Entrevista com Lama Rinchen – Monge da Escola Sakya – Tema Meditação

Meditação: para reconhecer a natureza da mente

 

Nesta edição, tivemos o prazer de realizar uma entrevista com Lama Rinchen, monge da Escola Sakya, do Budismo Tibetano. O Lama contou-nos um pouco sobre sua trajetória, a história da Escola Sakya. Falou-nos, inspiradamente, sobre Budismo, Buda e o Dharma. Ensinou-nos sobre meditação, e os tipos de meditação, dentro de sua tradição, sobre a importância dos retiros e, generosamente, finalizou a entrevista fornecendo orientações para àqueles que anseiam seguir o Budismo por meio da Escola Sakya.

Lama Rinchen ensina que, apesar das particularidades de cada escola budista, somos todos budistas e seguimos os ensinamentos de Shakyamuni Buda.

Angyô san: Para aqueles que não o conhecem, poderia se apresentar, contar um pouco sobre sua trajetória, como iniciou no Budismo e como se tornou monge? Caso o senhor seja monge, porque sabemos que muitos Lamas são leigos, no Budismo Tibetano.

Lama Rinchen:

Meu nome civil é Carlos Henrique. Meu nome monástico como Bhikshu, um monge plenamente ordenado, é Lama Rinchen. Na verdade, é Bhikshu Rinchen Khyenrab Thupten Nyma. Este é meu nome de ordenação.

Vir a ser um Lama é um processo de acompanhar e estar sob a tutela de um professor por muito tempo. Fui ordenado monge em 2003, pelo meu Guru-raiz, S. E. 25⁰ Chogye Trichen Rinpoche, já falecido. No Budismo nós temos três níveis de ordenação: aspirante, noviço e plenamente ordenado. As três ordenações foram concedidas pelo mesmo preceptor e professor, 25º Chogye Trichen Rinpoche, que depois, em 2004, consagrou-me como Lama, ou seja, fui autorizado a ensinar o Dharma. Também fui consagrado por Sua Santidade 41º Sakya Trizin. Assim, tenho a autorização para ensinar o Dharma. Este é o significado da palavra Lama. Como você muito bem colocou, no budismo tibetano nós temos Lamas laicos e Lamas monásticos. No meu caso, eu sou um Lama e um monge plenamente ordenado. 

Quanto à minha vida pré-monástica, eu me formei Engenheiro Agrônomo, fui empresário na área de agronegócios por muitos anos, principalmente na área de tecnologia e exportação de frutas do Brasil. No auge dessa carreira resgatei uma aspiração de infância, talvez, que era a de ser um monge. Eu estava morando nos Estados Unidos e fui procurar um centro budista em Seattle/Washington. Foi então que conheci S.S. Jigdal Dagchen Rinpoche (1929-2016), que na época era o líder supremo do palácio Sakya P’hüntok Phodrang, pois na linhagem Sakya existem dois tronos principais: o Sakya Dholma Phodrang e o Sakya P’hüntsok Phodrang, sendo este localizado em Seattle. Foi através de Sua Santidade Jigdal Dagchen que vim a conhecer o Budismo Tibetano. E ele foi quem organizou minha primeira viagem ao Nepal. Assim começou a minha história dentro do budismo. Mas eu estudo o budismo desde 1989. Depois de conhecer S.S. Jigdal Dagchen Rinpoche, fui ao Nepal e conheci meu primeiro professor Sua Eminênica Karma Thinley Rinpoche, detentor das tradições Kagyu Mahamudra, Sakya Lamdré e Chod do Budismo Tibetano, que ainda está vivo, totalmente lúcido e ativo. Através dele recebi o refúgio e os votos de bodisatva. Recentemente Sua Eminência comemorou 90 anos.

