Acolher amorosamente a todos os seres: a Daissen e a ODS
Ontem, logo depois do término do zazen, recebi para uma conversa uma pessoa que veio praticar conosco pela primeira vez. Um homem, já aproximando-se da meia idade, que cerca de 12 anos atrás tinha começado o seu caminho no zen budismo em uma sangha, agora lamentavelmente defunta, na cidade vizinha. Ele se tornou, à época, um leigo com preceitos, e o rakusu que ele trouxe consigo flagrava sua história.
Acontecia, porém, que já faziam alguns anos, desde o fim da comunidade a que pertencia, desde sua última visita a um centro de prática. Ele contou como as prioridades do trabalho, da família e demais preocupações cotidianas lhe fizeram perder o contato com a vontade de retornar a praticar em uma sangha. O mundo e suas demandas tinham se feito prementes, ainda mais após o intermédio do nascimento de sua primeira filha, e o fim da sua sangha natal tinha lhe deixado à deriva, incerto de para onde ir, mesmo se vez ou outra encontrasse o sentimento de necessidade por este retorno.
Acredito que todos nós, praticantes marcados pela passagem dos anos, já tivemos experiências como essa: Em algum momento, o Dharma, o Buddha e a Sangha perdem momentaneamente sua significância perante as intempéries de uma vida humana, marcada pelos atravessamentos de uma sociedade que, como nosso visitante expressou em sua opinião, muitas vezes vai contra a corrente de nosso caminho contemplativo e comunitário.
Eu acho que este movimento é natural, mais uma das facetas da impermanência. Meu estimado mestre, monge Kōmyō, tem em sua coletânea de textos, construída no decorrer de suas longas décadas de prática, ao que eu pude perceber, pelo menos quatro ensaios e poemas que falam sobre esta realidade e, mais importante ainda, sobre a sútil possibilidade de se encontrar pontos de retorno. Momentos de interseção onde o portal se abre e tomar refúgio se faz disponível novamente. Entendo que foram retornos que ele próprio precisou, uma vez e mais outra, fazer.
Ciente desta realidade, ele me ensinou, e hoje eu trago esse ensinamento para todas as esferas de minha vida, que nossa missão enquanto propiciadores da prática é, e sempre será, acolher aqueles que vêm e vão sem distinção, cobrança ou médio. Da sua forma gentil e acriançada, ele diz que devemos receber aquela pessoa que não vêm à comunidade há dez anos como se tivéssemos a recebido pela primeira vez: “Ah! Seja bem vinda!”. O Zen, ensina, não vai atrás de ninguém, mas quando as pessoas vêm à nós, as recebemos.
Esta orientação esconde, acredito, muito mais profundidade do que parece em uma primeira reflexão. Talvez fosse possível tornar este relato em uma demorada análise de suas bases, mas isto seria desnecessário. Só precisamos evocar a missão da Daissen, para fazê-la plena em sentido: “Acolher amorosamente a todos os seres que procuram o despertar refugiando-se no Buddha, no Dharma e na Sangha, para que eles encontrem a grande fonte da qual jorram a sabedoria e a compaixão de Buddha”,
Silenciosamente, acredito, nosso visitante mantinha essa vontade armazenada em si, esperando o momento em que lhe fosse possível um ponto de retorno. Ela veio, conta, por contribuição de sua esposa, que lhe avisou da existência de uma sangha zen em sua cidade. Nós, da Daissen Niterói, que pelo visto passamos despercebidos à ele durante os anos até que lhe foi possível nos conhecer. Assim o fez, participou de nossa prática e pôde compartilhar comigo o que eu trago de mais marcante em suas palavras durante nossa conversa.
