Supremacistas de Internet e suas Críticas ao Budismo e seu Pacifismo


Introdução

Certa vez, numa entrevista (dokusan) com o Sensei Genshô falamos sobre algumas tendências ideológicas atuais, e sobre o perigo de falsos “gurus” que se propõem a guiar pessoas pelo caminho espiritual. Daí chegamos a falar de conteúdos um tanto, digamos assim, excêntricos, que circulam sobre o budismo na internet. Sensei destacava a necessidade de esclarecer determinados aspectos de algumas ideias sobre budismo que circulam, com a finalidade de contribuir para nortear os membros de nossa sangha, e quem sabe outras pessoas também.

Esse pequeno texto que escrevi, é fruto de uma preocupação com o rumo que essas ideias têm tomado e de como essas ideias podem ser manipuladas para fins de poder e dominação, ou até coisas piores como racismo e perseguição religiosa.  Inspirado pela presença lúcida e amorosa do Sensei Genshô, busquei mostrar a complexidade por trás de certos posicionamentos que criticam o budismo. Não é um texto científico, não escrevi nos rigores exigidos pela academia, porém coloquei o melhor de minha razão para tentar ser claro e justo com as ideias tratadas. O que pretendo é mostrar para aqueles que terão contato com esse texto, as diversas “camadas” que uma determinada ideia pode apresentar. Indo de aspectos mais óbvios até conexões com certas correntes de pensamento que nem sequer imaginamos que possam ter relação. Sendo assim, acredito que esse texto possa contribuir, minimamente, para esclarecer a complexidade de certos debates.

Apenas uma Ideia Diferente 

Segundo alguns divulgadores de internet, conhecidos por assumirem auto ordenações e títulos budistas inventados, há uma mentira fartamente veiculada atualmente, qual seja: a de que o budismo é “uma religião essencialmente pacifista”. Propõe-se colocar em questão o princípio de “Ahimsa” (princípio da não violência), como sendo, no mínimo, um erro conceitual repetido fartamente no ocidente. É normal que haja diferentes perspectivas acerca de “questões” dentro do budismo dada a multiplicidade de escolas. Porém algo chama atenção e faz necessária uma reflexão mais profunda tanto sobre o conteúdo quanto sobre a abordagem nestes questionamentos sobre o caráter pacifista do budismo. Vejamos.

Tomando como exemplo a questão da “não violência”, como sendo uma das mentiras acerca do budismo, autores dessa corrente usam a seguinte argumentação: há atualmente uma visão geral EQUIVOCADA de que a ética Budista impõe, categoricamente, a “não violência” até suas consequências últimas. O que significa que um praticante do budismo não pode agir de maneira violenta em nenhuma hipótese, além de também não poder REAGIR a uma agressão de forma violenta. Os budistas seriam então passivos ao sofrer qualquer tipo de violação caso seja necessário o uso de violência física para dissuadir um agressor, tendo em vista que “Ahimsa” impede que se faça todo tipo de violência em todo tipo de situação. Em outras palavras, os budistas, seguindo o princípio de Ahimsa, não podem se defender.  Afirmam esses divulgadores, ligados a ideias extremistas que levam a conceitos de supremacia racial defensores de ideias aristocráticas de dominação e virilização, que atualmente tem-se uma visão pacifista dos budistas e que essa percepção é um erro se levarmos em conta a doutrina budista mesmo. Em outras palavras, a maneira como se concebe Ahimsa não está de acordo com o “Budismo Tradicional”, por tanto a visão pacifista dos budistas é um engano, uma das mentiras, segundo eles, propagadas sobre o budismo na atualidade.

Aprofundando ainda mais, tentam mostrar que a chave verdadeira de compreensão de Ahimsa está, em primeiro lugar, num problema de tradução. Ahimsa significaria “não agressão”, e não, “não violência”. O que permite a conclusão que os budistas não devem ser agressores, porém, podem usar da violência para defender-se e dissuadir o mal. Em outras palavras, os budistas podem usar da violência caso seja justa a situação que exige tal ação. Outros argumentos são levantados em defesa do uso da violência por parte dos budistas, mas vamos a uma primeira análise da questão.