Aqui, no Brasil, tive a honra e o privilégio de ter sido  aluno de sua eminência S.E. Chagdud Tülku Rinpoche. Então, nos tempos em que eu estava no Brasil eu tinha aulas com S.E. Chagdud Tülku Rinpoche e quando eu estava no Nepal, com S.E. Karma Thinley Rinpoche, que depois de um tempo me apresentou à S.E. 25º Chogye Trichen Rinpoche, que passou a ser meu Guru-raiz até o parinirvana dele. Antes do parinirvana dele, bem próximo, ele me chamou e disse que a gente não se veria mais e aquele seria o último encontro, que já estava tudo organizado, que após seu parinirvana S.S. 41⁰ Sakya Trizin seria o meu professor-raiz. Ele é meu professor até hoje. Desde o falecimento de S.E. 25⁰ Chogye Trichen Rinpoche, faz uns dez anos, eu estou sob orientação direta de S.S. 41⁰ Sakya Trizin, que mora em Dehradun/Índia. 

Eu fiz minha formação monástica no Nepal, no mosteiro-raiz. Nós somos mosteiros irmãos, porque este mosteiro, aqui em Cabreúva, também foi fundado e consagrado pelo 25º Chogye Trichen Rinpoche. Após seu falecimento, dois herdeiros, dois sucessores treinados por ele desde pequenininhos – o 26º e o 27º Chogye Trichen Rinpoches, assumiram seu trono. Ambos já estiveram aqui – o 26º esteve em 2011, acompanhando S.S 41⁰ Sakya Trizin, e ficou conosco aqui no templo, e o 27º esteve conosco em dezembro de 2019 durante 15 dias. Nós também recebemos a visita de S.E. Jetsun Kushok, irmã mais velha de S.S. 41⁰ Sakya Trizin, que ficou conosco por um mês. Enfim, aqui está um pouco da minha história e do mosteiro.

Como virei monge? Acho que a gente não vira monge, não é? A gente tem essa vocação e em algum momento o karma floresce, todas as causas e condições florescem e acontece. No meu caso, como eu disse, foi no auge da minha vida profissional e eu não hesitei em nenhum momento em renunciar a tudo que eu tinha na época e seguir minha vida monástica como tem sido até hoje.

 

Angyô san: Poderia falar sobre a sua escola e quais são os tipos de meditações realizadas?

Lama Rinchen:

A tradição Sakya foi fundada pelos “Cinco Patriarcas de Sakya” (Sa-skya gong-ma Inga): Sachen Kunga Nyingpo (1092 – 1158), Lopon Sonam Tsemo (1142 – 1182), Jetsun Drakpa Gyaltsen (1147 – 1216), Choje Sakya Pandita (1182 – 1251) e Drogon Chogyal Pakpa (1235 – 1280).

Historicamente falando, o Budismo Tibetano surgiu com a introdução do budismo no Tibete, feita por Guru Rinpoche, conhecido também como Guru Padmasambhava, a convite do Rei Trisong Gyaltsen. O budismo se estabeleceu, graças à atividade iluminada de Guru Rinpoche, mas depois de um tempo, o budismo quase some do Tibete. Não vou entrar na história toda, porque vou ficar muito tempo aqui. Mas, enfim, existe a segunda introdução. Não é introdução, é o ressurgimento do budismo no Tibete, quando isso acontece, nós nomeamos historicamente o budismo antigo, que é a primeira introdução e depois o que acontece esse ressurgimento do budismo no Tibete.  Se não tivesse acontecido esse declínio e esse ressurgimento, talvez só conhecêssemos o Budismo Tibetano como budismo tibetano. Mas, como houve a nova introdução, Guru Padmasambhava permaneceu por muito tempo, teve seu auge e assim por diante. O budismo no Tibete depois teve o ressurgimento, então nos referimos à era de Rinpoche como Nyingma. Por que estou dizendo isso? Porque, quando o budismo surge novamente, a primeira escola estabelecida foi a Nyingma, isso foi previsto por Atisha. Depois surge a escola Sakya, a escola Kagyu e por último a escola Gelug.

