Budismo em The Midnight Gospel

 

Em 2020 estreou na Netflix a série The Midnight Gospel (em tradução livre A Missa da Meia-Noite). É uma série de animação criada por Pendleton Ward e Duncan Trussell, que combina elementos de ficção científica com ensinamentos budistas. A série segue o personagem principal, Clancy Gilroy, um apresentador de um “spacecast” interdimensional, que entrevista seres de outros multiversos enquanto explora os ensinamentos budistas e a filosofia da vida e da morte. A cada episódio são apresentados temas como a impermanência, interdependência, a natureza ilusória da existência humana, entre outros. O enredo não só apresenta o tema sobre meditação como destaca a importância da prática para alcançar a iluminação.

A trama também dialoga sobre Deus e percorre outros temas como: uso de substâncias psicoativas, impacto cultural, magia, aceitação e perdão. Além disso, The Midnight Gospel também destaca a importância da conexão com os outros seres e a natureza, e como essa conexão pode ser usada para libertação dos paradigmas mentais. A série mostra como a compaixão e a bondade são fundamentais para a saúde mental e emocional, e como elas podem nos ajudar a alcançar a paz interior e a libertação do sofrimento.

A animação conta a história de Clancy, um personagem que viaja entre mundos através de um simulador de universos para entrevistar os seres de mundos fantásticos para seu “spacecast”, um programa de entrevistas. Logo no primeiro episódio, intitulado “Malditos Zumbis”, Clancy viaja a um planeta que vive um apocalipse zumbi e discute com o presidente de um país sobre as diversas possibilidades do uso de drogas, se são benéficas ou não, o que, por que, e quando uma substância é considerada uma droga e se seu uso na busca espiritual é legitimo.

Apesar da legitimidade da possível experiência mística não ser abordada com mais profundidade, podemos refletir sobre o tema usando o seriado ou declarações, como de nosso mestre Monge Genshô, que nos diz que as experiências adquiridas com alucinógenos não nos pertencem, não podemos acessá-las quando quisermos, sempre iremos depender do uso da droga para revivê-las, como a ciência nos comprova, e em doses cada vez maiores o cérebro vai se acostumando com a dosagem. Ao final e ao cabo, o risco de nos tornarmos apenas viciados é enorme.

A discussão sobre drogas lícitas e ilícitas caminha em meio ao ataque zumbi, onde os personagens parecem não se abalarem muito com a investidas dos mortos-vivos e continuam buscando a sobrevivência, mas, sobretudo, elevando o assunto a outros níveis, como os benefícios da meditação e o motivo pelo qual as pessoas buscam fugir da realidade por meios de psicotrópicos, alucinógenos, álcool, entre outras coisas; o motivo, objetivamente exposto pelo minúsculo presidente, que é entrevistado por Clancy, é que as pessoas não aceitam a realidade como ela é.

“Saúde é aceitar, perceber e lidar com a realidade como ela é.”

Drew Pinsky – Episódio Malditos Zumbis

Esse é uns dos conceitos fundamentais no Budismo, aceitar a realidade, aceitar que tudo surge, se eleva, se dissipa e desaparece, e quando nos apegamos às ilusões do nosso “eu”, e a toda realidade virtual criada por ele, nós sofremos e acabamos aprisionados em nosso próprio corpo por não conseguirmos abrir mão de coisas que não fazem parte da nossa verdadeira natureza.

Nesse episódio, por meio de uma “experiência pessoal”, Clancy também nos fala como a meditação o ajudou a controlar a raiva ao fazê-lo enxergar o sentimento, sua causa e sua impermanência, e como é importante incentivarmos uns aos outros a buscar a verdade plena, a verdade além dos nossos próprios sentimentos, ou seja, dos nossos “eus”.

O ritmo do plot pode até aparecer acelerado, já que em meio a conversa os personagens não param de andar e buscar refúgio, mas isso pode ser visto como mais uma metáfora do enredo, considerando que nossa vida também não para, o tempo não cessa, as águas do rio do Dharma continuam fluindo e se decidirmos entrar nessas águas e sermos levados pelas correntezas continuaremos em movimento também em nossa vida cotidiana. Nada cessa, tudo flui.

