Texto da série “Memórias de um Casal de Peregrinos”
“(…) como se ele visse um cadáver jogado em um cemitério, sendo devorado por corvos, gaviões, abutres, cães, chacais ou vários tipos de vermes, um bhikkhu compara o seu corpo com aquele: ‘Esse corpo também tem a mesma natureza, se tornará igual, não está isento desse destino’.” – Satipatthana Sutta
Varanasi, no estado de Uttar Pradesh, na Índia, é uma das cidades continuamente habitadas mais antigas do mundo. E, uma vez lá, isso se torna nítido. As estreitas ruas de milhares de anos não só não comportam carros, como o espaço é insuficiente para que pessoas, cachorros, macacos, vacas e bois transitem sem se espremerem por seus labirintos coloridos e empoeirados. Um lugar com uma energia própria, poderosa e, não poucas vezes, intimidadora.
A mais sagrada das cidades para os hindus atrai indianos de todo o país, os peregrinos dividem espaço com os moradores, comerciantes, empregados dos pequenos hotéis, barqueiros e sadhus – homens que renunciando à vida mundana transitam, muitas vezes nus, com os corpos cobertos por cinzas dos mortos queimados, portando tridentes e ossos humanos. Certa vez, ouvi um jornalista brasileiro dizer que os sadhus são fósseis vivos, homens de um outro período histórico habitando uma cidade que também se perdeu no tempo. Alguns deles podem até aparentar estar lá pelas moedas e notas que recebem dos turistas, já outros, só de cruzarmos olhares, percebemos que estão vivendo em uma realidade a nós inacessível.
Eu e Tamara sentíamos estar caminhando por um cenário de filme ou por um sonho. Diferentemente de qualquer outro lugar que tenhamos ido, de lá não guardo nenhuma lembrança que aparente ser totalmente real. Era como se a nós estivesse sendo permitido circular e observar, mas não viver, existir. Aquela era uma cidade de outro povo, de outro tempo, governada por outras forças. O lugar para o qual pessoas de todo o país se dirigem para morrer, onde são praticados cotidianamente rituais ancestrais cujos significados só tocamos a superfície. Uma cidade cheia de templos em que ela mesma é um grande templo vivo cujas energias estão todas focadas na morte. Ela é o lar de Shiva e é, também, pelos hindus, vista como uma criação dele.
A mãe Ganga[1] banha a cidade e às suas margens não param de chegar corpos, carregados pelas ruelas por familiares dos mortos. A cena é vista com curiosidade e espanto pelos turistas de outras partes do mundo e com uma familiar naturalidade pelos locais. Muitos hindus acreditam que morrer e ser cremado lá pode levar à interrupção do ciclo de vida e morte. Doentes procuram a cidade com a esperanças de terminarem seus dias lá, outros contam com seus parentes para que ao menos levem suas cinzas até às águas sagradas.
E assim, em meio a cinzas e pedaços de corpos, lixo e poluição, uma multidão se banha no rio que é tido como a mãe do povo. Já havíamos visto aquelas cenas em documentários e programas jornalísticos, mas nada chega perto da experiência sensorial da presença física. Os cheiros, a fumaça onipresente, as buzinas de motos, os mantras e as músicas atordoam e permeiam nossos corpos e mentes.
A primeira vez que presenciamos as abluções em suas águas, Tamara e eu éramos os únicos clientes de um pequeno restaurante, ao qual chegamos por uma indicação na internet, que possuía apenas duas mesas no topo de um morro que dava para um ghat[2]. Restaurante é um nome pomposo demais para a pequena porta na parede que dava para uma cozinha onde um único prato, momos[3], era preparado e servido nas mesinhas do lado de fora. O proprietário-cozinheiro-garçom indicou o lugar para nos sentarmos e gritou para que um garoto fosse buscar farinha.
Enquanto o esperamos, bebemos água com gás – a única bebida fria que consumíamos nos primeiros meses de índia, por recomendação dos próprios indianos que diziam que as águas minerais sem gás eram em grande parte falsificadas (muitas garrafas plásticas de água, inclusive, continham em seus rótulos a instrução para que fossem amassadas após o consumo para evitar serem usadas nas adulterações).