O que é importante entender que, na escola Sakya, a gente tem muito claro que muito do que nós praticamos, por exemplo, é uma prática muito conhecida que é Vajrakilaya. Então, a prática de Vajrakilaya é uma prática que foi ensinada diretamente por Khon Rinpoche e era uma prática que se fazia em todos os centros, porque o primeiro mosteiro que se estabeleceu foi o Mosteiro Samye, pelo próprio Khon Rinpoche, e ele ensinou Vajrakilaya. Quando houve uma degeneração do budismo esta prática de Vajrakilaya foi preservada mesmo nos momentos mais difíceis, depois de 1959. E até hoje esta prática tem sido muito preservada dentro dos mosteiros Sakya e depois retornada a sua origem, que era a da tradição Nyingma. É muito bonito quando a gente olha através da história da prática de Vajrakilaya e a beleza dessa continuidade do budismo que foi estabelecido por Guru Rinpoche. 

Obviamente, que mais tarde veio a se estabelecer como conhecemos na configuração de hoje:  Nyingma, Sakya, Kagyu e Gelug. Essas são as quatro tradições do Budismo Tibetano e mais a tradição Bön, que era uma tradição já existente no Tibete. Depois, com a introdução do budismo por Padmasambhava os Bön o adotaram como prática que permanece até hoje.

Muitas das práticas são comuns a todas as escolas, mas como você disse muito bem, existem algumas particularidades entre as escolas. Primeiro, as escolas têm suas linhagens. Agora, a beleza, eu sempre digo aos meus alunos o seguinte: a maneira de vocês não construírem nenhuma visão sectária em suas práticas, procurem estudar a linhagem, mas a linhagem não só a partir da sua escola, porque daí vocês talvez fiquem com uma visão sectária, mas vejam a história do budismo desde o Buda Shakyamuni, pois assim nós vamos ver como todas as tradições surgiram através da disseminação do budismo a partir da Índia. Não só do Budismo Tibetano, mas de todas as escolas. Porque uma coisa que todos nós praticantes do Dharma, independentemente de sermos laicos ou monásticos, independente da escola que possamos estar, temos que entender que nós tivemos um Buda histórico em nossa era que é Buda Shakyamuni. Então, seja qual for o budismo, a escola que vocês pratiquem, todas elas têm sua raiz no Buda Shakyamuni.  E do Buda Shakyamuni aos seus discípulos, passar pela escola de budismo Zen e depois na minha escola do budismo tibetano. Se há somente um Buda, não deveria ter nenhuma visão sectária em nenhuma das escolas budistas.

Primeiro porque se nós recitamos “Possam todos os seres ter a felicidade e a causa da felicidade”, e, se ao recitar esta frase houver qualquer exclusão, nós não estamos praticando o Dharma. Então, se eu repito todos os dias:  

Possam todos os seres ter a felicidade e a causa da felicidade.

Possam todos os seres ser livres do sofrimento e das causas do sofrimento.

Possam todos os seres jamais se separar da suprema bênção, pois ali não há sofrimento. 

Possam todos os seres viver na mais pura e completa equanimidade, livres do apego e aversão aos próximos e distantes.” 

Estas são as quatro incomensuráveis. Qualquer um de nós que recite estas quatro linhas e ao recitá-las perceber algum pensamento de exclusão, não estará praticando o Dharma. Estaremos simplesmente mantendo os nossos padrões mentais e a nossa ignorância. Quando nós estudamos a linhagem, nós vemos a beleza do Dharma, nós vemos, acima de tudo, a compaixão do Buda Shakyamuni e sua incomensurável generosidade. É isso que nós somos, praticantes do Dharma, independentemente da escola a que nós estivermos ligados, nós devemos estudar a linhagem, nós devemos estudar a história do Buda. Aí, certamente, nós vamos desconstruir as visões equivocadas.

