O Panorama do Zen na América do Sul

Rev. Senpo Oshiro

Associação do Budismo Soto Zen da Argentina Nanzenji

 

Por que deixar seu lugar de prática e vagar por outros países? Um único passo em falso e você se afasta do caminho claramente disposto diante de você.  Fukanzazengi, Dogen Zenji

 

História

Em 1903, o venerável Taian Ueno chegou em Cerro Azul, na costa do Peru, em uma missão oficial da escola Soto. Ele viajou para apoiar os imigrantes japoneses e suas famílias que trabalhavam nos campos, nas minas e fazendas. Em 1907 com a ajuda das famílias japonesas ele fundou o Taiheizan Jionji, o templo mais antigo da América do Sul, e em 1908 ele estabeleceu a primeira escola para crianças imigrantes, a qual funciona como escola pública primária até os dias de hoje.

Em 2003 foi celebrado o 100º aniversário da chegada da Sotoshu na América do Sul. Naquele momento o templo Jionji permanecia inativo, sem um abade e a missão da Sotoshu da América do Sul teve que retomar sua presença lá. Em 2013, quando da celebração do 110º aniversário da Sotoshu, o templo já estava sob a direção de meu professor, o venerável Jisen Oshiro, que restaurou e normalizou os laços com a comunidade nikkei (famílias de origem japonesa).

Naquela ocasião, um grupo de monges e professores assinou a declaração de Lima. Nela nós concordamos em coordenar esforços para a disseminação e transmissão dos ensinamentos Zen e intercâmbio entre os grupos e sanghas do continente para o bem de toda a comunidade, sem distinção.

 

Encontros

O Encontro Zen Latino-Americano foi o resultado dessa iniciativa. Ele foi organizado por um grupo independente de sanghas, templos e associações de praticantes zen abertos a todas as tradições, linhagens, países, religiões, grupos leigos ou monásticos. Entre eles, a Missão Sotoshu para a América do Sul. Minha experiência como um missionário (Kokusai Fukyoshi) da Escola Soto e tendo dirigido a EZLA todos esses anos, permitiu-me encontrar e praticar com pessoas de todo o continente (leigos e religiosos; budistas e não-budistas) de todas as idades, classes sociais, pesquisadores, músicos, líderes de pessoas nativas, entre outros.

 

Budistas na América do Sul?

Esse continente é habitado por 424 milhões de pessoas, 90% são de origem cristã e menos que 1% praticam ou denominam-se budistas. Curiosamente, nós estamos nas antípodas do Japão e da Ásia com quem a barreira cultural é ainda maior. Os templos budistas estabelecidos na América do Sul ao longo do século 20 foram em sua maioria construídos e mantidos por imigrantes, sejam coreanos, chineses, laosianos ou japoneses, para a realização de cerimônias memoriais e a adoração de seus ancestrais.

A vasta maioria segue as tradições tibetanas, segundo a tradição Mahayana Zen, que inclui o Chan da comunidade chinesa, o Seon coreano e o Zen japonês (Soto e Rinzai).

Dentro do Zen, a escola Sotoshu é a mais antiga e aquela com a maior presença institucional no continente. No entanto, há muitos grupos e sanghas que praticam shikantaza, como transmitido por Dogen Zenji, que não são afiliadas à Escola Soto tais como dojos de artes marciais, estabelecimentos de saúde, educacionais e terapêuticos, congregações cristãs ou de religiões não-budistas, sanghas relacionadas ao reverendo Deshimaru, organizações Zen independentes, e encontros de pessoas autodidatas que aprendem por livros e vídeos.

Eu gostaria de descrever o perfil do público relacionado à Sotozen na América do Sul. De forma simplificada e genericamente, dois grandes grupos podem ser observados:

  1. Famílias Nikkei (de origem japonesa e tradição budista). Frequentam templos para cerimônias memoriais e atividades sociais. Eles apoiam os templos financeiramente, mas em geral não praticam zazen.
  2. Praticantes leigos (de origem não-budista e não-japonesa). Eles participam zazen em retiros e outras atividades. De uma forma geral, eles frequentam individualmente, sem suas famílias, e em alguns casos eles colaboram com dinheiro ou desempenham tarefas voluntárias. Eles tem motivações intelectuais, de saúde ou outras de ordem pessoal. A vasta maioria dos dojos ou centros Zen opera em lares particulares, academias ou locais gerenciados por praticantes em grupos ou individuais.


Panorama

Minha experiência pessoal realizando cerimônias funerais na Argentina e no Peru é de que o grupo A está diminuindo, à medida quer os avós e idosos falecem, e as novas gerações não falam japonês, não conhecem as tradições, e não demonstram interesse na religião institucional. Muito frequentemente, mais famílias jovens vem até nós para saber como podem se livrar do butsudan (altar familiar). Ao contrário, no grupo B nós observamos um aumento gradual e sustentado dos Centros Zen e dojos formais ou ocasionais.

Mais pessoas escolhem tomar os votos como leigos ou noviços, e nós podemos ver a ascensão de uma terceira geração de monges na América do Sul, onde quase a metade dos templos Sotoshu são sustentados graças à dedicação dos monges locais, o apoio dos praticantes leigos, doações, cursos, retiros, eventos, vendas de livros e acessórios, entre outras atividades.

Presença

O Encontro Zen Latino-Americano manteve e reforçou o interesse do Grupo B por oito anos consecutivos, mesmo em tempos de pandemia. Tudo isso mesmo sendo organizado por grupos independentes de países e culturas diferentes, com voluntários e recursos limitados. Nós descobrimos que a maioria dos praticantes Zen não conhece sobre a existência ou a operação e organização da Sotoshu, ou eles a consideram como algo pertencente aos monges japoneses para as famílias japonesas. Outros não veem necessidade ou conveniência em se aproximarem ou se familiarizarem com a Sotozen e seus ensinamentos, ou ainda eles rejeitam a liturgia ou qualquer coisa ligada à religião.