Em cerca de meia hora, o cozinheiro voltou com nossos momos, pegou uma cadeira da mesa ao lado e se sentou conosco. Após perguntar o de sempre, de onde éramos, o que estávamos fazendo na Índia, me questionou com aparente seriedade se a “luta-livre”, WWE[4], norte-americana que passava na televisão indiana era falsa ou se os combates eram reais. Enquanto conversávamos, ele enrolou um enorme cigarro de maconha e o acendeu, tragou lentamente de olhos fechados e nos ofereceu. Após educadamente recusarmos, ele nos explicou que para eles aquilo não era uma droga, mas uma ferramenta de conexão com Shiva, muitos sadhus, inclusive, passam o dia com seus cachimbos misturando a fumaça que sai deles com a das cremações.
Contente por gostarmos do molho apimentado que vinha com os momos, nos serviu doses extras e disse que era muito bom nos receber naquela cidade sagrada. Apontando para o rio, afirmou que ele era tudo para o povo e nos chamou a atenção para um grande grupo de homens que naquele momento entrava em suas águas: “Esses são peregrinos que vêm do outro lado do país só para se banharem e serem abençoados, eu tenho a sorte de morar aqui, eles não. Nem toda a Índia é como aqui, em Déli, por exemplo, existem muitos golpes, furtos e assaltos, algumas vezes até usam facas, eu vi na televisão! Déli é o câncer do meu país!”.
Entre baforadas, apontou para outra parte das margens onde mulheres lavavam lençóis brancos. Alegremente, nos contou que eram as roupas de cama dos hotéis. Nos entreolhamos aliviados por viajarmos sempre com nosso lençol, dica que recebemos de uma amiga da Tamara que havia passado tempos na Índia anos antes.
Vimos um garoto conduzindo búfalas-d’água para dentro do rio, ele batia nelas violentamente com um pedaço de pau e ria do medo que causava, de seus gemidos e olhares assustados. Calmamente, nosso anfitrião explicou que as búfalas precisavam passar um determinado número de horas dentro da água para que a produção de leite fosse maximizada.
Após pagarmos pela refeição e nos despedirmos, caminhando de volta para a cidade, refletíamos sobre as vacas tidas como sagradas, que eram também exploradas e espancadas, e sobre um rio que é chamado de “mãe” e visto como fonte da própria energia espiritual da cidade, mas que, por outro lado, serve também como um depósito de lixo e esgoto.
Quando decidimos ir a Varanasi, pretendíamos usar a cidade como base para visitarmos Sarnath e conhecer o local do primeiro discurso proferido pelo Buddha e, então, viajarmos de lá para Bodhgaya, onde faríamos um retiro de meditação de 20 dias. Estávamos felizes e cheios de expectativas, pois para peregrinos budistas como nós, era uma oportunidade incrível. Como se não bastasse, teríamos a chance de passear de barco pelo Ganga, observar os rituais de cremação e assistir ao Ganga Aarti[5], uma cerimônia de demonstração de gratidão e respeito ao rio e de pedido de bençãos, que acontece todos os dias ao pôr do sol.
Um Toque de Zen
Sabíamos pelos relatos de outros viajantes que circular pela Índia não era tão fácil quanto em outros países da Ásia. Já havíamos comprovado essa tal dificuldade em Jodhpur e em Déli. Mas, “não tinha como dar errado”, era o que eu continuava repetindo para mim, deitada sobre as cadeiras que se assemelham a espreguiçadeiras no aeroporto de Déli à espera do voo para Varanasi. A disposição dos assentos no avião era em grupo de três para cada lado. A espera do terceiro elemento, sempre criava em mim uma certa expectativa. Na Índia, comumente, quem se senta ao seu lado, em qualquer que seja o transporte ou a ocasião, vai certamente passar as demais horas assistindo a vídeos no celular sem fone de ouvido, ou te sabatinando a respeito de família, salário (sim, lá é comum nos perguntarem sobre nossos salários!), sonhos, viagens, religião, frustrações, e ao final coroar a conversa com a imbatível hospitalidade indiana, te convidando para visitar sua casa e família. Trocaremos telefones e seguiremos nossas vidas. Thomás estava mais cansado, então, eu que fiquei de anfitriã. Quando percebi que, dessa vez, nenhum indiano nem indiana se sentaria ao meu lado e, sim, um monge zen japonês, tentei acordar o Thomás, pois não sabia se seria desrespeitoso “obrigá-lo” a se sentar ao lado de uma mulher, como o é na tradição Theravada.