Para uma primeira consideração vale lembrar que o próprio problema levantado já traz algumas inconsistências. Tenta-se criar um “espantalho” para o ataque. O que isso significa? Faz parecer que “o budismo atualmente”, de forma monolítica e homogênea, não admite qualquer uso de violência em qualquer situação. Me pergunto: de quem se está falando? Qual é esse budismo que assim pensa? De quais correntes? Quais linhagens? Seria a visão das autoridades espirituais das diversas escolas budistas, ou uma impressão que a mídia e as pessoas em geral têm? Ninguém sabe para quem se dirige a “acusação”.

Além do mais, existe mesmo “no budismo” uma orientação para que os praticantes não reajam a nenhum tipo de possibilidade de agressão física? Nem mesmo aquela que põe sua vida em risco? A resposta é um sonoro não. Porém devemos ter clareza de que as ações nossas possuem consequências kármicas independente se justas ou não. Retomaremos e aprofundaremos essa questão depois, no entanto é importante observar que existe aí um objetivo central, qual seja: rebaixar o papel da compaixão e do cultivo da paz dentro do budismo. Aqui reside o “perigo maior” da mensagem que fica para aquele que assiste e se convence por esses argumentos sem avaliar a sutileza da questão.

 

Entrando Na Segunda Camada

Uma outra questão é que estas ideias foram inspiradas em um livro. Esse livro tenta apresentar uma espécie de retificação de conceitos budistas não compreendidos na atualidade segundo o delírio do autor. No livro a questão da “não violência” vai para além de uma questão semântica. Os outros argumentos para justificar o uso da violência no budismo, segundo o autor, que em breve citaremos, são os seguintes: primeiro o autor mostra como nas antigas tradições hindus a guerra não era vista absolutamente com maus olhos pelos deuses e pelos sábios. Você pode se perguntar porque um budista deveria levar em conta a tradição hindu. Em capítulos anteriores do próprio livro o autor faz um esforço para mostrar o caráter continuativo do budismo em relação às tradições espirituais do hinduísmo, ressaltando que as divergências entre as duas tradições se relacionam com uma decadência de certas práticas hindus que foram devidamente atacadas pelo budismo. Contudo, em essência, não haveria grandes divergências entre o hinduísmo tradicional e o budismo, possibilitando o uso daquele para justificar e compreender princípios desse.

Depois o autor tenta mostrar em diversos sutras as falas do Buda que legitimam o uso da violência em caso de autodefesa. Além disso, busca em outros momentos da história do budismo identificar personagens que tenham recolocado o papel da violência dentro da ética budista. Sabemos que todos esses argumentos são passíveis de críticas. A diversidade de sutras, linhagens, mestres e possibilidades interpretativas abre o caminho para um grande debate, no entanto, o que mais me chama atenção não é a possibilidade de um confronto hermenêutico, semântico, linguístico ou “teológico”, mas a abordagem e o esforço do texto em DESLOCAR para um segundo ou terceiro plano o lugar da cultura de paz do budismo. O autor se esforça para mostrar não só que é lícito usar da violência em situações de autodefesa, como é dever de qualquer budista agir de forma violenta para refratar um possível mal. Ou seja, um budista deve estar “afiado” (isso aparece no texto), para combater violentamente o mal e inclusive a possível destruição do Dharma.

Aqui a coisa vai mudando qualitativamente de tom. Se antes o leitor tem a impressão de que o autor só está chamando atenção para o direito dos praticantes budistas de se defender, a partir de um momento do texto percebe-se uma espécie de culto a uma postura combativa e guerreira. O argumento começa a tomar a direção da intenção final dos próprios argumentos do texto. A “imagem” da ética budista pintada no texto é a de um homem que é proibido de atacar deliberadamente (ahimsa) uma pessoa e por isso não faz. Porém, na primeira agressão que alguém venha a realizar contra esse praticante budista, é LÍCITO um rompante de “fúria santa” e justifica-se cortar o agressor ao meio. Os argumentos tomam um certo “clima” de legalismo, onde o lícito e ilícito passam a ser considerados na minúcia para se ter um norte de ação. Nessa altura do campeonato a palavra Compaixão é absolutamente esquecida! O que determina a ética é antes de tudo a letra do lícito e ilícito.

