Sutra do Diamante

Prajanaparamita Vajracchedika Sutra

 

O “Sutra Lapidador da Sabedoria Transcendental”, cultivado em várias linhagens do Budismo Mahayana, é um dos sutras mais importantes da escola do Budismo Zen ao lado do “Prajnaparamita Sutra”, do “Lankavatara Sutra” e do “Shuramgama Sutra”. O Vajracchedika Sutra faz parte do Prajnaparamita Sutras, “Perfeição da Sabedoria Discriminativa” ou “Perfeição da Mente”.

Estes sutras descrevem a mente lúcida, que olha para todos os fenômenos em suas formas e entende como realmente são. Entende como surgem e esvanecem num ciclo temporal contínuo, incessantemente revelando sua natureza insubstancial.  Esta mente lúcida “vê” como essas formas se configuram constituindo a realidade em sua simples verdade.  A importância do Sutra do Diamante está em sua linguagem ímpar, mesmo entre os sutras prajnaparamitas, como o próprio nome revela.

Vajracchedika remete a um objeto ritual de origem pré-budista denominado “Vajra” ou “Dorje”. Sua etimologia tem dois significados que se acoplam: diamante como referente à sua indestrutibilidade (tudo corta, mas que não pode ser cortado por nada) e como arma mitológica representando a natureza do relâmpago (aquilo que ilumina velozmente).

De linguagem cortante e direta, o ensinamento contido no Vajracchedika Sutra vai esvaziando nossos conceitos e fixações, cortando condicionamentos até que um relâmpago súbito corte por completo todas as nossas construções.

Conta a lenda que que o mestre Huineng (638-713), que se tornaria o sexto Patriarca da escola Ch’an, tendo ouvido a recitação do Sutra do Diamante por um monge em uma feira, entendeu súbita e completamente este ensinamento e teve uma experiência de despertar.  A figura do sexto patriarca incorpora a essência do Zen, sendo o Sutra do Diamante a base para a transmissão até hoje.

O Sutra do Diamante está contextualizado dentro do “Dharmachakka” Sutra, ou Giros da Roda do Dharma.

No primeiro giro, Buddha oferece os ensinamentos ditos expedientes ou provisórios. São os primeiros ensinamentos de Buddha e compreendem “As Quatro Nobres Verdades e o Caminho Óctuplo”; como abandonar as ações negativas do corpo, fala e mente para se libertar do sofrimento. Também nesse primeiro giro estão contidos os ensinamentos sobre a impermanência e a insubstancialidade do eu, explicações sobre a Causalidade, Originação Dependente, ou seja, como os fenômenos brotam a partir de causas e condições.

No segundo giro Buddha apresenta o conceito de “Sunyata” ou “Vacuidade”, uma introdução da natureza mais profunda das aparências.  Nesse nível o ensinamento da ausência de identidade intrínseca não se limita à Anatta, mas à inexistência de separatividade de todos os fenômenos da matéria, da mente ou ilusórios, tendo como intuito o abandono ao apego ao eu do indivíduo e dos fenômenos. É exatamente neste lugar que está contextualizado os ensinamentos do “Vajracchedika Sutra”.

No terceiro giro do Dharmachackra são introduzidos os ensinamentos sobre a Natureza de Buddha ou o Princípio Búdico “Buddha-dhatu” e a doutrina da Matriz ou Essência de Buda “Tathagata Garbha”. Estes ensinamentos são revelados pelo Buddha aos Bodhisattvas Mahasattvas, seus discípulos mais avançados, como a essência transcendental do Buddha Imutável e Pacífico que reside dentro de cada ser.

O “Tathagathagarbha” representa a presença interna, verdadeiramente real e sustentadora, constitui o reino ou esfera dos Buddhas perfeitos, oniscientes, que alimenta espiritualmente cada ser em quem ele se encontra. Os ensinamentos existentes nesse último nível, ajuda a libertar o Bodhisattva de uma tendência ao niilismo, que se dá, muitas vezes, como resultado de uma fixação à vacuidade.     Esse é o caso de “Subhuti” discípulo de Buddha, ao qual Buddha desenvolve um diálogo, em que o discípulo faz perguntas e “Bagavan” (honrado-pelos-mundos) o que contextualiza esses questionamentos.