Em poucos segundos, calmamente, ele se sentava, sorrindo em cumprimento. “Não tinha como dar errado”. Quase que se forçando aos costumes indianos – talvez, por tomar-me por uma indiana, como aconteceu em outras ocasiões –, engatamos em uma conversa que terminou conosco recebendo do monge seu cartão de visita e convidando-nos para um dia conhecermos seu templo na cidade de Miyoshi, em Hiroshima, no Japão. O avião faria uma parada em Bodhgaya, antes de seguir para Varanasi, e foi lá que o monge Rinzai se despediu, descendo para seu destino. Era um homem tão gentil, uma presença tão suave. A maneira como retirava sua água, seus utensílios e comia da pequena mochila, era toda orquestrada, chamando-nos a atenção. E, ao mesmo tempo, era claramente um homem forte. E por dias falamos dele, e de tudo que com ele conversamos. Ali, Japão entrou em nossa lista de peregrinação.
Saindo do aeroporto, para finalmente contratar um transporte rumo ao centro histórico, nos deparamos com um mar de homens, que, disputando-nos entre si, seguravam nossos braços, malas, gritavam uns com os outros, para ver quem nos levaria em seus carros. Conseguimos, finalmente, escolher nosso motorista para o transfer, dividindo o táxi com mais duas meninas europeias. Fomos deixados na entrada do centro histórico, já que era simplesmente impossível a circulação de qualquer transporte no emaranhado de vielas – nem mesmo autorickshaws[6] entravam lá. Depois de passarmos cinco vezes pelo mesmo vendedor de tecidos, finalmente concluímos que estávamos irremediavelmente perdidos. O comerciante que já nos tinha como velhos conhecidos, perguntou-nos o nome da pousada, e nos indicou o caminho, acrescentando “voltem amanhã para comprar tecidos para um sari[7]!” – mesmo certamente sabendo que a pousada onde nos hospedávamos custava menos de quatro dólares o quarto.
Mal sabíamos que aquele quarto seria a nossa Varanasi dali a pouquíssimos dias. Uma janela minúscula com grades para evitar a entrada de macacos dava para um pátio cuja aparência fazia jus ao odor. Mas não estávamos nem um pouco desanimados, “não tinha como dar errado”.
Cinzas e Fumaça
Não planejamos nenhuma atividade para o nosso segundo dia na cidade, queríamos caminhar livremente pelas ruas, conhecer um pouco da vida local. Tamara marcou com um motorista de autorickshaw a nossa ida para Sarnath para a manhã seguinte e com um barqueiro um passeio pelo rio no amanhecer do quarto dia.
Fomos até um ghat onde estavam acontecendo cremações, nos mantivemos a uma distância respeitosa de onde observávamos corpos chegando enquanto outros eram incinerados. Familiares e curiosos assistiam aos funcionários que com longas varas moviam os corpos para facilitar o trabalho das chamas. Cabras e cachorros buscavam restos para comer entre lixos e cinzas ainda fumegantes.
A morte tratada com tamanha naturalidade é algo impensável no nosso mundo ocidental contemporâneo. Usamos eufemismos para falar de doenças graves ou da possibilidade de morte, cultuamos a aparência jovem e criamos uma próspera indústria responsável por desenvolver produtos destinados a esconder de nós mesmos e dos outros a passagem do tempo. Enquanto víamos corpos virarem cinzas e fumaça, lembrávamos da parte do Satipatthana Sutta na qual Buddha ensina os discípulos a meditarem contemplando cadáveres em diferentes estágios de decomposição e os comparando a seus próprios corpos.
Na Tailândia, alguns monastérios budistas possuem esqueletos humanos expostos que servem como um aviso constante da inescapável impermanência. Não é incomum que leigos devotos, já idosos ou sofrendo doenças terminais, ofereçam seus próprios corpos aos monastérios, para que os monges tenham a possibilidade de praticar a contemplação de anicca.
