Sutra do Diamante: Transcendendo a linguagem

 

A linguagem, talvez, nossa maior ferramenta.

A linguagem, talvez, nossa maior prisão.

Mas por que começo o texto com imprecisões, com “talvez”? Justamente porque ao usarmos palavras, precisamos trazer com elas todas as dúvidas e nesse exercício metalinguístico de usar a linguagem para discorrer sobre ela mesma, entramos em um território no qual corremos o risco de deixarmos de fora a própria realidade. O ser humano se inventou a partir das palavras e conceitos, com isso, criou um mundo, ou melhor, mundos. Mas não são raras as vezes em que notamos que ao tentar nomear, perdemos a coisa em si.

Quando a experiência é muito intensa, para o bem ou para o mal (e aqui caio, novamente, na armadilha dos rótulos), ela explicita o limite da fala, da escrita, do próprio pensamento. Só então, diante do avassalador, parecemos perceber as fronteiras e contornos de nossas habilidades comunicativas. Já se disse sobre Samuel Beckett que, em seus livros pós-guerra, sentia a obrigação de expressar o inexprimível. Como transportar a experiência humana, com toda sua dramática fragilidade e enigmática pressentida grandiosidade, para um livro? Essa teria sido a missão fadada ao fracasso, mas impossível de ser negligenciada, assumida por Beckett. Seus personagens se arrastam, vivem em uma espera, em um interstício sem fim. Sua narrativa retalha a linguagem, a esfrega por ruas de terra para, depois, a mastigar e cuspir. Talvez – de novo o “talvez”, a dúvida – por isso, tantos de nós se sintam desconfortáveis ao ler suas obras.

O Sutra do Diamante emprega a linguagem para lidar com o maior mistério da experiência humana, para tratar da nulidade e do sublime. Ele usa a própria poeira para limpar o espelho para, só então, nos revelar que nunca houve espelho onde a poeira pudesse se assentar. E, para isso, ele se repete, vai e volta, entrega para depois retirar.

As respostas do Tathāgata a Subhuti utilizam a lógica para subvertê-la e colocá-la a serviço da transmissão do incomunicável. Genshō Sensei já nos contou que certa vez perguntou a Saikawa Roshi o porquê de se falar e escrever tanto para ensinar o Dharma, tendo em vista a limitação da linguagem, ao que o mestre respondeu: “porque é isso que nós temos”. Assim, o Sutra segue palavra após palavra, página após página, levando as possibilidades da comunicação ao limite.

Há alguns anos, quando eu e Kakuji morávamos na Ásia, estávamos sentados com um grupo de monges Zen vietnamitas e alguns leigos, tomando chá e conversando. A certa altura, um dos monges se virou para os leigos e falou algo como “eu não entendo como vocês conseguem falar tanto”. Ele não foi grosseiro e nem estava bravo, simplesmente, morando anos em um monastério, se espantava com o quanto se recorria à fala para evitar o silêncio.

Genshō Sensei, ao ser perguntado sobre o que achava mais bonito no budismo, respondeu: “o silêncio”. Essa é a essência do Zen desde sua fundação, quando uma flor, um olhar e um sorriso constituíram sozinhos uma palestra e uma transmissão. Mas ainda assim, as palavras são úteis ou Shakyamuni Buddha não teria passado décadas ensinando (também) por meio delas, Dōgen Zenji não teria escrito as impressionantes páginas de seu Shōbōgenzō e o próprio Vajracchedika não teria sido concebido.

Os mestres recorrem à linguagem sabendo desde o princípio que ela não basta. Como tratar da realidade última se ela é justamente o que escapa a qualquer tentativa de narrativa, descrição ou rotulação? Por isso, não percamos de vista que estamos falando do dedo e não da lua, do barco e não da outra margem. Mas ainda assim, o dedo nos aponta a direção correta e o barco nos permite a entrega à correnteza.

A transmissão ocorre quando os ouvidos estão prontos para as palavras e só então elas transbordam suas fronteiras. Quando o jovem analfabeto deixou seu feixe de lenha cair ao ouvir a recitação do Sutra, as ilusões foram cortadas e o mundo foi mudado para sempre.

A crença em um “eu” precisa ser cortada para que o bodhisattva nasça. Buddha diz a Subhuti que se ilude o bodhisattva que afirma ter levado seres à outra margem, pois “não há um ser que tenha sido levado à outra margem”.  Nada encontrará aquele que procura ver o Tathāgata por meio da forma e que o busca pelo som. “Porque os Buddhas têm o corpo do Dharma; E a natureza do Dharma não pode ser compreendida, nem se pode fazer entender.”

 

Como as estrelas, a escuridão, uma lâmpada,

um fantasma, o orvalho, uma bolha.

Como um sonho, um relâmpago, uma nuvem.

Assim devemos considerar o mundo.”

 

Nos sentamos silenciosamente por anos, por vidas, por kalpas, para um dia termos ouvidos para ouvir e olhos para ver.