O significado do nome “Subhuti” é “nascido da vacuidade”, pois de todos os discípulos era o que mais se interessava pelo conceito de “sunyata”.  Contudo ainda apresentava dúvidas, sendo o Sutra do Diamante a narração de como Subhuti realizou a vacuidade profunda.

Vajracchedika Sutra” é uma transição entre os ensinamentos do caminho do ouvinte para o caminho Mahayana. Subhuti vem do caminho do ouvinte, tendo uma visão da vacuidade em certo sentido ainda limitada; ele enxerga, mas não de forma completa.  O diálogo todo no sutra é para conduzir pacientemente a mente de Subhuti de uma vacuidade parcial para uma vacuidade última.

Tendo superado os enganos das emoções perturbadoras, é preciso ainda superar os enganos cognitivos sobre a realidade.  Para superar esses enganos, é preciso estar claro que aquilo que é originado dependentemente chama-se vazio e não existe nada vazio que não seja originado dependentemente. Forma é vazio, vazio é forma e nesta relação não existe hierarquia, um não é mais elevado que o outro, são apenas as coisas olhadas de formas diferentes. O que existe é uma relação de equidade entre originação dependente e vacuidade.

Subhuti tem apego à noção de vacuidade pois se engana ao supor que a vacuidade é uma base real por trás das aparências, mas “a vacuidade também é vazia”, ou seja, não existe uma vacuidade em algum lugar como uma fonte de onde surjam os fenômenos, muito mais, na verdade cada fenômeno é vazio por si mesmo.

Para “cortar” a fixação de Subhuti na vacuidade, é preciso que ele realize que a aparência e a vacuidade dos fenômenos são as duas formas de olhar para a mesma coisa. O olhar do Buddha é “o olhar que vê forma e vazio ao mesmo tempo sem precisar alternar entre os dois, estabilizando assim o olhar da Talidade, a visão Tathata, que olha para tudo e imediatamente vê o aspecto luminoso da aparência e o vazio simultaneamente”.

Para que Subhuti encontre a verdadeira sabedoria, é preciso que se liberte das concepções arbitrárias geradas pela fixação dos extremos do vazio ou da forma.   A transcendência só é possível pela “Talidade”.

A própria estética do texto apresenta a essência do ensinamento, numa dinâmica dialética. Buddha coloca os ensinamentos numa perspectiva dual (para que possa se comunicar com mentes duais), mas tão pronto Buddha fala ele retira, porque a linguagem relativa não existe é apenas uma forma de expressão, de comunicação com os seres.

No decorrer de todo o texto Buddha fala algo na linguagem relativa e apresenta o absoluto na sequência, afirma e retira.  Dessa forma Buddha conduz Subhuti a ver a insustentabilidade de tudo, inclusive da vacuidade. Sem esse salto não há liberação.

Um dia, quando Subhuti estava sentado debaixo de uma árvore, num espírito de sublime vazio, flores começaram a cair em torno dele.

“Estamos louvando você pelo seu discurso sobre o vazio”, os deuses lhe sussurraram.

“Mas eu não falei do vazio”, disse Subhuti.

“Você não falou do vazio, nós não ouvimos o vazio”, responderam os deuses.

Esse é o verdadeiro vazio.

E as flores se derramaram sobre Subhuti como chuva.

Koan Zen

 

Texto de Danielle Kreling. Praticante na Daissen Ji. Escola Soto Zen. 

 

Han, Byung-Chul.  Filosofia do zen-budismo. Trad. Lucas Machado. Petrópolis, RJ: Vozes,2019.

Representantes, Paulo; Nyugen Senzaki (2008).  Zen Flesh, Zen Bones. Uma Coleção de Escritos Zen e Pré Zen. Rutland Vermont.

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