O monge canadense Ajahn Sona conta sua experiência quando vivia na Tailândia: “Algumas vezes passávamos a noite inteira sentados observando um cadáver e recebendo uma dose da realidade da morte”[8], a partir da experiência de ver o corpo passar pelos diferentes estágios de decomposição, o monge diz que você acaba internalizando que nós não somos nossos corpos, que lá estão apenas elementos e não o “eu”.
Ali, diante das cremações a céu aberto, o Satipatthana se tornava, para nós, mais palpável do que nunca. Na cidade sagrada do hinduísmo, nos sentíamos recebendo os mais profundos ensinamentos budistas. Como explicou Ajahn Tan: “Usar inteligência para contemplar a morte, não para criar medo, mas para despertar nossa mente para que não seja descuidada com a vida. Contemplar a morte para cortar a ganância, o ódio e a ignorância da nossa mente”. (TAN, 2014, p. 173)
Água e Fogo
Ao anoitecer, Thomás e eu, rumamos para o ghat Dashashwamedh, para assistirmos ao Ganga Aarti. Na noite anterior, quando havíamos acabado de chegar, não conseguimos lugar em meio à multidão. Dessa vez, chegávamos uma hora mais cedo e mesmo assim tivemos que nos espremer entre os fiéis para chegar perto de onde realizavam a cerimônia. Vendo nossas expressões de perdidos, uma família local gentilmente se apertou ainda mais e nos cedeu dois lugares para nos sentarmos.
A noção de espaço individual varia culturalmente de um país para o outro, naquela noite descobríamos que o conceito simplesmente inexiste no território indiano. Enquanto esperávamos, nossos corpos eram usados como corrimões, mesas ou bengalas. As pessoas se apoiam, debruçam e agarram umas aos corpos das outras sem o menor pudor, sem nem ao menos uma troca de olhares prévia – ou posterior.
De repente, ouvimos soar uma corneta, que na verdade era uma concha assoprada por um dos religiosos, a ela seguiam sinos e cânticos. Incensos e lâmpadas flamejantes obedeciam a movimentos coreografados ao ritmo ditado pelos sinos. Na multidão, muitos peregrinos choravam emocionados com a possibilidade de participar daquele acontecimento tão importante em sua religião.
Meu braço era a continuação da perna de uma menina que estava espremida ao meu lado. O cabelo de sua mãe se confundia com o meu. Parei de lutar para respirar um ar que parecesse só meu e me entreguei àquela cerimônia lindíssima, que filme nenhum havia conseguido me fazer sentir o que lá eu sentia. “Não tinha como dar errado”. Assistia a tudo tentando entrar em algum estado meditativo. Ali, ao lado da mãe Ganga de repente veio-me a firme compreensão inquestionável de que aqueles corpos todos eram os ossos que observara pela manhã. E não foi difícil também ver o meu corpo junto ao deles. Éramos claramente a mesma coisa, nada nos diferenciava naquela cerimônia. Nascíamos tão mortos como quando morríamos.
Ali lembrei de uma experiência que tive no início das nossas perambulações asiáticas. Certa vez, entrando em um templo Theravada no Laos, deparei-me com um monge imóvel, que se sentava dentro de um quartinho, na verdade, era tão pequeno que parecia mais uma caixa, e era toda de vidro. Uma imagem perturbadora. Era um senhorzinho simpático, mas havia algo nele que me incomodava. Mostrando-o, disfarçadamente ao Thomás, ele gentilmente, explica-me tratar-se de uma estátua de cera de um antigo monge já morto. À época, achei de péssimo gosto, mas concluímos que além de ser uma homenagem ao mestre – não diferente de uma fotografia – não deixava de servir para se rememorar a impermanência. E foi o que mais acessei naquela noite à beira do Ganga: anicca.
Saía daquela cerimônia, certamente, bem diferente de como chegara. Andávamos de volta ao hotel, mais vívidos do que nunca, planejando nossa ida na manhã seguinte a Sarnath.
Acordamos e já partimos. A estrada para Sarnath no autorickshaw era cheia de buracos e muita poeira. Começamos a nos sentir mal. Tentávamos bloquear o ar empoeirado com lenços sobre nossa boca. Ao chegar, já tínhamos um itinerário pré-estabelecido. Diante do cansaço atípico, fiz uma adaptação, para iniciarmos pelo museu[9] e recobrar as energias.