Ele diz que, há cerca de 12 anos atrás, vivia uma vida de dificuldades, conflitos familiares e hábitos destrutivos. Se sentia perdido e solitário, até que encontrou a sangha. Nela, como diz, desde o primeiro dia, sentiu-se acolhido e pertencente de uma forma que não sentia em sua própria família. Lá ficou, fazendo todo fim de semana uma viagem de 40km à pé e de ônibus para conseguir praticar aos domingos em comunidade. Tomou refúgio e se viu transformado pela prática, sem saber, hoje, o que seria de si caso não a tivesse conhecido e criado intimidade com ela naquela época. A Sangha, o Dharma e o Buddha serviram como refúgio e lugar para elaborar o seu sofrimento e descobrir em si a abertura e a liberdade de agir de formas diferentes no seu mundo, de vê-lo de forma diferente. Agora, ele ansiava novamente por este espaço e esta possibilidade. Que bom ser possível estar lá para recebê-lo.
Sem dúvida, sua história reflete em muitas das outras de vários de nossos praticantes que também vieram à nós, conscientes de seu sofrimento e desejosos de caminhos para lidar com ele. Muitas são as diferentes demandas, e muitas também são as fantasias curativas que as pessoas encontram na prática, mesmo que se decepcionem com o tempo. A despeito disso, do teste do tempo e das quebras de expectativas irreais, algumas ficam, pois encontraram algo que vai além de si mesmos: o sentimento de comunidade e fraternidade, que é, em si só, um propiciador de transformação e cura.
Durante os anos enquanto coordenador, recebi pessoas de variados gêneros e das mais diferentes realidades sociais: estudantes curiosos de classe média alta, profissionais abastados, pessoas que vinham para a prática após seus serviços cansativos, pessoas em situação de vulnerabilidade social, pessoas de posicionamentos políticos diversos e conflitantes, jovens e idosos. Pessoas que talvez, lá fora, nunca se conheceriam ou conversariam, que talvez, lá, tivessem prejuízos entre si: tomando refúgio na sangha e habitando um mesmo espaço, desejosos pela prática e pelo ensinamento de Buddha.
Muitos deles tiraram dessa experiência algo suficiente para aquele momento de suas vidas e pararam de vir. Outros continuam. Alguns, já tiveram seus próprios pontos de retorno. No entanto, é seguro dizer que todos saíram em algum nível transformados, com sementes plantadas. Tive a oportunidade de ouvir algumas de suas histórias.
Lembro-me de uma senhora que veio nos visitar em uma época onde sua mãe, gravemente doente, dependia totalmente de seu cuidado. Apaixonou-se pela prática e dedicou-se a vir sem falta por alguns meses. Me deu a oportunidade de ouvir sua história e de compartilhar com a sangha sua companhia e, depois de um tempo, não veio mais. Recebi uma mensagem meses depois, relatando como era desejosa para voltar, mas agora que sua mãe estava melhor viu-se atravessada por novos projetos e decisões pessoais. Gosto de acreditar que a sangha serviu de apoio durante o tempo que precisou.
Um outro homem, hoje membro ativo de nossa Sangha, tomou refúgio na prática e nas palavras dos mestres para lidar com um atribulado e sofrido processo de divórcio. Ele, novo na cidade, não conhecia ninguém e tinha apenas os espaços, a prática e as pessoas da nossa comunidade para conviver com e partilhar suas dores. Passou por todo o processo tomando refúgio na sangha, nas palavras dos mestres e na prática da meditação.
Um rapaz negro de uma cidade vizinha praticou conosco algumas vezes. Percebi-o um pouco deslocado por conta da sua realidade social, diferente de muitos dos praticantes, que me lembrou do meu próprio sentimento de deslocamento quando comecei. Com o tempo, porém, deixou aparecer sua voz e a tomar refúgio. Tempos depois, relatou-me como a sangha foi importante para tirá-lo de um momento de depressão e insegurança, causado por uma grave violência policial que tinha sofrido. Ali, na sangha, ao contrário de lá fora, sentia-se seguro, aceito e pertencente.