“Agora sei que não é preciso nem entrar nem sair”

Episódio Malditos Zumbis

Nos oito episódios da série Clancy vai nos apresentando, por meio de multiversos alternativos, as mais diversas formas de pensar o mundo e para um espectador mais atento, pode colocar em xeque nossa relação ou pontos de vista sobre assuntos espirituais e transcendentes. O quão difícil é aceitar a separação dos entes queridos ou nossa própria morte? Como enfrentar esse momento inevitável que está presente deste que nascemos? Outros habitantes do planeta são senscientes? Que direito temos de usufruir da vida de outros terráqueos aprisionando-os, explorando-os e matando-os? O que é a morte e qual o papel dela em nossa existência? Por que nos afastamos da morte e a tratamos como algo horrível a ser evitado?

“Não lute contra o ciclo natural da vida, a Morte alcança a todos. Apenas encare isso e VIVA. ”

Episódio Papo com a Morte

Apesar de abordar assuntos diversos, o tema central de Midnight Gospel parece ser os ciclos da vida e também a morte, e em pelo menos três episódios em especial esses assuntos são tratados com profundidade, se aproximando muito do Budismo. Por exemplo, no episódio “Rei das Colheres”, numa prisão um detento, chamado Bob, tenta de todas as formas escapar, mas em cada investida ele deixa um rastro de sangue e é morto, sempre retornando a sua condição anterior. Ligado a Bob, encontra-se um pássaro chamado Jason, que é o entrevistado de Clancy nesse episódio. Jason, o pássaro, compartilha suas reflexões sobre a morte e como ela pode ser encarada como uma oportunidade para a transformação e a evolução. Ele também fala sobre a natureza ilusória da existência, sobre meditação, impermanência e interdependência.

“No momento em que você aceitar as coisas como elas são, não precisa mais de esperança. Porque você percebe que você está bem onde está. A esperança te tortura.”

Jason, o pássaro. Episódio Rei das Colheres.

Desistir da esperança soa muito mal quando a gente não para pra pensar o quanto viver da esperança é um imenso defeito, é um erro. Abra a mão disso

Clancy. Episódio Rei das Colheres.

Por meio de uma intertextualidade muito potente, o roteiro se utiliza de alegorias de outros mitos e lendas, como o de Osíris, por exemplo, para falar sobre o Dharma. Clancy aterrissa nessa prisão onde se encontram diversos seres aprisionados aos seus infernos pessoais, digamos assim, estão presos aos seus sentimentos de raiva, rancor, estão cegos, assim como nós estamos presos ao samsara. Clancy tenta entrevistar sem sucesso o prisioneiro Bob, mas ele não pode falar pois engoliu a própria língua e de uma forma inconsciente repete a mesma violência para tentar escapar da prisão. Assim o nosso protagonista decide entrevistar Jason, o pássaro ligado ao Bob.

Durante a entrevista Clancy presencia as ações do prisioneiro para fugir, ele repete os mesmos comportamentos de raiva, agressão, egoísmo, que culminam em repetidas mortes. Entre a morte e o retorno ele encontra Osíris¹, que lhe arranca o coração e pesa em uma balança, tendo do outro lado uma pena. Se o coração for mais leve que a pena ele entra no paraíso, ou seja escapa da prisão, caso contrário, seu coração será devorado. Tendo o coração impuro e contaminado pelo ódio, o personagem é obrigado a enfrentar o inferno novamente, e ele retorna ao mesmo mundo de dor e sofrimento, aprisionado aos mesmos padrões, de volta a sua cela da prisão. Causa e efeito.

– Esse cara vai continuar morrendo assim? Pergunta Clancy.

– Vai, até ele entender. Diz Jason.

No entanto, a cada retorno Bob se mostra diferente ao mundo que o cerca, ele demonstra aprender com suas experiências e deixando de cometer os mesmos erros, em seu último retorno, ele se vê nas outras pessoas, que antes eram foco de sua violência, e não mais pratica os mesmos atos, e aos poucos ele finalmente fica em paz e entra no paraíso. Nesse enredo podemos enxergar uma analogia entre a prisão de Bob e nossas próprias prisões no samsara, como repetimos as mesmas ações esperando resultados diferentes e permanecemos no mesmo sofrimento sem entender o que estamos fazendo de errado, sem olharmos para nossa mente, sem buscarmos conhecê-la verdadeiramente e como estamos ligados a tudo. Nosso ego nos impede de sentir a interdependência de todas as coisas, porém, quando nos sentarmos diligentemente em nossas almofadas de meditação e aplicarmos em nossas ações cotidianas nossa mente do zazen podemos ter a oportunidade de romper com o ciclo de nascimento e morte. Quando fazemos zazen temos somente a parede a nossa frente e precisamos enfrentar quem somos, não temos como nos enganar nesse momento, não temos a quem enganar, na verdade, e com isso somos levados a enxergar, finalmente, a realidade como ela realmente é.