O Museu de Sarnath reúne estátuas e fragmentos de ruínas e monumentos de 250 a.C. – como os leões do grande Ashoka[10], cuja base apresenta uma roda, o chakra de Ashoka, que é representada na bandeira nacional da Índia – e o guarda-chuva do bodhisattva que data do primeiro século da nossa era. Embora fosse tudo extremamente interessante, o nosso mal-estar era crescente. Ao sair do museu, ainda muito cansados, decidimos riscar vários pontos de nosso itinerário daquele dia e ir direto à Estupa de Dhamekh[11].
A cada passo, já meio febril, revivia as Quatro Nobres Verdades e o Caminho Óctuplo para ver se ao chegar ao que se entende como o lugar exato onde Buddha fez seu primeiro discurso como desperto, para seus cinco colegas de prática, eu escutaria “Tamara, você conseguiu, você conseguiu!”, como disse Buddha a Kondanna após o primeiro giro da roda do Dharma[12]. Thomás começava, também, a se sentir gradativamente indisposto. Já não sabíamos se tamanho mal-estar era realmente fruto do pó da estrada.
O cansaço nos fez sentar ao lado daquela grande estupa e, talvez, somado a ele, a aura do lugar e nosso estado febril nos impulsionaram a pensar em tudo o que havíamos percorrido para estarmos lá. Qual foi aquele momento do filme da história de nossas vidas em que tudo mudou de direção? Costumamos atribuir essa grande guinada à morte do meu sogro, esquecendo-nos de que não há cavalos-de-pau que justifiquem mudanças sustentáveis. Há, certamente, karmas. Lá, entre semidelírios, penso em Clarice Lispector:
Tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida. Mas antes da pré-história havia a pré-história da pré-história e havia o nunca e havia o sim. Sempre houve. Não sei o quê, mas sei que o universo jamais começou. (Lispector, 1998, p. 13)
Todas as vezes em que dissemos sim à vida, ao abismo, às mudanças, agíamos, criávamos karma para aquele dia estarmos lá. E, certamente, colhíamos frutos de karmas que lá nem sabíamos, ao certo, a quais ações correspondiam, mas existia a certeza de que havia sido preciso um encadeamento de atitudes. Como diz Monge Genshō, há uma pletora de condições, pessoas, eventos, para que exista um grão de arroz em nossos pratos[13]. Para não desperdiçarmos as nossas vidas, é preciso “prestar atenção a tudo que esteve atrás de nós, toda dor e sofrimento que nos possibilita estarmos em pé”. Por isso, inclusive, que “não tinha como dar errado”. A parte que fugia ao karma humano, à natureza de se ser humano – ou seja, a causalidades e à “condição que inclui ficar doente, sofrer, quebrar a perna”[14] – essa parte era nosso esforço constante de dizer “sim”.
Uma Viagem para Dentro com Varanasi para Fora
Tivemos que abortar todos os planos em Sarnath e voltarmos para Varanasi, logo após deixarmos o complexo onde há a Bodhi Tree. Mesmo sem disposição, estávamos com o coração fortalecido pela leitura e rememoração do Dhamma Chakka Pavattana Sutta[15] que fizemos naquela rápida peregrinação.
Passamos dias e dias trancados em nosso quarto. Ora era eu, ora o Thomás quem se sentia pior. Fiz amizade com uma senhora francesa dona de um restaurante, quem nos alimentou todos os dias de nossa estada. Para comermos, tínhamos que nos deslocar por uns 30 metros na horizontal, e subir 5 andares de escada, onde seríamos servidos com gengibre, limão e mel diariamente, algumas vezes por dia.