A casta dos Kshatrias, dos guerreiros, passa a ser cortejada como modelo de ética a ser seguida pelo praticante budista. A ética guerreira toma um patamar alto nesta perspectiva. Isso me parece profundamente contraditório tendo em vista a força simbólica da biografia de Shakyamuni Buda ao cortar seus cabelos, símbolo de distinção da casta guerreira, e abandonar seu “lugar social”. O Buda torna-se um contemplativo, e esse sim passa a ser o modelo de busca dos primeiros bikhus, a realização do Despertar era o objetivo, e as práticas espirituais suas armas para esse fim.

 

Entrando Na Terceira Camada

Outro aspecto que deve ser considerado é o seguinte: além do livro como fonte para as essas ideias, há também raízes intelectuais que norteiam os argumentos presentes. Apesar das referências de Sutras e uma tentativa de demonstrar conhecimento das línguas fundantes do budismo, esses divulgadores supremacistas não explicitam a forte influência de uma corrente de pensamento fortemente presente em seu livro e nos seus vídeos, a chamada Filosofia Perene. Quem conhece essa literatura percebe claramente que os autores supremacistas utilizam termos e raciocínios fartamente utilizados e popularizados pelos autores dessa corrente de pensamento. Aqui começamos a perceber as camadas mais internas do pensamento supremacista, e para isso precisamos fazer uma breve caracterização dos Perenialistas, pelo menos em linhas gerais pois trata-se de um universo de ideias e autores. Para nós basta entender certos aspectos dessa corrente de pensamento para podermos mapear as raízes dos argumentos desenvolvidos, tendo em vista sua vastidão e heterogeneidade.

Os Perenialistas são assim chamados pelo fato de usarem o termo medieval Sophia Perenne para designar uma característica fundamental de sua própria forma de abordar o fenômeno das religiões e tradições espirituais. Esse termo sugere que existe uma “sabedoria perene” na história da humanidade que apareceu em diversos povos através de diferentes símbolos. Esse “saber” , segundo esses novos criadores de mitos, pode ser encontrado nos antigos mitos, nas grandes tradições religiosas e em algumas correntes filosóficas inauguradas pelos gregos a partir do século VI a.c. De Platão aos Escolásticos, dos Vedas ao Tao Te King a Filosofia Perene reaparece de diversas formas em diferentes povos. Entende-se que essa Sabedoria trata dos princípios metafísicos que fundamentam a explicação da realidade, e é transmitido através de uma gama de símbolos, ritos e mitos que passam a ser o fundamento também de uma cosmologia, antropologia, história, arte e costumes de um povo. Dentre esses chamados perenialistas, destaca-se o francês René Guenon, um erudito que buscou estudar diversas tradições religiosas e sistemas metafísicos, a fim de mostrar a unidade por trás das formas tradicionais que se manifestam.
Guenon também foi um crítico ferrenho das bases intelectuais que fundaram a modernidade, iniciada na Europa no século XV com o Renascimento Cultural. Não cabe aqui aprofundar no pensamento de Guenon, mas vale lembrar que diversas outras figuras se juntaram a ele na crítica da modernidade, na constatação da “unidade transcendente das tradições”, e na concepção de que a finalidade humana é essencialmente contemplativa. Autores como Fritjof Schuon, Marco Pallis, Sayed Houssein Nasser, Martin Lings, Ananda Comaraswamy, Wilian Stodart e Julius Évola produziram obras que de alguma maneira relacionam-se com os principais fundamentos da Filosofia Perene. Naturalmente houve divergências entre esses autores, algumas irredutíveis. O próprio Guenon afirmou durante boa parte de sua vida que o budismo não poderia ser encaixado como uma tradição autêntica, sendo o budismo apenas uma expressão da revolta da casta guerreira contra a casta sacerdotal dentro da sociedade hindu. Segundo Guenon, o budismo seria uma espécie de tentativa dos Kshatrias de fugir as “normas” e limites que a casta sacerdotal impunha, repetindo um padrão histórico de conflito entre as castas superiores e a decadência da Tradição.

Contudo diversos outros autores perenialistas (ou às vezes chamados de tradicionalistas) identificaram nessa postura de Guenon um erro, buscando mostrar o caráter autêntico do budismo. Schuon, Comaraswamy, Marco Pallis e Évola são exemplo desses autores que reconheciam o caráter verdadeiro e “tradicional” do budismo. Parece que o próprio Guenon progressivamente passou a reconhecer o budismo.

