As Duas Verdades do Zen

 

Uma característica comum entre todos nós, independente de cultura ou nível sociointelectual, é que sempre estamos prontos a interpretar as coisas sob a ótica de nossas expectativas pessoais. Isso, quando feito de forma consciente e saudável (ou seja, sem as imposições egoístas que muitas vezes assaltam nossos corações e mentes), não é absolutamente um erro; no máximo, pode ser apenas uma forma limitada, parcial, de vivenciar o mundo. Entretanto, se estivermos atentos às nuances relativas e interdependentes da vida, a nossa interpretação poderá até mesmo ser útil para a compreensão correta das coisas, e para a cura das feridas da alma. Eis a base fundamental dos ensinamentos daqueles que atingem a outra margem do rio da sabedoria através do bom uso de suas consciências – eles sempre são homens e mulheres esclarecidos, com grande capacidade interpretativa e, portanto, suas palavras contribuem para que soluções coerentes e válidas sejam apresentadas a todos aqueles que desejem orientação correta e adequada. Se vamos exercitar ou não estas soluções em nossas vidas, é outra estória.

Claro está que, em outro extremo, todas as formas de crueldade, egoísmo e fanatismo humanos estão igualmente submetidas ao mesmo fenômeno de interpretação do mundo – só que sob o prisma das distorções que a ignorância ilusória (mais propriamente falando, autoilusória) fomenta em nossas ações. Isso é algo que devemos sempre ter em conta quando analisamos nossas ações e pensamentos: podemos achar que estamos plenos de razão, corretíssimos em nossas posturas, mas muitas vezes – na maioria delas – podemos estar apenas tentando encaixar os fatos no espaço estreito de nossas próprias opiniões, concepções e projeções egoístas, de modo a justificar nossas visões particulares sobre a “realidade”.

E por que caímos sempre nesta armadilha? Porque quase nunca estamos realmente relaxados, livres e em paz. Nossa tensão psicoemocional cria as condições ideais para que as posturas parciais de interpretação e conceituação assumam o controle, e a partir deste processo o comportamento humano pode atingir níveis bem pouco razoáveis e até mesmo perigosos. Mas, em meio a estes aspectos, temos de observar o fato de que existem modos distintos de análise e reflexão; tudo depende do grau de sensibilidade e sabedoria perceptiva de cada um. Existem meios úteis de interpretação da vida, e em muitos casos nossos erros e ignorâncias podem se tornar com o tempo grandes professores, fazendo com que sejamos capazes de superar em muito nossos pré-conceitos, superficialidades, ódios e fanatismos.

Entretanto, esta é uma lição amarga (ainda que, em última instância, gratificante). Quando estamos mergulhados (quase sempre por longos anos) em certezas e convicções não-saudáveis, ou estamos presos a padrões de ação e pensamento pouco flexíveis, estes processos mentais estão condicionados exclusivamente aos certos aspectos rígidos de nossas naturezas. 

A experiência de esclarecimento – aquele valioso momento em que, subitamente, percebemos o quanto nossas palavras e ações foram equivocadas e baseadas em premissas erradas, permitindo-nos tomar a corajosa decisão de mudar plenamente, e nos libertar dos apegos e aversões que pesam tanto em nossas vidas – pode ser algo que dolorosamente será vivido somente depois de muito esforço pessoal, muita determinação e empenho.  E também através de uma grande dose de correta orientação e correta reflexão.

Pois nosso orgulho é um grande empecilho para que possamos enxergar aquela rigidez mental. Na prática budista, por “humildade” devemos entender o dom de estar sempre disposto a refletir cuidadosamente – a partir do exercício meditativo e auto-observador – sobre nossas intenções e opiniões diante dos fatos. Algumas pessoas, na tentativa de praticar esta premissa, tentam se colocar na posição de alguém que não tem certeza de nada, e portanto está permeável a mudar de opinião a todo o momento. Na verdade esta postura não é correta, sob a ótica da proposta budista. O ponto fundamental não está em assumir uma atitude evasiva diante das realidades e opiniões, mas sim de saber exercitar uma constante auto-observação a fim de permitir que a sensibilidade – e não a razão opinativa – nos abra os olhos da mente para a compreensão dinâmica, fluida, e inerentemente pacífica das coisas em suas realidades plenas. Se assim não for feito, qualquer decisão aparentemente flexível será apenas um paliativo momentâneo para determinado impasse.

