Eu estava refletindo o quanto as pessoas pensam que a tecnologia só traz mais conveniência para elas. Para cada conveniência, para cada nova facilidade proporcionada pela tecnologia, um dever para você também, não tem como fugir disso.
As pessoas tentam remover as dificuldades do mundo exterior, mas se elas não transferirem essas dificuldades para dentro de si mesmas, então elas vão degenerar. Veja o seguinte exemplo: antigamente comíamos o que era produzido próximo, o que estava disponível no mercado era produzido e ofertado de acordo com as estações do ano. Fora daquela estação, não se tinha determinados produtos.
Esta prática se refletia na ausência de pessoas obesas. Podia-se comer à vontade, acabávamos nem comendo muito porque não tinha muita variedade. A comida não era industrializada para ser deliciosa, era muito simples. Tínhamos uma relação mais sã com a comida.
Quando se tem comida disponível abundantemente, infinitas variedades o ano inteiro e num simples apertar de botão pela internet ou pelo telefone, seja de dia ou noite, ela aparece na porta da nossa casa, seja qual for a comida que quisermos nunca estará indisponível.
Isso é até muito confortável, muito conveniente. Só que agora temos uma responsabilidade: precisamos moderar a comida, não podemos comer à vontade, devemos controlar e vigiar o que estamos comendo, devemos pensar antes: “eu preciso comer; não posso comer porque estou de dieta; tenho que fazer isso, tenho que fazer aquilo”.
Então, esse limite que antes estava no mundo foi removido por nós, não existe mais. Algum lugar tem que ter um mecanismo de controle. Esse mecanismo tem que vir para dentro. Não podemos comer tudo que está disponível, porque é muito abundante, muito variado, não podemos nem contar com o tédio. Esse mecanismo serve para todas as coisas, essa dinâmica deve ser aplicada em tudo na nossa vida.
Outro exemplo é o celular. Antigamente só assistíamos TV e ouvíamos música quando chegávamos em casa. Agora podemos fazer isso 24h por dia, no ônibus, andando na rua, etc. Outrora, tínhamos que comprar o disco, ele existia numa quantidade limitada na loja. Agora não, todos os discos estão disponíveis a qualquer momento. Bastou apertar um botão, qualquer disco do mundo está disponível, imediatamente. Então se nos entregarmos completamente a isso nunca teremos um minuto de silêncio na nossa vida. Vamos passar cada minuto acordado ouvindo alguma música, assistindo televisão, vendo vídeos no Youtube, olhando o Facebook.
Ficamos viciados, não conseguimos mais, isso chega a virar uma síndrome. Tem pessoas que passam a ter ataque de ansiedade, algumas relatam que sentem o celular vibrar dentro de seus bolsos sem que ele esteja lá. É como se fosse quando uma pessoa tem um membro amputado, mas continua sentindo a sensação de que ele ainda está lá. Então a coisa fica esquisita a esse ponto, com toda essa facilidade, todo esse conforto, se não tivermos autocontrole, isso vira um veneno para a nossa mente.
Antes reclamávamos por não termos poder de voz, que somente a classe rica tinha essa oportunidade, e todo mundo seguia o que eles falavam. Havia a predominância de duas grandes emissoras de TV do nosso país em ditar regras e tendências, porém eram incapazes de transmitir sua programação para outros países. Eram elas quem mandavam aqui dentro porque tudo que elas falavam todos seguiam. Hoje em dia não, qualquer pessoa dá opinião. Todo mundo fala, todo mundo tem uma câmera de vídeo em seus celulares, com excelente qualidade de som e imagem e tem espaços para divulgar seus conteúdos com abrangência mundial, algo impensável em outros tempos.
Muito bom, não é? Agora todo mundo tem acesso, não existe mais o monopólio. Excelente! Só que agora também tem um problema, todo mundo dá opinião, e o que acontece? Aquela frase que não sei a qual filósofo grego pertence: “democracia é o sistema do governo dos tolos, dos medíocres, porque é o governo da maioria, e a maioria das pessoas é medíocre”. São poucas as pessoas que são sábias. É uma característica do mundo, é um fenômeno comum, muitas pessoas são tolas. Quando todo mundo tem voz, a maioria da conversa é fiada, é errada, é de ódio, de raiva, de inveja, de vaidade, de coisa vã e chula, de coisa superficial.