Na Escola Sakya, assim como deveria ser em qualquer outra escola, nós entendemos a natureza das linhagens, entendemos a beleza de cada uma delas e entendemos também que a linhagem de cada tradição vai dar ênfase a algum aspecto dos ensinamentos do Buda. Esta ênfase não é uma ênfase que exclui as demais, mas é uma ênfase que preserva os ensinamentos em sua raiz e em sua pureza. É dessa maneira que nós devemos entender as linhagens. Não existe um remédio que venha curar todas as doenças e Buda ensinou de diversas maneiras o Dharma, com a mais pura intenção de que fosse possível a todo e qualquer ser estudar, entender e praticar o Dharma. Então, que bom que existem diferentes linhagens, que ótimo que existam diferentes escolas, porque cada um de nós, devido aos nossos condicionantes, e ao nosso karma vai entender o Dharma por essas especificidades; e depois de entendê-lo, depois de adentrar o Dharma e estudá-lo vai entender a sua beleza como um todo e respeitar a todas as escolas.

A particularidade da Escola Sakya é que somos uma escola Tantrayana. Nós seguimos o Tantra de Hevajra, que foi transmitido diretamente a ele por Vajra Nairatmya, que é sua consorte. Este tantra chama-se Lamdre – o caminho e seu resultado. Este é o Tantra principal, é o cerne filosófico da Tradição Sakya do Budismo Tibetano. Então, vem de Vajra Nairatmya a Virupa e ele preserva o tantra na Escola Sakya que é conhecido como a palavra Lamdre, que significa “o caminho e seu resultado”. Por meio dessa estrutura filosófica do tantra, nós temos várias práticas principais como Hevajra e obviamente que também desde Kriya Yoga até a Anuttarayoga, em termos da evolução das yogas e em termos de deidades. Ou seja, a Kriya Yoga é a primeira, que é a yoga devocional e a mais elevada de todas é a Anuttarayoga, que é a yoga da mente sutil. E é isto que praticamos na Escola Sakya.

Em termos de meditação, essa pergunta é muito abrangente. Basicamente, todos nós estudamos meditação. Meditação enquanto um processo de familiarizar-se consigo mesmo, familiarizar-se com o ambiente da sua mente e reconhecer a natureza da mente. Então, é para isso que todos nós estudamos e praticamos meditação. Filosoficamente falando, pedagogicamente falando, nós temos três níveis: seria Shamatha, que é a meditação da calma mental e Vipassana, que é a meditação analítica, ou a meditação de insight cognitivo, e temos Shunyata, que é a meditação do vazio luminoso. Talvez Shunyata seja uma particularidade dentro do budismo tibetano. Talvez.

Dentro do budismo Zen vocês praticam o zazen. Uma vez eu perguntei a uma mestra do Zen, se o zazen inclui Shamatha e Vipassana e eu adorei a resposta dela: – o zazen inclui tudo, né? Então, que seja. Nós estudamos Shamatha, Vipassana e Shunyata. Shamatha como sendo a base, pois nada é possível se não se desenvolver, se não se estabelecer uma acuidade muito grande em Shamatha. Por quê? Porque Shamatha significa não somente calma mental, mas a habilidade de desenvolver a estabilidade unifocada da mente. Isto é, concentração. Tem uma particularidade do budismo tibetano, budismo Vajrayana e Tantrayana. É que nós sustentamos a visualização de uma deidade. Nós nos espelhamos diretamente na sabedoria de uma deidade. E esta deidade, dentro do conceito de vazio, não existe isso, mas enquanto o treino da mente, a deidade é a capacidade de olharmos diretamente para uma atividade iluminada, para uma atividade búdica em si. Ou seja, reconhecer a natureza da mente, treinando-a em determinadas qualidades, que é o que representa cada um dos diferentes budas ou deidades dentro do panteão do budismo tibetano. Mas se você não tiver a habilidade de relaxar e permanecer, sentar sua mente numa visão unifocada livre das distrações é muito difícil você visualizar uma deidade e sustentar as qualidades imanentes dessa deidade, o que é em si o antídoto dos nossos venenos mentais. Ou seja, aí vem as particularidades da prática. Mas por que eu estou dizendo isto? Simplesmente para dizer o quão importante é dentro do budismo tibetano que os praticantes venham realmente a se familiarizar com a prática de Shamatha.

