Haicai: Poesia como prática budista?

 

O haicai (ou haiku) é um gênero poético de origem japonesa. Trata-se de um poema composto por apenas três versos, sendo normalmente o intermediário o mais longo, adotando-se a métrica de 5, 7 e 5 sílabas poéticas. O haicai, tradicionalmente, tem a natureza como temática principal, com ênfase na passagem das estações do ano.

Esta forma literária tomou sua configuração atual e teve seu auge no século XVII com o grande poeta japonês Matsuo Bashô (1644-1694). Ainda hoje, o haicai tem grande popularidade no Japão. No ocidente, os primeiros contatos com o haicai se dão com a abertura do Japão ao resto do mundo em meados do século XIX, quando a Europa irá tomar contato com as diversas formas de arte desse país.

No Brasil, o haicai foi introduzido na primeira metade do século XX, na obra de Guilherme de Almeida (1890-1969), nas décadas de 1930 e 1940 (FRANCHETTI, 2008). Um pouco mais tarde, o poeta concretista Haroldo de Campos traduz para o português alguns trabalhos de Bashô. A partir das décadas de 1960 e 1970, o haicai começa a se popularizar, acompanhando a onda da contracultura e do Zen, com destaque para o poeta paranaense Paulo Leminski (1944-1989), que produz um haicai de caráter mais experimentalista e sem adotar estética oriental. O conhecido cartunista, escritor e jornalista Millôr Fernandes (1923-2012) adota o haicai em sua obra e o introduz ao grande público, também sem seguir as formalidades estéticas e temáticas do padrão japonês, produzindo um haikai irreverente e bem abrasileirado.  Atualmente, podemos citar como nome de destaque do haicai na poesia brasileira a poeta Alice Ruiz. Vale também destacar o haicaista nipo brasileiro Masuda Goga (1911-2008), grande estudioso e incentivador do haicai no Brasil.

A temática e a estética do haicai, principalmente a partir de Bashô, se aproximam muito dos princípios budistas, sobretudo da tradição Zen. O haicai deve prezar pela simplicidade, espontaneidade e concisão. O poema deve ser como uma fotografia instantânea. Sem voltar ao passado, nem projetar o futuro, o haicai mostra o momento presente, da forma mais concisa, limpa e direta, sem artifícios linguísticos ou floreios. Também não se emite juízo de valor ou se discrimina o que se observa, as coisas são mostradas assim como são. O haicai “não é síntese, no sentido de dizer o máximo com o mínimo de palavras. É antes a arte de, com o mínimo, dizer o suficiente” (FRANCHETTI e DOI, 2012, p. 53).

No haicai, assim como no Zen, se valoriza a ¨mente de principiante¨ e não se dá tanta importância à erudição. Conforme Franchetti e Doi (2012, p. 27) Bashô “deliciava-se com os versos dos novatos” e Kyorai[1] considerava que “um camponês iletrado ou uma criança poderiam eventualmente compor um bom poema à maneira de Bashô, o que era impossível para os letrados de outras escolas”.

Percebe-se que não é sem motivo que, embora o haicai não tenha se originado nos mosteiros budistas, é frequentemente associado ao Zen. Na verdade, é comum entre os mestres Zen a composição de haicais. O próprio mestre Dogen[2] era exímio poeta. Assim como o zazen, o haicai, à primeira vista, pode parecer banal, mas é um engano: requer concentração, atenção e mente aberta.

Alguns haicais de Bashô[3]:

O velho tanque –

Uma rã mergulha,

Barulho de água.[4]

 

Já é primavera:

Uma colina sem nome

Sob a névoa da manhã.[5]

 

Um corvo pousado

Num ramo seco –

Entardecer de outono[6]

 

O jarro quebra –

Ah, o despertar

Do gelo da noite![7]

 

Texto por Roberto Braga. Praticante na Daissen Ji. Escola Soto Zen.

 

Bibliografia:

FRACHETTI, Paulo e DOI, Elza T. Haikai: Antologia e história. Campinas. Editora da Unicamp, 2012.

FRANCHETTI, Paulo. O haicai no Brasil. Revista Alea. vol. 10, número 2, julho-dezembro de 2008, p. 256-269.

MASUDA GOGA, H. O Haicai no Brasil: História e desenvolvimento. Disponível em: https://www.kakinet.com/caqui/brasil.htm

SUZUKI, Shunrio. Mente Zen, mente de principiante. São Paulo: Palas Athena, 1994.

Fonte da imagem: Utagawa Hiroshige, https://ukiyo-e.org/image/kruml/landscapes173

 

[1] Poeta japonês, discípulo de Bashô

[2] Fundador da escola Soto Zen no século XIII.

[3]  Extraídos de: Haikai antologia e história, de Paulo Frachetti e Elza Taeko Doi. Editora da Unicamp, 2012. Observe-se que na tradução pode-se perder a métrica original do poema e que na métrica japonesa observam-se regras diferentes da métrica ocidental.

[4] No original: furu-ike ya / kawazu tobimoku / mizu no oto.

[5] No original: haru nare ya / na mo naki yama no / asagasumi.

[6] No original: kare-eda ni / karasu no tamarikeri / aki no kure.

[7] No original: kame waruru / yoro no kôri no / nezame kana

 

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