Outras divergências eram muito mais complexas e sem solução. Era o caso da perspectiva do Guenon e do Évola sobre o papel dos sacerdotes e dos guerreiros na tradição. Aqui é muito importante atenção para compreendermos a questão que foi posta acima sobre o papel da violência no budismo. Guenon entendia que a história humana poderia ser dividida em Eras, marcadas pelo gradual obscurecimento do conhecimento da Verdade (saber metafísico) pelos humanos. Segundo ele, essa concepção cíclica e decadentista da cultura humana está presente em diversos mitos, símbolos e filosofias da história. As 4 Idades dos gregos é um exemplo.

Na idade primordial, época onde todos os humanos eram igualmente capazes de conhecer os fundamentos da Verdade espiritual haveria somente um tipo humano, qual seja; o contemplativo. Seria uma espécie de época paradisíaca onde todos acessavam a Verdade, ou seja, conheciam a natureza última da realidade. Porém com o passar das Eras os humanos entraram em decadência e surgiram tipos humanos diversos, com preocupações diversas e consequentemente com capacidades diversas no que concerne à tradição. Essa seria a origem das Castas! As Castas seriam um dado da realidade, uma tipologia humana fruto dessa decadência, dessa perda da capacidade de conhecer a Verdade. Sacerdotes, Guerreiros e fazendeiros/comerciantes/artesãos/operários seriam as três Castas/tipos humanos fundamentais. No esquema católico medieval seriam: oratores, belatores e laboratores.

Para Guenon, a Casta dos sacerdotes guardava a Tradição, ou seja, o conjunto de conhecimento que permite a humanidade conhecer os fundamentos da realidade. As outras Castas teriam uma incapacidade inata de conhecer tal realidade, daí a importância desse sistema hierarquizado ser aplicado no próprio corpo social. Quer dizer, o ideal em uma sociedade seria uma organização hierárquica baseada nos tipos humanos fundamentais, ou Castas, como na Índia. Rene Guenon entende os sacerdotes (ou contemplativos) como modelo ideal de “homem”, herdeiros da humanidade primordial da Idade do Ouro.

Apesar de Guenon não compactuar com ideologias políticas modernas, conceitos supremacistas do século XX e XXI tem influências dessas filosofias hierarquizantes, aristocráticas e decadentistas, o próprio nazismo defende a supremacia de um grupo ou casta, descendente, segundo seus ideólogos, de seres superiores destinados a dominar e governar os “inferiores”.

Entrando Na Quarta Camada

Diferentemente pensava Évola, que produz em uma “cena cultural” europeia originadora das teorias fundantes do nazifascismo. Evóla chegou a ter relações com o próprio Fascismo italiano. Em uma entrevista chega a afirmar que se afastou pois percebeu o caráter “operário” do movimento, carecendo mais de “Antigo Regime”. Esse autor, apesar da influência que sofreu de Guenon, entendia a História da humanidade de forma diversa, para além do papel das Castas na Tradição. Evola entende a história da humanidade como uma espécie de “luta” de raças. Segundo ele, no que chamamos pré-história da humanidade, havia diversos povos com práticas espirituais diferentes, no entanto na região hiperbórea do mundo, especificamente no extremo norte da Europa, teria surgido uma cultura espiritual dotada de grande capacidade de conhecer a Verdade. Essa cultura hiperbórea primordial teria criado uma espiritualidade transcendental, fundamentada basicamente na superação de tudo aquilo que é telúrico e que pudesse prender o indivíduo. Os cultos hiperbóreos apontavam para um anseio de liberdade absoluta. Tudo aquilo que aprisionasse o homem deveria ser transcendido. Símbolos como o sol, a águia, o leão seria usado para comunicar a capacidade humana de romper todos os limites. O homem teria a capacidade divina de tornar-se ele mesmo absolutamente livre.

Em contrapartida, Évola entende que outros povos desenvolveram culturas espirituais aprisionantes, uma vez que se limitavam ao culto da natureza, da fertilidade e de aspectos imanentes da realidade. Esses povos, a maioria da humanidade, no entender de Évola eram essencialmente inferiores no quesito espiritualidade. Évola argumenta que os hiperbóreos se espalharam na terra e fundaram diversas culturas espirituais diferentes. Através de uma complexa argumentação histórica, antropológica e arqueológica, ele tenta demonstrar a existência de uma espécie de “raça do espirito”, ou seja, povos com formas de espiritualidades comuns e com ligações ancestrais com os hiperbóreos. A vastidão desses povos vai desde os Astecas, passando pelos indo europeus (germânicos, romanos, gregos, hindus e persas) até os proto chineses.