Em seguida vem o entendimento e o treino da prática da meditação chamada Vipassana, porque, quando nos deparamos com algum tipo de dificuldade vamos acabar entendendo que essa dificuldade acontece somente no âmbito da nossa mente. Se a dificuldade fosse uma coisa comum a todos, todos veríamos as coisas da mesma maneira. Mas não acontece isto, por causa dos nossos condicionantes percebemos o fenômeno de maneira diferente.

Quando meditamos e estabelecemos a mente em Shamatha, nos tornamos habilitados a entrar no processo da análise, penetrar o objeto. Ou seja, o que chama visão penetrante, até que possamos ver o objeto, entender o objeto como livre de qualquer existência inerente. Este é o princípio da sabedoria, é o princípio do vazio. Tudo o que percebemos através do nosso corpo sensorial são projeções que se sustentam em nossa sexta consciência que é a imagem mental. E aí, ao fazer isso, não dialogamos mais com a realidade, mas nós dialogamos com essa imagem que nós fixamos. E assim, dado ao grande condicionante do ego, nós seguramos essa imagem da maneira que nós queremos. E ao fazer isso, nós reificamos um processo em nível ilusório, e é por isso que nós sofremos tanto. Então, para que eu possa vir a entender isto, eu tenho que aplicar sobre o objeto, seja qual for o que eu escolher para análise, aquilo que nós chamamos de Vipassana, a meditação analítica, e penetrar nesse objeto da análise até que possamos reconhecê-lo como vazio.

A última das técnicas de meditação que nós usamos é Shunyata, que após termos elaborado muito bem o treino da mente, nós descansamos a mente e reconhecemos o vazio luminoso dela, que é onde todas as coisas surgem e onde todas as coisas se dissolvem. E aí só experienciamos isto através, minimamente, de uma realização sobre o que é o vazio. Então, basicamente é isto, estas são as três meditações que nós fazemos. Eu acredito que estas três meditações são comuns a todas as escolas tibetanas. Eu não poderia falar sobre outras escolas, mas eu entendo que a maior parte das escolas, esse é o meu entendimento e eu posso estar totalmente equivocado, mas eu entendo que a maior parte das escolas praticam minimamente shamatha e vipassana. Podem até dar nomes diferentes como o zazen, mas eu entendo que o zazen pratica shamatha e vipassana por meio do ensinamento zazen.

 

Angyô san: Qual a importância da prática de meditação dentro da tradição do senhor?

Lama Rinchen: Outro dia, acho que vocês acham no YouTube, eu dei uma aula, uma palestra, que falava sobre a importância da meditação. Têm duas palestras, uma, “Afinal, o que é meditar?”, e a outra, “A importância das Religiões dentro da Sociedade Moderna”. Nessas duas palestras eu abranjo parte da totalidade disso que você me pergunta. Mas eu vou ser breve. Na minha ignorância, eu acredito que é impossível a qualquer praticante do Dharma, independente de qual for a escola, praticar o Dharma sem praticar meditação. A palavra Dharma, nós geralmente, entendemos a palavra como o legado dos ensinamentos do Buda. Mas a palavra Dharma também significa transformação. Por quê? Porque se olharmos os ensinamentos do Buda e qual o propósito que ele teve ao dar os ensinamentos como, por exemplo, o refúgio, quando tomamos refúgio o fazemos por livre e espontânea vontade. No budismo não existe conversão, no budismo não existe proselitismo, nada disso, e é por isso que não se dá Refúgio também a uma criança. Porque, a cerimônia do Refúgio, apesar de ser uma das mais simples dentre todas as cerimônias que existem dentro do Dharma, ela pode ser simples na sua elaboração, mas eu considero o refúgio uma das mais profundas iniciações dentro do budismo. Se nós não entendermos o refúgio, o Dharma não tem sentido nenhum. Porque a palavra “refúgio” dentre todas as palavras traduzidas talvez seja a que tenha, a que preserva muito bem o sentido, isto é, eu tomo refúgio, eu me refugio, eu me resguardo, eu me protejo, eu me abrigo. Onde? Na minha própria natureza, que não é diferente da natureza do próprio Buda. Até aí, é uma jornada para chegar a essa conclusão, mas o princípio é este. Se eu tomo refúgio no Buda, no Dharma e na Sangha, sendo Buda a natureza última de sabedoria e sendo a minha natureza não diferente da natureza de Buda, para que eu venha a reconhecer isto eu preciso investigar a mim mesmo. Isto é, eu me tornar familiarizado comigo e você se tornar familiarizado consigo.