Na filosofia budista temos a definição de dois tipos de verdades (dharmas) essenciais à existência, e que estão abertas constantemente aos nossos sentidos: as verdades relativas ou mundanas (Samvriti Satya) e as verdades absolutas ou universais (Paramartha Satya). Em nosso dia-a-dia são as verdades relativas que se apresentam mais claramente às nossas mentes – e expectativas. Estas são as verdades parciais, dependentes das interpretações inconsistentes de nossos sentidos e inteligência. Graças a elas, criamos as diversas opiniões e posturas, gostos e aversões, diversos partidos e facções, diversas religiões e crenças. No Zen, a grande arte de viver é definida pela capacidade de lidar com as verdades relativas com o coração firme e mente aberta, e por meio das sutilezas do espírito. As verdades relativas são as peças básicas do caleidoscópio quase inesgotável de realidades da existência, e cada descoberta pessoal – seja fundamentada em sabedoria ou mergulhada em ignorância – irá determinar quais são as verdades que iremos valorizar e definir em nossas vidas.

Mas, no fundo, até mesmo mentiras terríveis podem se tornar – aos olhos condescendentes, imaturos ou idealistas – grandes verdades. Pois para a mente, o conceito de verdade depende completamente de nossas próprias concepções sobre o certo e o errado. A consequência disso é que nem sempre as mentes são capazes de discernir saudavelmente o que é justo e razoável – e assim, em última instância, virtualmente tudo pode ser (ou parecer) uma verdade. Este é um dos maiores desafios da consciência humana: saber reconhecer as coisas da maneira correta e esclarecida, sem a miopia das visões egoístas – saber reconhecer corretamente quais são as verdades universais, aquelas que independem de crenças ou opiniões, de racionalismos ou fantasias românticas, e que permeiam tudo o que há de mais saudável no universo existencial.

Quando não sabemos discernir quais são as verdades relativas saudáveis e quais as insalubres, instala-se em nosso coração um padrão de comportamento egoísta, pouco atento. O resultado mais prejudicial deste fenômeno é criar o vício mental das diferenciações. E será sempre a tendência a diferenciar que irá sustentar boa parte das atitudes interpessoais, minando o entendimento correto e a interação mútua. O vício das diferenciações é tão arraigado no comportamento de algumas pessoas que estas costumam a justificar suas tendências ao conflito afirmando que a disputa e as diferenças são salutares ao entendimento, numa interessante distorção de valores. 

Ao observar debates e discussões, eu sempre me surpreendo ao ver a frequência com que sucumbimos à postura diferenciadora. Minha surpresa, evidentemente, não se dá pela constatação de que nossas mentes – por força das várias influências e condicionamentos – tendem a se prender tão fortemente às parcialidades; mas sim pelo fato de perceber o grau intenso de embotamento de nossas mentes, impedindo que exercitemos nosso discernimento de forma a superar a tendência ao conflito – mesmo quando temos um conhecimento enorme dos mais saudáveis ensinamentos. Em outras palavras, não importa se a pessoa possui inteligência e erudição ou se é ignorante e banal, o fato é que, sem sensibilidade e discernimento, não saberemos enxergar nossas ações e pensamentos com equanimidade e auto-observação. E mesmo quando temos a capacidade de nos observar com equilíbrio, devemos ficar atentos pois sempre será imprescindível que a prática da auto-observação seja acompanhada de uma grande dose de reflexão e ponderação. Sem estas atitudes, tudo o que conseguiremos alcançar será apenas certa consciência do que estamos dizendo e fazendo, mas nos faltará a flexibilidade para compreender – e aprender – o que os outros nos dizem e fazem, e as conseqüências desta complexa inter-relação para o nosso entendimento final das coisas.

Para atingir as verdades universais, a pessoa não deve nunca imaginar que deve desprezar, reprimir ou desmerecer as verdades relativas. As pequenas verdades cotidianas, essas simples realidades comuns, quando vividas de forma atenta e através de um exercício intenso de auto-regulação e discernimento, são extremamente úteis e belas. Devem e podem ser vividas em intensidade, mas não de forma passional. Nem todas as verdades relativas são fruto de mentiras e falsidade. Algumas belas verdades mundanas, como um amanhecer ou pôr-do-sol, um sorriso de carinho ou um gesto de amor, fundamentam-se na beleza e na saúde da existência e são muitas vezes uma cura para as angústias cotidianas – são belas e saudáveis justamente porque são impermanentes.