A partir daqui começa a diferença fundamental entre o pensamento de Guenon e Évola. Para esse último, os povos descendentes dos hiperbóreos fundaram civilizações, reinos e impérios, estando marcados pela experiência da guerra. A guerra, a violência e a conquista estavam no “DNA” desses povos, e portanto, diretamente vinculada com sua cultura e espiritualidade. A espiritualidade guerreira floresce em acordo com aquela intuição transcendental inicial de libertar-se das prisões deste mundo. Triunfar sobre o inimigo equivale ao arquétipo de subir a montanha, transcender os limites e superar a si mesmo. O ethos guerreiro desses povos moldou a sua espiritualidade, sacralizando a violência contra os povos que deveriam submeter-se a eles. O domínio daqueles que cultuavam as forças imanentes e telúricas da realidade, equivalia ao domínio dos aspectos inferiores do próprio homem. Assim sendo, a Casta dos guerreiros era sagrada por si mesma, pois o triunfo na guerra, e todas as qualidades humanas necessárias para se alcançar tal objetivo, eram a expressão de sua superioridade espiritual. Em um livro chamado “Revolta contra o mundo moderno”, Évola chega a dizer que as raças inferiores devem servir aos “duas vezes nascidos”, usando uma terminologia hindu para referir-se às elites guerreiras dominadoras.

Os autores destas ideias supremacistas fazem referências a uma obra de Évola específica sobre budismo chamada “A Doutrina do despertar”. Fazem mil elogios à perspectiva “tradicionalista” que Évola tem acerca do budismo. Na verdade, fica claro que foi dali que tiraram sua inspiração de sua concepção de budismo, inclusive a questão da violência e da guerra (Évola tem um livro chamado “Metafísica da Guerra”). Naquele livro Julius Évola se aprofunda na explicação do budismo como uma doutrina eminentemente indo europeia, Arya, exaltando o seu caráter transcendental, viril e aristocrático. O budismo, nestas teses supremacistas, apresenta como característica marcante, um certo desdém com o mundo (cosmos e sociedade), apresentando uma metodologia de busca espiritual similar à de um guerreiro em uma batalha, coisa que não está disponível para qualquer pessoa, reservada por tanto somente a uma elite (aristocracia) qualificada para tal.

Évola acredita que a versão budista Mahayana é uma expressão decadente, na medida que centraliza a compaixão por todos os seres como método de realização espiritual. No Mahayana a compaixão pelos seres torna-se central, eliminando o caráter aristocrático do budismo e introduzindo um elemento sentimental na doutrina. Apesar disso, o autor entende o Zen como um suspiro do budismo verdadeiro dentro do movimento Mahayana. É complicada a argumentação em torno disso, mas há essa perspectiva. Évola esforça-se para mostrar como o budismo é compatível com uma espiritualidade guerreira, e vai além, tenta provar que o budismo é uma doutrina eminentemente guerreira. Chega a confundir as doutrinas shintoístas guerreiras do Japão que inspiraram sua atuação na II Guerra com o zen, que por seu pacifismo foi perseguido, junto com todo o budismo japonês, no séc. XIX e XX.  No seu livro sobre budismo, Évola chega a argumentar que Ashoka, imperador “indiano” que se converteu ao budismo, era um sinal desse caráter guerreiro. Cita também a Casta dos Samurais como exemplo da vocação aristocrática e guerreira da doutrina budista. Évola afirma que houve uma docilização do budismo no ocidente, e que a imagem pacifista e vegetariana que se construiu é acima de tudo uma profanação do verdadeiro budismo. Estranho como Évola pode simplesmente esquecer a cozinha vegetariana, se não vegana, adotada na China há muitos séculos atrás dentro dos mosteiros budistas. Enfim, o que Évola tenta fazer, assim como os autores supremacistas de internet que analisamos, é sempre deslocar o caráter central da compaixão pelos seres da perspectiva Budista.