O Budismo não é um conhecimento intelectual, é um conhecimento experiencial. Os ensinamentos do Buda na sua filosofia, na sua psicologia e nas práticas meditativas são métodos para que nós possamos adentrar nesse processo de familiarizar-se com nossa natureza para além de todos os condicionantes. Então, no meu entendimento, é impossível praticar o Dharma sem meditar. A não ser que você esteja estudando o Dharma em nível acadêmico, como eu estudo qualquer outra disciplina. Aí, é conhecimento intelectual apenas. Conhecimento intelectual, não é prática do Dharma. Eu estudo o Dharma para aprender o método e aplicá-lo sobre mim mesmo e não ficar apontando o dedo sobre outros. Então, o processo de familiarizar-se é o processo de meditação. Assim, não há como praticar o Dharma se você não tiver uma rotina de meditação diária. E quando eu chamo de meditação, não estou falando de Puja, de liturgia, eu estou falando de meditar na sua mais pura expressão. Sentar-se e meditar. Aplicar na sua meditação o método e ver o que surge. Lembrar que o próprio Buda dizia: “não acredite em nada do que eu digo, em respeito a mim ou porque sou Buda. Ouça os ensinamentos. Contemple. Medite. E o que for bom para você adote e o que não for… esqueça”. Entendo que a mensagem foi dada para todos nós desde o começo. Na Escola Sakya nós incentivamos muito a meditação. Muito! Tanto quando estamos em assembleia ou quando estamos em casa. A meditação é parte do caminho. Agora, uma coisa que Sua Santidade Sakya Trizin sempre fala é: “Não tome o Dharma como conhecimento intelectual. Tome o Dharma como um conhecimento transformador, senão você não está praticando o Dharma”. É simples assim.

Angyô san – O que o senhor acha do termo meditação traduzido para o português? Existe um outro termo que traduziria melhor o que é praticado na Escola Sakya?

Lama Rinchen – Não saberia dizer isso, talvez porque eu esteja tão acostumado com a palavra meditação, mas eu acho que independente da tradução e de falarmos meditação, eu acredito, fortemente que, independente do termo que usarmos para nomear uma prática, eu acho que o que é preciso entender é qual é o princípio dessa prática. Aliás, eu prefiro usar a palavra intenção. Quando eu me sento para meditar, qual é a minha intenção? Se eu tiver uma intenção clara, eu vou entender que meditar, independentemente da palavra que eu vá usar para nomear isso, eu vou entender que essa ação, tem a intenção de dar a mim mesmo o saber de mim. Meditar – eu gosto de a palavra familiarizar-se. Existem algumas traduções em tibetano para a palavra meditação que leva a este lugar – o saber de si. Experienciar a si mesmo. Experienciar a si mesmo, para nós, pode ser claramente falar em familiarizar-se. Eu vou usar um exemplo: quando alguém oferece a você a oportunidade de sentir raiva, o outro não é a sua raiva. A raiva é uma experiência sua e ela surge a partir do que alguma pessoa fala que move em você um sentimento de raiva. Mas o outro não é a sua raiva. Tanto é que, nós podemos estar juntos, duas pessoas juntas, e escutarmos a mesma coisa, mas eu desenvolver raiva e você ficar na boa. Então, eu já começo a entender que a raiva surge em mim por uma leitura equivocada gerada pelo meu condicionante, sobre o que alguém disse ou fez.