Então, temos agora uma quantidade infinita de coisas para olhar, mas a maioria delas são inúteis ou danosas. Temos agora o conforto de poder olhar, o entretenimento infinito. E junto com o entretenimento infinito temos um dever, um trabalho de ter cuidado, de selecionar o que vamos olhar, porque se nos entregarmos a distração de ficar olhando o que os outros fazem a sua personalidade vai regredir a um estado infantil que é o que a gente vê acontecendo hoje em dia, as pessoas estão infantilizadas, seus gostos estão regredindo e muitas vezes tornando-se até animalescos. O progresso traz uma degeneração, progride de um lado, degenera do outro.
Então não tem nenhum progresso tecnológico que venha isento desse mecanismo, e isso se aplica a qualquer outra coisa. A eletricidade por exemplo, se fosse mais barata, provavelmente haveria mais desperdício. As pessoas não apagariam mais a luz ou colocariam um holofote gigante do lado de fora, etc. Outro exemplo é se barateasse a gasolina, certamente as pessoas consumiriam muito mais, consequentemente haveria muito mais poluição e mais trânsito. Se barateasse o preço do automóvel, a quantidade de poluição no ambiente iria aumentar ainda mais. Então todas essas coisas têm sempre um custo agregado.
Tudo que fazemos têm consequências. Sempre tem um lado bom e um lado ruim envolvido nas coisas. Não tem nada que seja isento disso. Qualquer coisa que se vai fazer, principalmente quando se está lidando com bens materiais e coisas mundanas sempre tem um aspecto negativo bastante evidente. Enquanto não acordarmos para esse fato, a situação vai ficando cada vez pior, o mundo vai regredindo até chegar a um ponto de ruptura, um ponto de colapso.
Devemos conectar causa e efeito em todas as ações. Ou começamos a levar a sério o assunto, falar a verdade, ter responsabilidade pelo que dizemos e fazemos, ou então isso vai continuar se agravando, até chegar a um ponto em que ninguém mais sabe o que é para comer e o que é para beber. E qual é o nome dessa doença? Chama-se “loucura”. As pessoas não têm vínculo com a realidade porque estão num mundo de fantasias. É um histericismo ou insanidade coletiva que estamos construindo e aumentando cada vez mais.
Quanto mais perdemos essa capacidade de clareza mental mais incompetentes ficamos. Como consequência disso, não teremos mais capacidade para organizar coisas e realizar serviços básicos na sociedade. Nós poderemos até nos incomodar e nos preocupar ao percebermos que tem algo de errado aqui e que precisa ser solucionado, mas não teremos clareza de como fazê-lo.
Não temos como impedir o avanço da tecnologia, isso não seria uma solução, porque se a tecnologia existe e as pessoas a desejam, não tem como segurar, é impossível. Nem as drogas conseguimos impedir que as pessoas usem, imagine impedi-las de fazer uso de algo que é útil. Talvez conscientizá-las dos deveres que vem junto com o uso dela, quem sabe. Não é só uma questão de educar as crianças e os adultos, mas também uma questão de leis, de criar mecanismos sociais que evidenciem o que é certo e o que é errado embora os conceitos de certo e errado sejam relativos. É preciso acordar para o fato de que tem algo acontecendo aqui e agora que antes não acontecia, é urgente que a gente repense quais são as regras de engajamento e de conduta, porque as regras antigas de conduta não estão sendo efetivas para evitar que as pessoas cometam atos danosos.
Quem tiver inteligência deve procurar proteger-se de muitas coisas tecnológicas, principalmente daquelas ofertadas pela internet, deixando de dar mais audiência e mais plataforma, não interagindo, não olhando, não respondendo e não passando adiante conteúdos carentes de atenção, falsos e tendenciosos. As pessoas que não merecem atenção não são somente pessoas mal-intencionadas, também são pessoas que não sabem o que estão falando, por mais simpáticas e bacanas que sejam, e se damos atenção para elas, as encorajamos cada vez mais a esta prática. Então precisamos ter noção de responsabilidade pessoal neste nível.
Devemos divulgar essa ideia. Quem tiver mais capacidade de explicar isso, com melhores palavras e de maneira mais convincente que o faça para as pessoas em geral, porque é importante, mesmo que atualmente não tenha muita gente sensível para com essa ideia, ainda assim vale a pena fazer um esforço porque conforme as coisas forem piorando, mais aumentará a quantidade de sofrimento. Vale a pena pensar a respeito disso, conversar sobre isso, tentar analisar esse assunto de uma maneira um pouco mais profunda e ver o que pode ou não ser feito a respeito.
Palestra de Ajahn Mudito. Abade do Mosteiro Suddhavāri – Tradição da Floresta – Budismo Theravada.