Crônica de uma peregrina iniciante, rumo a Santiago de Compostela

 

Sempre acreditei que as coisas acontecem para quem tem determinação, simplesmente porque você vai lá e faz. E o sonho de se permitir realizar um período sabático (o termo vem do hebraico e significa “libertação”, referindo-

se a uma pausa prolongada na vida), aproveitando minha paixão por longas caminhadas, sempre me fascinou. Até que um dia aconteceu! E, desta vez (coisa rara na minha vida de batalhadora), sem envolver nenhum grande sacrifício ou planejamento para o desafio. Fui convidada e me joguei!

Já aposentada e seguindo minha feliz carreira de jornalista freelancer, professora autônoma de português, além de consultoria em comunicação corporativa e treinamento executivo, um belo dia meu amado marido e companheiro de vida há 35 anos foi instigado por meio de um amigo a se embrenhar numa das rotas do considerado sagrado caminho que inspira boa parte da humanidade há milênios. Após um breve treinamento de dois meses nos parques de Curitiba, com tênis de maratonista e mochila ergonômica, e já com a consciência da importância do desapego ao levar apenas três quilos e cinco quilos nas costas de cada um, lá fomos nós com a cara e a coragem, como se diz! E daqui por diante vou falar só por mim sobre essa experiência difícil de contar em toda a sua plenitude.

Como eu tinha acabado de conquistar minha cidadania lusitana, optamos por conhecer o interior de Portugal, escolhendo o caminho da costa portuguesa – que soava como mais viável para aventureiros iniciantes com seus 280 quilômetros de rotas menos íngremes e mais planas em função da proximidade litorânea – até a catedral de Compostela reverenciada em todo o mundo como uma das mecas dos cristãos, tão importante quanto o muro das lamentações em Jerusalém e o Vaticano em Roma.

Como seguidora do zen-budismo, para mim qualquer caminho seria válido já que o que importa é a viagem interna. Fazendo coro com a multidão anual de mais de 300 mil peregrinos globais em média que conquistam o certificado dessa emblemática peregrinação nas várias rotas europeias conhecidas, para nós o primeiro aprendizado de superação foi encarar com alegria 13 dias debaixo de chuva intermitente como forma de testar nossa resiliência.

Saímos a pé de Porto em meados de outubro e ao longo de toda a caminhada de cinco a seis horas por dia, apenas um dia inteiro de sol.

O caminho, aliás como qualquer outro desafio de magnitude pessoal, serve para lapidar nosso interior, fazendo da própria vida a cada passo um processo sem fim de iluminação e de bondade para si e para os outros. Gente do mundo inteiro é atraída para lá pedalando ou caminhando e em todas as passagens um banho de gentileza e solidariedade pode ser facilmente experienciado. Por que um homem qualquer não pode fazer do seu caminho diário um exercício de profunda autodescoberta ou iluminação? O de Compostela só acelera o processo porque nos jogamos para a desafiadora jornada por escolha própria. Afinal, tem lugares no planeta Terra que são verdadeiros imãs de energia e, talvez por isso, atraem tanta gente tornando-se um vórtice a partir da mística vivida e revelada por seus

andantes.

A magia do caminho percorrido de forma inimaginavelmente sofrida pela primeira vez há cerca de 1.200 anos realmente é hipnotizante, cada um com sua lente peculiar de crença transcendente, cada um com seu desafio de vida a ser superado. Para mim, a regência da magia está na inteligência cósmica do universo. Sinto que viver as entranhas de um caminho percorrido pela humanidade há milênios desvela parte do mistério da vida humana, nos sacudindo visceralmente para encontrar algum significado além-existência. Sim, porque o significado é sempre determinante na experiência humana, somos uma espécie simbólica por natureza, em busca eterna de significado transcendental para a breve passagem pela Terra.

Igreja e castelo, muralha, igreja e ruínas preservadas às centenas. Nessa viagem muito mais interna que externa acompanho pelo menos alguns milênios de história passando ali ao lado em segundos como um filme e penso como a humanidade sempre lidou simultaneamente com o frenesi do bélico e a harmonia do sagrado em seus corações sempre divididos pelo ímpeto do poder da conquista e pela luz do sobrenatural.

 

Silêncio a cada passo. O silêncio em dupla na maior parte do caminho revelou a parceria íntima: no nosso caso o silêncio não significava apatia e sim se deixar levar ao máximo pela observação de um cenário medieval pouco comum para brasileiros e apenas sentir verdadeiramente o momento presente. Sentir o prazer do silêncio sem estar perturbado por dentro.

O mais legal de viver uma experiência andarilha dessas é poder confirmar a velha lenda: você sai do caminho, mas o caminho jamais sai de você, transformando-nos sempre com seus minúsculos e movediços aprendizados internos. E finalmente, já no caminho de volta para casa, me dei conta da centelha significante da peregrinação, seja qual for, na montanha da sua cidade ou em qualquer lugar do mundo: libertação de si, servir ao outro e integração com o universo. As relações que construímos são as verdadeiras catedrais da vida e o legado máximo aquele que deixamos nos corações de cada um que tocamos. Nada que grandes sábios da humanidade já não tenham dito de “n” formas em todos os tempos e que muitas vezes na lida do caminho diário não prestamos atenção. Se o Caminho de Santiago de Compostela serve para algum propósito primordial é a inspiração de nos lembrar a cada passo do que é realmente essencial para sermos felizes.

 

Texto de Malu Salgueiro. Praticante na Daissen Ji. Escola Soto Zen.

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