 

Entre os Livros e o Céu Estrelado

A respeito da linguagem, Dōgen reconhecia “a possibilidade de usá-la para a libertação espiritual, compreendendo a ‘razão das palavras e letras’ (monji no dōri). Para ele, a linguagem e os símbolos tinham o potencial de abrir, em vez de circunscrever, a realidade; consequentemente, eles precisavam ser reintegrados em seu lugar legítimo dentro do contexto total dos empreendimentos espirituais humanos.” (KIM, Hee-Jin. Eihei Dōgen: Mystical Realist. 2004. p. 28)

O Vajracchedika atingiu o jovem Huineng como um raio e o arremessou para o primeiro de muitos passos que o levariam a se tornar o sexto ancestral do Zen. Para nós, que ainda não temos uma mente madura o suficiente para que sutra se faça relâmpago, é preciso estudo e dedicação, cuidado e atenção para ouvir as palavras de um professor que nos guie no Caminho.

Quando encontramos nosso verdadeiro mestre, uma conexão além das palavras é estabelecida. Além disso, elas, as palavras, quando usadas dentro da relação sensei/discípulo extrapolam suas características costumeiras, pois estão permeadas por algo que vai muito além dos interlocutores: a história de sabedoria e realizações dos ancestrais. Gostaria, agora, de falar de um livro que me ajudou a experimentar um pouco da carga elétrica abrigada no sutra, “Comentários sobre o Sutra do Diamante”, escrito por Monge Meiho Genshō.

Genshō Sensei tem uma trajetória de vida que o coloca em uma posição muito especial para tratar da questão das palavras, e dos seus limites, como ferramentas para o despertar. Ele, a exemplo de Dōgen Zenji, sabe que a “linguagem e os símbolos [têm] o potencial de abrir, em vez de circunscrever, a realidade”, pois desde criança suas marcas cármicas o levaram às letras, linhas, parágrafos e espaços em branco das páginas dos livros. Quando era um menino, passava horas por dia lendo em seu quarto. Lia tanto, que sua mãe foi pedir ao bibliotecário da escola para que não lhe desse mais livros.

O menino cresceu, se embrenhou no mundo, teceu histórias de vida e lapidou, como todos nós fazemos, um personagem para protagonizá-las. Mas o mesmo menino sempre soube, em algum lugar secreto dentro de si, que havia algo mais. Tanto sabia que – como conta na obra “Além do Pico da Montanha[1] – certa noite, esperou todos da casa dormirem para, cheio de questões ainda não claramente formuladas, sair na escuridão e, deitado em um muro de contenção do terreno, contemplar o pedacinho do cosmos que era possível avistar olhando para o céu do Rio Grande do Sul, lá para as “bandas de Canguçu”. Anos mais tarde, já sendo um jovem adulto, teve olhos para ver Dom Timóteo e foi enxergado de volta por ele. Havia algo anterior à construção de qualquer personagem que o atraía para a imensidão do céu noturno e para o silêncio do claustro.

Com o passar do tempo, o, até então, personagem principal da história de sua vida foi abrindo espaço para que o menino que encarava o cosmos voltasse a ganhar força. Ali, começou a nascer o monge que mais tarde se tornaria o mestre. E é assim que, algumas vezes, a vida cria mestres Zen, entre páginas de livros e o frescor da noite do quintal do sítio de sua infância.

E a vida que cria mestres, molda discípulos também. E por nós, seus alunos, Genshō Sensei levanta-se de seu assento, em alguns passos cobre a distância de mais de 2000 anos, coloca seu manto sobre um ombro e se senta, com Buddha e Subhuti, para conversar sobre a sabedoria que nos leva à outra margem, a margem da lucidez, do despertar.

Percebo o livro “Comentários sobre o Sutra do Diamante[2], como sendo um convite para, de ouvidos abertos, recebermos as palavras do Tathāgata, palavras que, como mencionei anteriormente, muitas vezes subvertem a lógica para transmitir o incomunicável.

É um livro bonito como o são as obras feitas com o coração alimentado pela atualização da prática dos ancestrais. Mais uma vez, cumprindo com clara alegria o papel de sensei, Monge Genshō torna acessível ao leitor contemporâneo textos que fazem parte da fundação do Zen. E ele faz isso de acordo com uma de suas principais características, convidando o leitor a pensar e sentir por si mesmo e, assim que terminar a leitura, a se sentar de frente para uma parede e a se questionar profunda e seriamente: “então, quem sou eu?”.

O Sensei nos ensina, mas sempre nos lembrando de que somos os grandes responsáveis por tornar os ensinamentos parte de nossas vidas por meio da prática:

 

É você quem tem que ir lá e desmontar passado, futuro e quem você acredita que é.” (GENSHO, 2022b, p. 29)

 

 

 

Texto de

Monge Muryo 無量, Monge na Daissen Ji. Escola Soto Zen.

 

 

 

Referências:

GENSHŌ, Meiho. Além do Pico da Montanha: Ido Chega à outra Margem. Daissen, 2022.

 

______________. Comentários sobre o Sutra do Diamante. Daissen, 2022b.

 

KIM, Hee-Jin. Eihei Dōgen: Mystical Realist. Wisdom Publications, 2004

[1] GENSHŌ, Meiho. Além do Pico da Montanha: Ido Chega à outra Margem. Daissen, 2022.

[2] GENSHŌ, Meiho. Comentários sobre o Sutra do Diamante. Daissen, 2022b.

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