Em meditação eu não vou cultivar a raiva do outro. Como dizem “Os oito pensamentos que transformam a mente”, eu vou agradecer a ele, à pessoa, por ter oferecido a mim a oportunidade de saber que há dentro de mim esse potencial tão destrutivo como a raiva e o ódio. Se não fosse essa pessoa, eu não entraria em contato com isto. Então, isto é familiarizar-se, isso é meditar. Agora, quando você sentir a raiva em você, nesse momento você tem a curiosidade de perceber: “Olha o que a raiva faz comigo, com meu corpo, com a minha saúde, com a minha lucidez”. Aí você pode se perguntar: “É isto que eu quero para a minha vida?” Não, não é. Então, você vai querer saber: Por quê? Aí você começa a investigar. Isto é meditar. Entende? É um exemplo simples, mas muito eficaz. Quando eu entendo que o outro não é a minha raiva. O outro, a ação dele, promoveu raiva em mim. Em mim e mais ninguém. Se ele fosse a raiva, daria raiva em todo mundo. Então, esses são os processos que o Buda ensinou – como os nossos condicionantes nomeiam isso. Então, a meditação é, sem dúvida nenhuma…, por exemplo, se eu no caminho vajrayana, que é o caminho que nós praticamos, se visualizo a natureza de um buda como o Buda Chenrezig, o Buda da Compaixão, não adianta eu ficar olhando para a imagem de Chenrezig, olhando para a pintura dele, ou para o Dalai Lama, e não permitir que apareça a compaixão que há em mim, não é meditar. Se eu me permito ser compassivo e a minha compaixão é equânime, isto é meditar. Senão, vira falação e não ação. Por isso é que eu falei no começo: “O Dharma significa transformação”. Então, se eu percebo que há raiva em mim, o antídoto da raiva é a bondade amorosa e compassiva. Mas, para que eu venha a transformar a visão equivocada da raiva na visão correta da compaixão, eu preciso entender em mim o processo. Isto é meditar. Como a sua pergunta era em termos de terminologia, eu acredito que, se eu fosse usar outra palavra, seria “familiarizar-se”. Porque ela expressa verdadeiramente o que é meditar. Mas eu entendo a sua pergunta, porque realmente muitas pessoas acham que meditar é um processo passivo, as pessoas são apáticas, não é nada disso. Meditar é um processo extremamente ativo e muito difícil, porque você se depara com você mesmo. Que é a pessoa que você mais foge o tempo todo. Na verdade, é isso, nós nos abrigamos nas ilusões e fugimos de nós mesmos. Por isso que há tanto sofrimento no mundo.

 

Angyô san – Por isso, o um processo de meditação pode ser muitas vezes doloroso? Por vermos como realmente somos e não como imaginamos ser?

Lama Rinchen –Doloroso. Eu gostei de você ter falado isso. Muito bom você ter usado esta palavra. Porque o doloroso significa a intensidade do ego. O apego a si mesmo. Porque todos nós, fundamentalmente, como diz S.S. Dalai Lama: “A aspiração fundamental de todo e qualquer ser é ser feliz”. Então nós devíamos ser um Planeta… Sete bilhões de seres humanos querendo ser felizes. Deveríamos ser um sol de felicidade. Infelizmente, não é isso que experienciamos. Então, o sofrimento e a felicidade são coisas que a gente aprende na meditação. É entender que a experiência de felicidade e a experiência de sofrimento são produções da nossa própria mente. Porque na verdade não existe nem um nem outro, porque ambos são temporais. Porque eles dependem de causas e condições.

 

Angyô san – Por que praticar a meditação em retiros? Qual a sua perspectiva dessa prática na escola Sakya.? Qual a importância de se aprofundar e de sentar juntos?