A cidade ficava mais esfumaçada a cada saída em busca de saúde. As ruas pareciam mais habitadas do que nunca. Vacas suadas esbarravam em nós, nos apertados corredores que era o mais perto que se pode chamar de rua. Pareciam tão febris quanto nós. Com elas, cruzávamos olhares com pedido de socorro; mas não podíamos nos ajudar. Até que em meio àquele burburinho, um silêncio sepulcral. Teríamos morrido? Que paz! Em poucos segundos, não havia uma única pessoa para fora, nem macacos, nem sadhus, todos procuravam abrigar-se em algum estabelecimento comercial – imitando-os, fizemos o mesmo. Ao longe, escuto o que entendi ser uma corneta de chifre. E de repente, um búfalo enfurecido, aparece a uns 5 metros de nós. Enorme, realmente gigante, imponente e senhor de si. Não parecia apressado, o peso que jogava em cada passo transparecia estar injuriado. Volta e meia, lançava seu grito de corneta e bufadas.
Tínhamos dificuldade para nos alimentarmos, o que me fazia questionar se realmente deveríamos dispensar todo aquele esforço em luta corporal para chegarmos à nossa amiga francesa. Concluímos que sim, pois os únicos esforços efetivos que fazíamos ao longo dos dias era o de ir comer e o de tomar banho de balde em nosso quarto.
A melhora não parecia vir, mas ainda assim, estávamos confiantes de que dali a dez dias, estaríamos bem para o início do retiro. Os dias se arrastaram e chegou a hora de nossa viagem de trem para Gaya, para de lá seguirmos a Bodhgaya, onde ficava o centro de meditação. A viagem levaria por volta de quatro horas, mas tínhamos conseguido comprar bilhete na terceira classe, ou seja, teríamos uma espécie de cama para cada um de nós. Chegamos com uma hora e meia de antecedência à estação. Após 30 minutos, o aviso: trem atrasado. Somando-se à nossa antecedência, demoraríamos, então, 3 horas para podermos nos sentar no trem. Por isso havia tantas pessoas deitadas por todo o chão da estação, nenhum deles esperava conseguir embarcar na hora indicada no bilhete, então, simplesmente esperavam deitados. Quando as três horas se aproximavam, outro aviso: mudança de plataforma. Tentávamos com nossas mochilas de 11kg, subindo e descendo escadas, chegar à plataforma correta. Lá, outro aviso: mais duas horas de atraso. Depois outro atraso, desta vez, sem previsão de horário para chegada do trem. Mudança de plataforma. Atraso. Subida e descida de escada. Me sentia cada vez pior. Eu não conseguia respirar, meu peito doía como se estivesse arrastando pedras dentro dele e essas impediam a passagem do ar. “Cigarro é um veneno”, me disse um francês, puxando assunto. Não tinha nem forças para lhe explicar que nunca havia colocado tabaco na boca. Não tinha nem forças para chorar. Thomás não se movia mais. Naqueles mais de 40 graus, tremíamos de frio. Depois de quase dez horas de atraso, o trem chegou, vindo de outro lugar, e cheíssimo. Chequei nossas passagens umas três vezes, enquanto me certificava que, sim, era em nossas camas que estavam uns seis indianos sentados. Mal conseguíamos achar espaço para, com eles, nos espremer, quanto mais, sem eles, deitarmo-nos. Olhava nossas vidas se esvanecendo, como areia entre os dedos. Reunimos nosso último fôlego, e expulsamos os indianos da cama do Thomás, depois da minha, e conseguimos, encharcados de suor, dormir por umas 3 horas.
Fragmentos semioníricos de memórias
Antes de pegar no sono, Tamara, entre lágrimas, disse que estava com ainda mais dificuldades para respirar e eu respondi que procuraríamos um hospital assim que chegássemos à Gaya e que, se preciso, embarcaríamos de volta para o Brasil. Passei horas terríveis preocupado com ela, me sentindo extremamente fraco, tremendo de febre com a mente confusa e exausta. Dormia alguns minutos e logo acordava para verificar como ela estava.
Lembrava dos corpos sendo queimados, da cerimônia do fogo às margens do Ganga, dos últimos dias febris em Varanasi, quando nos esgueirávamos pelas ruelas até o restaurante onde nos alimentávamos antes de voltarmos para o quarto para ficarmos deitados até o dia seguinte. Até hoje, não sei direito o que aconteceu lá. Minhas lembranças são fragmentadas e semioníricas. O olhar do búfalo que com seu berro irado esvaziou aquela rua se confunde, em minha mente, com o de um sadhu que me encarou por segundos eternos.