Para superar o vício da mente diferenciadora, é preciso aprender a enxergar as semelhanças em um plano mais sutil – não apenas aceitar tudo sem correta discriminação. A chave para isso está em saber compreender que as semelhanças, ou sem forçá-las a se encaixar em um todo disforme, impreciso, onde tudo é desculpável, e todas as ações são iguais. 

Então, como se dá esta relação entre verdades relativas e verdades absolutas no Zen? Tento esclarecer este ponto me valendo de um famoso axioma zen-budista. Ele diz, em sua primeira afirmação: “Antes de entender o Zen, as montanhas são montanhas e os rios são rios”. Esta frase simboliza aquela fase da vida onde as verdades relativas são interpretadas em suas diferenças, sem que percebamos a profunda integração das coisas. Sem perceber o grau de flexibilidade das coisas, nossa mente interpreta as realidades por força de suas próprias impressões parciais e assim, tudo o que percebemos torna-se apenas uma realidade presa em si mesma, limitada e superficial, são percebidas em seu imediatismo e não em sua natureza essencial

A segunda afirmação diz: “Quando começamos a praticar o Zen, as montanhas não são mais montanhas e os rios não são mais rios”. Nesta fase o próprio movimento do mundo perde sua rigidez, deixa de ser interpretado seja de maneira cartesiana e racional, seja de maneira romântica ou fantasiosa. Este é o momento da desconstrução de parâmetros rígidos, quando as nossas posições e idéias parecem ruir diante da suspeita arrebatadora de que algo muito mais profundo, amplo e universal subjaz as nossas tolas opiniões egoístas, sectárias, intelectuais ou interpretativas. E assim, vemos, sentimos e percebemos as coisas como se elas diluíssem em suas verdades relativas.

E então, surge a última afirmação: “Quando finalmente entendemos o Zen, as montanhas voltam a ser montanhas e os rios voltam a ser rios”. Agora, o mundo torna-se mágico, integrativo e rico em belas verdades, e a paz é atingida. Mas como isso ocorre, se aparentemente a primeira e a última frase dizem a mesma coisa? De fato, um abismo de descobertas separa as duas afirmações. Antes, as montanhas e rios não passavam de blocos de rocha e terra, ou fluxos de água sem maior sentido do que eles mesmos, nus e banais – eles nada tinham a nos oferecer, e nossas mentes os captavam por meio de puro hábito. Agora, montanhas e rios tornaram-se fonte de uma verdade maior, e pertencem a uma coerência universal. Nossas mentes abandonam a rigidez e percebem as coisas em sua plenitude, assim as reconhecendo através da relatividade da vida, e sua profunda interdependência: as montanhas são montanhas porque também os rios são rios. Desta forma o Zen declara a experiência do Vipashyana, onde todas as manifestações da existência compartilham uma verdade relativa em si mesmas, ao mesmo tempo em que pertencem a uma verdade absoluta além de si mesmas.

As duas verdades do Zen declaram o valor da vida através da lição de semelhanças e igualdades, sem jamais deixar de entender a natureza distinta das coisas. Se você deseja aprender a se libertar de seus conflitos, seu egoísmo e sua falta de correta percepção, deve exercitar constantemente a prática da reflexão sobre essas duas verdades: tudo o que dizemos, fazemos e sentimos; tudo aquilo que percebemos e interpretamos pode nos oferecer uma lição relativa e uma lição absoluta

Pare, olhe e reflita. Se você souber enfrentar seus próprios condicionamentos interpretativos, viverá de súbito a experiência de equanimidade e equilíbrio, e uma aliviadora paciência se instala em seu coração, como uma ducha fresca de sabedoria e maturidade; nada mais para disputar, nenhum conflito para superar. Este simples momento vale uma vida inteira de esforços para superar egoísmos, arrogâncias e preconceitos.

 

Texto de Monge Kômyô, comunidade Daissen, Soto Zen. 2006. 

 

Imagem: https://unsplash.com/photos/gray-concrete-statue-of-a-man-KTJ47DL4jfE

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