Por essa razão, a presença da Sotoshu foi fundamental nos encontros recentes, nos quais o público geral e as outras sanghas, particularmente, podem ver e experienciar as formas e a amplitude de nossa escola, sem a necessidade de evangelizar ou impor dogmas ou doutrinas. Isso também abre um espaço de intercâmbio e troca entre professores Zen de várias linhagens e tradições. O diálogo com líderes de outras culturas e religiões, da universidade ou mundo artístico, oficiais de governos ou ONGs, nos dão a oportunidade para expandir nossos laços com o restante da sociedade. Uma presença que nos conecta com uma realidade na qual nós estamos imersos e nos mostra novos cenários.

 

Reflexões

Se uma analogia grosseira for permitida, parafraseando o papa Francisco, o desafio é como transcender o papel de uma “organização piedosa” para serviços funerais e memoriais, no qual o templo é somente para assuntos dos mortos, e pelo contrário, superar o estereótipo de “Clube de Meditação Zen”, quando apenas as horas sentando em uma almofada e polindo o espelho de Nangaku contam. Seguindo o exemplo de meu professor, em ambas as cerimônias, para famílias e no zazen para iniciantes, em nossas sanghas nós tentamos dar a todos a oportunidade de cultivar a prática na vida diária. O o-cha (chá) que é oferecido aos ancestrais no butsudan é o mesmo que é oferecido ao Bodhisattva Manjushri no dojô.

 

Monastério

“A vida monástica é chamada de prática de 24 horas ou gyoji. Isso significa praticar seguindo o caminho dos Buddhas e ancestrais em meditação, trabalho, encontro com outros e cerimônias.”

A vida mundana que nos condiciona no trabalho, estudo, família e em múltiplas ocupações não nos permite desenvolver completamente essa prática. É a esfera monástica que é naturalmente orientada e organizada para isso.

“Por que deixar o seu local de prática e vagar por outros países?”

Noviços estrangeiros indo ao Senmon Sodo (monastérios de treinamento), nós deixaremos essa controvérsia para um outro artigo. Mas também é verdade que tem sido cada vez mais difícil enviar uma outra geração de monges sul-americanos ao Japão para treinar por meses ou anos, devido ao custo, tempo e as barreiras culturais.

 

Comunidade

“Um único passo em falso e você se afasta do caminho claramente disposto diante de você.”

Eu considero necessário o cultivo de uma comunidade monástica, adaptada à nossa realidade de forma paciente e inteligente, que possa formar adequadamente monges e monjas. É necessário que haja templos, monastérios e a presença essencial da Grande Sangha da Sotozen na América Latina que possam apoiar e reunir professores e discípulos, para o seu treinamento e prática, que tenham o apoio de pessoas leigas e simpatizantes. Para que possamos não dar um único passo em falso, é necessário um time de mestres, instrutores e professores qualificados, com acreditação monástica e acadêmica para planejar, adaptar ou manter, ensinar, supervisionar e dirigir as atividades da comunidade.

 

Missão

Até agora, a única instituição com a história, equipe de pessoas, plano de treinamento, capacidade administrativa, escopo e recursos para isso é a Sotozen, por meio de sua Missão na América do Sul. Mas o seu modelo segue a realidade e necessidades de uma civilização particular. Como sul-americanos, nós não podemos esperar que nossas soluções sejam apresentadas por outros países. Embora seja necessário confiar nas raízes, tais iniciativas somente darão frutos se os monges que nascerem e morrerem nessa terra assumirem tal compromisso.

Mas como?

Há um extenso debate sobre esse assunto na Europa e nas Américas com múltiplos aspectos e argumentos. Alguns de nós tentam cultivar a Grande Sangha por meio dos encontros. Um pequeno grande passo nessa direção é a publicação de manuais de prática em um monastério Zen (Sodo no Gyoji) em português (já em 2011 ele foi publicado em inglês), e em breve uma edição em espanhol baseado nos manuais Zuioji Senmon Sodo, com textos por Tsugen Narasaki Roshi.

Essa última edição é possível graças à colaboração do Monastério Zuioiji no Japão com o trabalho e as doações de voluntários da Colômbia e do Peru. Esse livro será apresentado durante a celebração do aniversário de 120 anos da Sotoshu na América do Sul no Templo Jionji no Peru em 2023. O propósito não é transplantar um ritualismo, mas o de preservar a mente do despertar.

É necessário que mais monges na América do Sul cultivem o exemplo de Dogen Zenji, transmitindo o Dharma verdadeiro e Keizan Zenji, trazendo-o mais para perto e o espalhando para todos os públicos. E assim, gerar as condições para praticar em harmonia com o Dharma.

Há muito mais por vir depois de quase 120 anos de história da Sotoshu na América do Sul. Se nós chegamos a estas linhas, talvez possamos fazer uma contribuição a este respeito. Possa o Dharma permear e beneficiar todos os seres.

 

Texto de autoria do reverendo Senpo Oshiro, extraído de DHARMA EYE, News on Soto Zen Buddhism: Teachings and Practice, Número 49, Março de 2022, páginas 4-7, disponível online em https://www.sotozen.com/eng/dharma/pdf/49e.pdf

Tradução por Marcus Vinícius Oliveira da Costa, praticante da Daissen-Ji na Sangha de São Paulo, SP.

 

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