Um Tom e Torna-se Buda

 

A expressão acima pode traduzir todo o espírito da prática do tocador de Shakuachi: ao executar um único tom com alta pureza, ele pode acessar sua natureza original, a natureza de Buda.

O Shakuachi é um instrumento musical tradicional japonês, uma flauta de bambu vertical, originária da China e levada ao Japão durante a Dinastia Tang, entre os séculos VII e VIII, como um instrumento a ser utilizado na execução de Gagaku (música clássica japonesa, apresentada na corte imperial). Sobreviveu na música imperial até meados do século X, quando foi retirada das orquestras durante um longo período, por razões não muito claras.

Foi então que por volta do século XIV, o Shakuhachi voltou a ser tocado no Japão, dessa vez por monges da escola Zen Budista Fuke, uma escola derivada do budismo Rinzai Zen com sede em Myōan-ji , um sub-templo de Tōfuku-ji em Kyoto. O Shakuhachi passou a ser considerado uma ferramenta para a prática Zen, em combinação com o zazen e o koan, sendo  usado para o suizen. A prática do suizen ou “soprar zen” é semelhante à prática do zazen. A atenção pode ser trazida para a respiração, para o som, e para o silêncio. E através da prática, os monges podiam chegar à compreensão da unicidade entre o som e o silêncio, tentando alcançar sua natureza búdica através do sopro no instrumento, através da perfeição do som, do tom, do tempo da respiração. Objetivavam buscar suas respostas na experiência em si, na própria prática.

 

 

No início do Século XVII, em meio ao renascimento cultural do período Edo japonês (1603-1867), o Shakuhachi era associado principalmente aos komuso, ou “monges do vazio”, como era conhecido o grupo de monges mendicantes que vagavam pelo país tocando Shakuhachi em troca de esmolas. Usavam chapéus em forma de cesto de palha, com a intenção de esconder seus rostos, tentando assim, aplacar o ego, não ter identidade. Os monges komuso possuíam passes oficiais do governo, que lhes concedia liberdade para ir e vir entre as muitas províncias do Japão feudal. Eles representavam um estilo de vida de liberdade e anonimato que atraía muitos além daqueles que buscavam realização espiritual. Numerosos membros da classe samurai ( ronin ) se juntaram à seita Fuke, vestiram chapéus de palha e aprenderam o Shakuhachi para possuir a liberdade necessária para viajar, transitar pelo país e assim resolver questões referentes à brigas, dívidas, mulheres e vinganças, alguns praticando até mesmo furtos. Seus abusos cresceram tanto que o instrumento passou a ser associado pela população tanto com a violência e arruaça, quanto com as antigas tradições Zen. Para combater isso, os principais templos Fuke fundaram escolas para ensinar o Shakuhachi a fim de  diferenciar musicalmente monges “reais” de encrenqueiros desonestos. A técnica de execução e o repertório eram a chave para distinção entre os grupos e, se um monge komuso tocasse uma peça clássica (honkyoku) de maneira errada, ele poderia ser executado na hora, acusado de ser um impostor.

O mau comportamento dos “monges impostores” era tamanho, que o governo Tokugawa, em 1847, por decreto formal, retirou os komusō de seus privilégios e vinte anos depois, com a queda do Xogunato Tokugawa, o que restava do Fuke-shū foi dissolvido.

Com o final da seita Fuke, os monges komuso se tornaram leigos e por isso, precisavam fazer algo para se reintegrar à sociedade. Foi assim que conseguiram uma autorização do novo governo para se tornarem professores de Shakuhachi e desse modo, o instrumento ganhou novo status na sociedade japonesa ao longo do tempo, com o aparecimento de novas escolas e vários estilos que contribuíram para enriquecer o repertório da flauta de bambu. Essas escolas deram origem a muitas outras escolas modernas, que chegaram inclusive ao Ocidente.

Ainda se pode ver “monges” tocando Shakuhachi vestidos com trajes de komusō nas ruas e templos do Japão. Alguns fazem isso em grupos como uma homenagem, outros estão tentando ressuscitar o credo espiritual, onde o tom perfeito, juntamente com a respiração correta, poderia ser o caminho da iluminação.

 

Para conhecer mais, acesse aos vídeos abaixo:

 

Shakuhachi -Kohachiro Miyata

 

Texto de Ana Maria Rangel. Praticante na Daissen Ji. Escola Soto Zen.

 

Referências:

 www.fuke-shakuhachi.com/fr

www-daviderath-com

www-komuso-com

www-nytimes-com

ethnomusicologyreview-ucla-edu

Flypaper: Soundfly’s Online Music Magazine

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youtube.com

The Shakuhachi: History and Development – translated by Christopher Yohmei Blasdel

in Blasdel’s The Shakuhachi – a manual for learning

Ongaku no Tomo Sha Corp. 1988

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