“Todo seu sonho de vida que você achava que era real era apenas um sonho até você acordar e perceber que era apenas um sonho, esse é o primeiro giro do Dharma”.

Jason, o pássaro. Episódio Rei das Colheres.

“Na meditação budista você não tenta ir a lugar a algum, só fica sentado consigo mesmo, você fica sentado com o sentimento do qual tentou fugir o dia inteiro, você vê esse sentimento até perceber o que sentimento muda de acordo com ele mesmo, e a natureza fundamental de tudo é a mudança, a impermanência e é o vazio. E todo o sonho da sua vida que pensava ser real era só um sonho até você acordar e dizer: ‘Sim, foi só um sonho. E agora estou acordado’”

Jason, o pássaro. Episódio Rei das Colheres.

Buscamos o tempo todo “óculos de realidade virtuais” para que validem nossos “personagens virtuais”, surgimos e assumimos essa identidade, que chamamos de “eu” e vida, parte da experiência é achar que se é somente parte da experiência e que se é um “eu”. Muitas vezes não queremos tirar nossos óculos, “nós nos apoiamos em matéria e tempo – não queremos a sensação de se ser quem se é, pois, buscamos evitar o sofrimento, ter um corpo machuca” (Jason, o pássaro – episódio Rei das Colheres). Queremos manter a ilusão que controlamos as coisas para não sofrermos, e causamos a nós mais sofrimento; mantemos a fantasia de que vivemos individualmente nossas experiências e que somos quem somos, que temos algo especial em nós que nos diferencia de todos os outros, mas não entendemos o porquê sofremos quando nossas expectativas são subvertidas pela vida, pela impermanência das coisas, nos agarramos aquilo que queremos como se tudo fosse perene e desconectado. Apesar disso, quando se tem a possibilidade de acordar para nossa verdadeira natureza vemos como nosso “eu” é pura ilusão e que nossas funções desse corpo e dessa vida são passageiras, ainda assim, isso não significa que nada existe, pelo contrário, continuamos existindo em tudo. Dessa forma preocupações diárias, os rancores guardados, os bens materiais acumulados são tão ilusórios, já que não somos essas coisas e sim todo o universo. “Liberdade é o que acontece quando você finalmente despe o seu disfarce de prisioneiro” – Midnight Gospel.

“O fato de tudo ser impermanente é uma causa de sofrimento. Velhice, enfermidade, doença e a Morte. Podemos viver num universo em que o tempo existe, e, portanto, tudo se desintegrará e desparecerá e o sofrimento disso é insuportável. Não é que nada é real, é que tudo é vazio de qualidade inerente

Jason, o pássaro. Episódio Rei das Colheres

A série “Midnight Gospel” é uma animação única que combina muitos elementos para explorar densas questões existenciais e filosóficas e como elas podem ser aplicadas à vida cotidiana. A cada episódio permeados com pitadas de non sense e um design psicodélico, o personagem principal se aprofunda em temas pertinentes à nossa vida diária, como o sofrimento, por exemplo, como a mente, sentimentos, liberdade, entre muitos outros. O espectador se deleita com enredos muito bem desenvolvidos e que nos levam a reflexões profundas, tudo isso embasado em conceitos budistas analisados em meio a situações inusitadas. Nos oito episódios dessa única temporada podemos nos maravilhar com a criatividade dos criadores na construção dos personagens e nos muitos multiversos apresentados, e acima de tudo, podemos ouvir sobre conceitos budistas aplicados à uma realidade lúdica.

 

Texto de:

Monge Chûdô. Monge na Daissen Ji. Escola Soto Zen, e

Débora Muccillo. Praticante na Daissen ji. Escola Soto Zen.

 

1 – Na mitologia egípcia é o Deus do julgamento, do além e da vegetação. Um dos mais importantes deuses egípcios.

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