Varanasi, para mim, é mais do que uma cidade ou um conjunto de memórias de vivências, é uma amalgama de sensações e sentimentos: os cheiros da fumaça vinda dos corpos, dos incensos adocicados onipresentes, do nosso chá de gengibre engolido com dificuldade, do esterco das vacas, da poeira da estrada para Sarnath; o som das buzinas, dos cânticos hindus, do gemer das búfalas d’água apavoradas ante o espancamento, do berro do búfalo que naquele instante disse “chega”, do autofalante da estação que nos arremessava de uma plataforma para a outra em busca de um trem que como em um conto de Kafka nunca chegava; a tranquilidade feliz que sentimos com a mera presença do monge japonês naquele avião, a aflição de nos percebermos a cada hora mais fracos e doentes, o alívio de após horas ver o nosso trem chegar à plataforma.
E, tão repentinamente quanto se instalou em nossos corpos, a doença nos abandonou. Após uma conturbada chegada à Bodhgaya, nos vimos novamente em um quarto de hotel. Após um dos mais esperados banhos de nossas vidas, dormimos até o fim da manhã seguinte e quando acordamos estávamos curados. Dias depois, entraríamos em nosso primeiro retiro de 20 dias, mas isso é uma outra história.
Texto de
Tamara Carneiro, Linguista Aplicada e professora de línguas. Praticante na Daissen Ji, Escola Soto Zen
Thomás Rosa, professor de Teorias da Comunicação e Jornalista. Praticante na Daissen Ji, Escola Soto Zen.
Referências:
Dhammacakkapavattana Sutta. In: https://www.acessoaoinsight.net/sutta/SNLVI.11.php
GENSHÔ, Monge. “Por trás de um grão de arroz”. In: https://www.daissen.org.br/por-tras-de-um-grao-de-arroz/
__________. “Sobre Carma e Causalidade”. In: https://www.daissen.org.br/sobre-carma-e-causalidade/
NHAT HANH, Thich. Velho Caminho, Nuvens Brancas. Editora Bodigaya, 2020
LISPECTOR, C. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
Maranassati Sutta: Mindfulness of Death – https://www.accesstoinsight.org/tipitaka/an/an06/an06.019.than.html
Satipatthana Sutta – Os Fundamentos da Atenção Plena – In: https://www.acessoaoinsight.net/sutta/MN10.php
Shiva’s Holy City. In: https://www.nytimes.com/1993/05/16/t-magazine/shivas-holy-city.html
SONA, Ajahn. Maranasati: Buddhist Reflections on Death. In: https://www.youtube.com/watch?v=5SBrCdRTX8o
TAN, Ajahn. In: Darma da Floresta: Ensinamentos de mestres da tradição da floresta do Budismo Theravada. Amaravati Publications, 2014.
[1] É como muitos indianos costumam chamar o rio Ganges. Alguns com os quais conversamos, inclusive, se mostram irritados pelos ocidentais insistirem usar o nome “Ganges” ao invés de Ganga.
[2] Escadarias que levam às margens do rio.
[3] Bolinhos recheados com vegetais assados no vapor.
[4] https://www.wwe.com/
[5] https://timesofindia.indiatimes.com/travel/things-to-do/chasing-divinity-ganga-aarti-destinations-in-india/as67849621.cms
[6] Triciclos motorizados que servem como táxi, equivalentes aos tuk-tuks tailandeses.
[7] Uma espécie de vestido tipicamente usado pelas mulheres indianas https://www.ehow.com.br/historia-roupas-indianas-sobre_4738/
[8] Maranasati: Buddhist Reflections on Death. In: https://www.youtube.com/watch?v=5SBrCdRTX8o
[9] http://www.sarnathmuseumasi.org/index.html
[10] Ashoka foi um grande imperador da Índia (governou de 268 a 232 a.C.) chegou a ser um grande defensor da paz, abraçando o Dharma.
[11] https://en.wikipedia.org/wiki/Dhamek_Stupa
[12] Nhat Hanh, Thich. 2020. p. 123
[13] https://www.daissen.org.br/por-tras-de-um-grao-de-arroz/
[14] https://www.daissen.org.br/sobre-carma-e-causalidade/
[15] Em sânscrito: Dharmacakrapravartana Sūtra