisas, no entanto, que mais me chamava atenção nas conversas que eu tinha com o meu antigo guia quando estava no sufismo (ele faleceu ano passado em Buenos Aires), era sobre a natureza e as origens das práticas que fazíamos na Tariqqat. Uma das práticas diárias era o Dhiker (recordação), uma série de “mantras” baseados nos chamados 99 nomes de Allah, com quantidade de recitações específicas para cada nome. Os nomes referem-se a “qualidades” divinas que são recordadas através de recitação e mentalização. Por exemplo o nome As-Salaam (Aquele que tem Paz) pode ser repetido de forma ritmada, inclusive com movimentos corporais e respiração cadenciada, a fim de trazer para a mente a qualidade Divina da Paz e etc.

Em uma reunião específica o guia do grupo nos disse que a ordem que fazíamos parte era conhecida na Ásia Central como a Tariqqat silenciosa. Daí perguntei a ele o porquê disso, e ele me respondeu de forma reticente “A nossa ordem é a que mais se parece com o Zen Budismo”, e não falou mais nada. Em um outro momento, conversando sobre algumas práticas que um dia faríamos quando estivéssemos mais experientes, ele relatou que aprendeu com o mestre dele, que algumas práticas da ordem Naqshiband tinham influência do Budismo, especificamente das técnicas de meditação silenciosa (Zazen), fruto do intercâmbio que houve em regiões da Ásia Central, palco de trocas entre sufis e budistas. Nesse dia fiquei positivamente surpreso, e bem curioso com as práticas espirituais dos budistas, especialmente o zen que era minha velha paixão. Me perguntava sobre as práticas que um dia faria na ordem sufi que teria influência budista, algo que nunca foi falado especificamente. Ninguém nunca falou qual prática era exatamente de influência budista ou não, apenas fazíamos sem questionar. E assim foi.

Algumas práticas começaram a me chamar atenção, pelo caráter silencioso e “mental”, era quase como um exercício de controle da mente. Três me marcaram, quais sejam: “Consciência da Respiração”, “Pausa do Tempo” e “Retorno a Terra Natal”. Na verdade, esses nomes não me foram dados de maneira clara em um primeiro momento, mas as práticas eram bem definidas e esses definições apareciam quase como corriqueiras. Falava-se que um dervixe deveria estar cônscio de cada respiração que fazia, dizia-se que a respiração era um veículo para a presença divina.

A “Pausa do Tempo” era apresentada como uma maneira de livra-se do pensamento condicionado. Os condicionamentos sociais eram uma limitação para a percepção de realidades mais profundas, então nos era incentivado observar o fluxo de pensamento e as tendências mentais. O “Retorno a Terra Natal” era a maneira como o mestre se referia à prática de buscar refugiar-se do mundo dentro de si mesmo. Lembrar de si mesmo a todo instante era uma maneira de estar presente aqui e agora, e o aqui e agora, através de recordação de si mesmo, era um retorno a sua terra natal. O mestre dizia que recordar de si mesmo é a melhor maneira de esquecer de si mesmo, e esse era o caminho do “Faná” ou aniquilação do ego (Nafs), ou pequeno eu egoísta e ilusório. Os sufis diziam que quando um praticante esquece de si mesmo ele alcança a aniquilação (Faná) do eu menor (ego), e imediatamente entra em “Bacá” ou presença Divina. A presença Divina só seria possível na medida em que não há um “Eu” operando.

Depois de um tempo lendo e pesquisando sobre sufismo, pedi ao Sheykh uma indicação de leitura sobre a nossa Tariqqat. Ele geralmente indicava textos tradicionais ou escritos por mestres da linhagem ao qual pertencia. Contudo, surpreendentemente, me passou um livro diferente daqueles que ele costumava indicar. O livro chamava-se “As regras da ordem Naqshiband” de Omar Ali-Shah. Esse livro apresentava, dentre outras coisas, onze práticas espirituais tradicionais da ordem/tariqqat, dentre elas havia Hush Dar Dam (Consciência da Respiração), Ukufi Zamani (Pausa do Tempo) e Safar Dar Watan (Retorno a Terra Natal). Fiquei chocado ao saber que aquelas práticas que eu fazia, sem dar nomes, eram um conjunto de práticas específicas daquela ordem. Foi interessante ler sobre as práticas, e descobrir benefícios que eu nem mesmo tinha consciência.

Depois que li esse livro comecei a pesquisar um pouco sobre as origens daquelas práticas que eu fazia, e decidi seguir a pista que o mestre havia apontado alguns anos ates, qual seja: a influência budista nas ordens sufis. Nas leituras que fiz percebi que o budismo e o sufismo tinham uma história de influência, se não mútua certamente do budismo para o sufismo. Num livro de Frank Usarski, um pesquisador de História budista, o autor demonstra através de uma gama de fontes históricas as complexidades das relações entre o mundo islâmico e budista, destacando os pontos de relacionamento frutífero no plano intelectual e artístico. Foi através da leitura desse livro e outros artigos que tomei ciência da realidade daquele conhecimento oral que eu havia recebido do meu antigo sheykh, havia uma influência budista no sufismo. O historiador Usarski afirma:

“budistas e mulçumanos conviveram sem maiores conflitos também no vale de Bamiyam (hoje parte do Afeganistão) e no antigo reino de Gandhara (hoje, parte do Paquistão). Vale lembrar ainda o relacionamento frutífero entre círculos budistas e grupos de místicos mulçumanos (sufis), geralmente tratados com simpatia. Traduções de obras budistas indianas para o árabe refletem o engajamento entre budistas e mulçumanos” (p. 122)

A confirmação última desse fato se deu quando me afastei do sufismo e encontrei o Zen. Após uma crise existencial e um total questionamento acerca do caminho que eu vinha trilhando em minha mente, decidi parar e rever a minha busca. Esse fato que ocorreu a dois anos atrás me levou até o Zen, especificamente ao sensei Genshô, fato que me arrebatou e mudou de vez minha caminhada. Os livros, os vídeos e os Dokusans com o sensei Genshô me levou de uma vez por todas ao Zen e sua prática árida e sóbria, o Zazen. A intensidade da prática me fez experimentar estados mentais antes nunca experimentados em minha vida. O primeiro Seshin que participei me fez compreender, com todo meu corpo, o sentido das práticas que tinha iniciado no sufismo, Consciência da Respiração, Retorno a Terra Natal e Pausa no Tempo, fizeram sentido total para mim, pois a intensidade da prática Zazen no Seshin me despertou para aquelas realidades que os livros e o próprio sufismo tentavam apontar em uma linguagem religiosa e monoteísta. Foi assim, experimentando a meditação Zen budista que percebi que o Dharma de Budha estava semeado em “lugares” inimagináveis. Sem saber eu já tinha sido apresentado a fragmentos dele no sufismo.

Texto de Fred san. Praticante na Daissen Ji. Escola Soto Zen.

 

REFERÊNCIA

ALI-SHAH, Omar. As Regras ou segredos da Ordem Naqshibandi. São Pedro da Serra: Dervish, 2002.

USARSKI, Frank. O Budismo e as outras: encontros e desencontros entre as grandes religiões mundiais. Aparecida, SP: Editora Idéias e Letras, 2009.

 

 

 

Pin It on Pinterest

Share This