 

Conclusão

O perigo desse discurso é que as ideias têm começo, mas não sabemos como terão fim. Talvez um vídeo no Youtube sobre a “importância” da violência no budismo possa parecer a uma primeira vista inocente, porém, tem diversas camadas. O pensamento de Évola, que influenciou estes autores supremacistas, está prenhe de “teorias” que foram largamente utilizadas no fascismo italiano e no nazismo alemão. O culto a hierarquia, a guerra, a virilidade, a superioridade natural de um povo sobre o outro e etc. trouxeram os frutos que há muito já conhecemos. No fim é sempre a morte que está em jogo e a possibilidade de fazer a guerra santa, em nome da civilização, da Verdade, da pureza racial e etc.

Esquece-se também que o budismo é uma obra contínua e não congelada em textos primitivos, muito expostos a interpolações e adulterações várias. Os grandes mestres do zen foram claríssimos sobre a igualdade das mulheres, como explicitou Eihei Dogen 7 séculos atrás, tema caro aos supremacistas também é a inferioridade feminina em termos espirituais, da mesma forma quanto a não violência e o pacifismo. São eles, os mestres, os verdadeiros intérpretes do budismo para os praticantes, e o ensinamento vivo dos mestres e sua adaptação aos países e tempos é o que importa aos budistas.

Novos movimentos políticos que têm aparecido no mundo bebem dessas mesmas fontes e dão interpretações diversas, Olavo de Carvalho, no Brasil, Alexander Duguin, na Rússia, e Steve Banon, nos EUA, são exemplos do poder das idéias e de como elas podem se espalhar e tomar forma política concreta. O que pensar sobre a postura de alguma dessas figuras na Pandemia ou na guerra Russia x Ucrânia? O que pensar do recente ataque a uma escola brasileira por um adolecente usando a suástica? Se nos dermos ao trabalho de aprofundar nas idéias de Évola, e com um pouco de sensibilidade e repertório, perceberemos as “beiras de abismo” que essas idéias nos levam a arriscar.

Por fim recordo a mim mesmo, e a quem por ventura possa ler esse texto: a compaixão é o centro do Budismo Zen, esvaziar-se de si mesmo em benefício de todos os seres é o nosso norte. E sim, temos o direito de nos defender e nos proteger, porém tendo em mente que a paz e a compaixão são o centro, auto-defesa e uso legítimo da violência são uma periferia em nossa prática. São lícitas, mas sem grandes floreios elitistas e saudosistas de um passado idealizado que é mítico. Lembro de um mestre sufi iraniano quando questionado como saber diferenciar um caminho espiritual autêntico de um falso. Ele respondeu: o autêntico é cheio de compaixão e amor, o falso não passa de um discurso intelectual.

Quando procuro a resposta sobre a questão de Ahimsa no budismo, busco recordar qual o ideal do Zen, e daí me vem uma história contada por Genshô Sensei:  certa vez um monge encontrou-se com um guerreiro que saqueava e destruía seu mosteiro no qual vivia. Frente a figura temível de um guerreiro com a espada desembainhada e ensanguentada, o monge permaneceu parado, imóvel em frente do homem O guerreiro então disse: “Não vê que estou pronto para te matar? ”, e o monge então respondeu “e você não vê que estou pronto para morrer?”. Essa história mostra que a perspectiva de nossa espiritualidade está além do direito de revidar ou não a uma agressão, o ideal Zen está para além do mundo dividido, parcial e condicionado. Concluo me perguntando: como saber qual o caminho seguir? E eu mesmo respondo: encontre um professor autêntico que o resto vem. Gasshô

 

Frederick Oliveira Moraes. Licenciado em História pela Universidade Estadual de Santa Cruz – Ilhéus-Ba. Mestrando no PPGH de História Atlântica e Diáspora Africana da UESC – Ilhéus-Ba. Professor de História da rede estadual de ensino da Bahia. Praticante na Daissen Ji. Escola Soto Zen.

 

Referências:

A Crise do Mundo Moderno. (René Guénon)

Além do Pico da Montanha: Ido Chega a Outra Margem. (Monge Genshô)

Autoridade Espiritual e Poder Temporal. (René Guénon)

El Mistério Hiperbóreo: escritos sobre los indo europeos. (Julius Évola)

Revolta Contra o Mundo Moderno. (Julius Évola)

 

 

 

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