Muitas outras vezes pude ver jovens tímidos, inseguros e com sentimentos de inadequação, assim como eu tive na época em que eu entrei pela primeira vez, florescerem no contexto de nosso pequeno grupo. Outras, pessoas já vividas, tiveram a oportunidade de renovar-se. Silenciosamente, a sangha tocou-os e ofereceu a eles, a despeito de quem sejam, de onde vem ou o que fazem, a oportunidade de se verem acolhidos e contemplados. A sangha não resolveu seus problemas sociais, emocionais ou psicológicos, apenas possibilitou-lhes a capacidade de estar em comunidade e de tomar refúgio na prática. Isto, no entanto, é profundamente poderoso.
Que eles continuem ou não, como o meu mestre sempre diz: podemos crer que uma semente de transformação e cura foi plantada. A prática, em sua realidade, é atemporal: e a possibilidade de tomar refúgio, enquanto a sangha continuar existindo através de nossos esforços, estará sempre disponível. Graças à sangha, sempre, sempre, é possível recomeçar novamente.
A sangha, a comunidade como objetivo de desenvolvimento sustentável
Estes são exemplos reais de uma vivência em uma comunidade budista, mas proporcionar isso está muito além de apenas uma consequência, é, e deve ser, um objetivo. No caso da Daissen, um objetivo definido e concreto de fornecer este acolhimento da melhor forma que podemos fazê-lo. Hoje, infelizmente, nossa sociedade é marcada pelo individualismo, que cada vez mais aliena as pessoas em suas vidas pessoais e as circunscreve em bolhas sociais onde, mesmo que em contato com muitas pessoas todos os dias nas grandes cidades, se sentem sozinhas e desamparadas de apoio, receosas e desconfiadas daqueles à sua volta.
Aflitos pelo pensamento dualista, que divide, segrega e rotula pessoas em posicionamentos idealistas e sentimentos e desejos obstinados que não propiciam verdadeiramente satisfação, é muito comum sentirmo-nos exaustos, ao mesmo tempo que procuramos incansavelmente maneiras de consumir o que acreditamos ser o bem estar e maneiras de afirmar em nós mesmos e no mundo o que acreditamos ser verdade. Atitudes que corroboram para o fim da paz, para a desigualdade social e as mazelas de um povo em sofrimento, atravessado por guerra, desigualdade e preconceitos.
A sangha budista historicamente se apresenta como uma alternativa pautada na não-violência, na compreensão da interdependência e na consciência marcada pela sabedoria da igualdade; todos nós, juntos, somos uma só comunidade, uma só sangha, percebamos isto ou não. Mesmo na sua época, Sidarta Gautama, o Buddha histórico, entendia isso, indo contra o sistema de castas e aceitando incondicionalmente pessoas em seu meio.
Por isso, alinhado aos princípios dos objetivos de desenvolvimento sustentável como definidos pelas Nações Unidas, é necessário que o budismo atue perante os objetivos de redução das desigualdades e na manutenção da paz, justiça e de instituições eficazes. Acolher amorosamente todos os seres é proporcionar isto.
A compaixão e a equanimidade é a verdadeira marca de uma postura budista, pautada na responsabilidade social de oferecer um acolhimento que, ao mesmo tempo que é consciente dos diferentes atravessamentos e dificuldades sociais, históricas e culturais de nosso povo, procura nadar “contra a corrente”, à favor da restauração do senso de comunidade e seus valores associados: conduzindo-se a partir de uma visão ampla, absoluta e integrativa da realidade onde não há diferenças, não há existência individual e isolada, enquanto transforma essa sabedoria em meios hábeis para ação engajada no mundo.
Esta é uma necessidade urgente para o encaminhar de nossa sociedade para caminhos mais salutares. Nossa missão como comunidade e instituição pode ser, no nosso próprio microcosmo, procurar aplicar os princípios do Dharma para concretizar esses objetivos da melhor forma que conseguimos e, quem sabe, servir de exemplo para a sociedade maior. Gota por gota, enchemos o oceano.
Texto por Matheus Anshin, DaissenJi, Sotozen.