Shikantaza: o grande mergulho no Vazio
“Perdemos o sentido da inatividade, a qual não representa uma incapacidade, uma recusa, uma simples ausência de atividade, mas uma capacidade em seu próprio direito.” – Byung-Chul Han, Vita contemplativa: Ou sobre a inatividade. Ed. Vozes, 2023.
Nossa sociedade é comandada pela lógica da eficiência. Cada minuto de nossas vidas deve ser produtivo ou precisa, ao menos, servir como um descanso ou uma preparação para que se volte a produzir. A inatividade é malvista, é desprezada, é uma peça que não se encaixa na máquina social contemporânea.
Nossa prática Zen, no entanto, não pode servir a nenhum objetivo, não pode ser instrumentalizada. Assim, shikantaza se mostra uma palavra inalcançável, escapando a toda tentativa de ser agarrada e instrumentalizada. Mas é preciso abandonar, também, a palavra, a ideia de shikantaza, e começar a praticar. O ser, o zafu e a parede. Nada mais. A prática é real, palpável e deve se dar agora, na vida que temos, não depois em um mundo ideal. Como explicou mestre Dōgen, não se pode falar em nirvana como algo fora da condição de vida e morte.
Para nos desarmar, disse o mestre Kodo Sawaki: “zazen não serve para nada” – essa é uma frase que desconcerta, que se choca contra os muros conceituais que construímos sem ao menos nos darmos conta e que, se compreendida, pode provocar rachaduras neles.
Sentar-se em silêncio e de olhos abertos diante de uma parede. Abdicar das vontades, dos pensamentos, dos planos, dos objetivos. Deixar ir toda e qualquer pergunta. Abdicar das buscas. Apenas a parede.
Desde o princípio, não somente a prática formal, o zazen, mas todo o Caminho ensinado por Buddha é sobre o desapego e o abandono. Sawaki Rōshi afirmou:
“Estudar o Budismo é estudar a perda. Shakyamuni Buddha é um bom exemplo. Ele deixou o palácio de seu pai, sua bela esposa, seu filho adorável e desistiu de suas roupas esplêndidas para se tornar um mendigo. Ele praticou a mendicância com os pés descalços e um manto surrado pelo resto de sua vida. Todos os buddhas e ancestrais sofrem perda intencionalmente. É um grande erro nos tornarmos monges budistas na esperança de sermos bem-sucedidos no mundo. Não importa o quê, nós, monges, somos mendigos da cabeça aos pés.”1
Abandonar lar, nome, sobrenome; raspar a cabeça; obedecer ao mestre… cada detalhe da vida de um monge o prepara para o abandono final. Na mesma direção, caminha o leigo comprometido com o Dharma que se esforça diariamente a abandonar a visão autocentrada do mundo. Quando, então, se dirigem para o zafu, tais praticantes não devem buscar nada, nem mesmo o despertar.
Começa a tocar o Caminho aquele que diligentemente, sem nada almejar, permite que pensamentos surjam e desapareçam com a naturalidade de alguém de cócoras às margens de um rio, diante do correr das águas. A busca sem busca. Tão refinado e sutil é o zazen transmitido por Tendō Nyojō a seu discípulo japonês. Não há o que se alcançar, pois a verdade é sobre deixar ir. Uma renúncia após a outra, o praticante abre espaço para a lucidez. A clareza precisa de espaço e silêncio.
Okumura Rōshi ensina que temos que deixar nossas visões limitadas e, então, lá estará anuttara samyak sambodhi, o completo despertar ou consciência suprema. Ou seja, esse não é um estado a ser alcançado, mas algo que se revela “antes ou além” do surgimento do pensamento ou da percepção de “eu tenho consciência”.2
Não há o que se observar, pois não há quem observe. Assim, no final das contas, o shikantaza é um convite ao mergulho no vazio onde mesmo o sujeito que se sentou no zafu precisa ser abandonado.
Não resta nada, apenas o todo…
Referências:
HAN, Byung-Chul. Vita contemplativa: Ou sobre a inatividade. Ed. Vozes, 2023.
OKUMURA, Shohaku in: Introduction to Bendōwa. UCHIYAMA, Kosho. Zazen Meditation Handbook: A translation of Eihei Dogen’s Bendowa. Tuttle Publishing, 2021.
SAWAKI, Kodo. The Zen Teaching of Homeless Kodo. Ed. Wisdom, 2014.
Texto por monge Muryo, DaissenJi, Soto Zen