Lama Rinchen – A palavra retiro, e a prática de retiro, é parte do caminho vajrayana. Todos nós somos convidados pelos nossos professores a fazer retiros. Existem retiros que podem ser de prática de meditação e existem os retiros de prática de aproximação da deidade. Aí são aqueles retiros que nós nos isolamos, permanecemos meses, anos, em retiro. A palavra retiro está correta, em termos de nomenclatura é retirar-se. O retirar-se é uma prática extensiva de meditar, por exemplo. Então, todos os dias quando eu me sento para meditar, eu me retiro. Me retiro do telefone, me retiro do convívio das pessoas. Eu me retiro para poder praticar, para poder reconhecer a natureza da minha mente em um estado contemplativo e levar esta experiência para além da meditação formal. Isso é importante. Não pode existir dois mundos. A minha mente em meditação e a minha mente com meus amigos. Não pode existir dois mundos. Essa é a dicotomia. Isso é o errado. O que você pratica em meditação, você deve levar para o seu dia a dia. Para o metrô, para o trabalho, para onde for:  fila do SUS, fila do Banco, fila dos Correios, à espera da vacina. Você deve levar esse estado de vacuidade para todos os lugares. Então, às vezes, meditar quinze minutos por dia, quinze, vinte minutos por dia, que a maior parte das pessoas fazem, não é o suficiente, dependendo da habilidade, da hora de meditar e da densidade emocional que a pessoa possa estar experienciando naquele momento da vida dela, como todos nós em nossa vida. Então, sim, é necessário retirar-se! Pode ser um retiro de um dia, pode ser um retiro de um final de semana, pode ser um retiro de quatro dias, um retiro de uma semana inteira. Não aconselho ninguém a entrar em retiro longo sem ter experienciado retiros curtos para que a pessoa vá acostumando-se com a postura, acostumando-se com o silêncio, acostumando-se a ficar quieta sem nenhum aparato ao seu redor. Então, os retiros são fundamentais, essenciais para aqueles que tomam o Dharma realmente como Caminho. Obviamente, que a maior parte das pessoas laicas tem responsabilidades outras como familiares, de trabalho e assim por diante. Nós, monges, temos uma estrutura diferente para isso, mas como um monge ocidental, eu trabalho para manter o mosteiro. Eu tenho trabalho, mas aprendi a criar um equilíbrio entre o meu trabalho e a minha prática. Desse modo, meu dia começa às três horas da manhã para que eu possa cumprir as minhas práticas. Se nós temos uma convicção, não é nenhum problema fazer isso. Mas, se eu não tenho convicção vou ficar brigando porque tenho que acordar cedo. Então, a escolha é de cada um. Agora, a importância do retiro é fundamental!

Aí também tem uma coisa que é importante. Qual a dificuldade que eu vejo em entrar em retiro? Se você fizer a listinha das dificuldades, você vai ver que todas são apegos. Raras são as dificuldades que realmente possam ser dificuldades. A maior parte delas é apego. Qual é o problema para acordar às 3:30 da manhã para meditar e não ter essa dificuldade para ficar na balada até às 5:00 da manhã? É uma pergunta simples! Perguntas bem simples. Então, qual a dificuldade de eu ficar das sete ou das nove da noite até à meia-noite em retiro? Retiro de desligar telefone e desligar tudo, sentar-se e meditar? Qual é o problema? “Ah, mas eu tenho isso, eu tenho academia, eu tenho balada, eu tenho happy hour, eu tenho uma namorada, eu tenho um namorado, eu tenho…” As coisas não devem ser excludentes. Você deve colocar prioridades. Mas não as tornar excludentes.

Então, o retiro é eu escolher um dia na minha agenda: “(a partir de) tal dia, de tal mês eu vou entrar em retiro”. E não precisa colocar no Facebook, no Instagram: “Ah, eu vou entrar em retiro, ah…” Muro das lamentações. Não! Também não é para fazer isso como ego: “olha, eu vou entrar em retiro”, aí todo mundo fica falando: “Olha, ele entrou em retiro! ” Na verdade, o retiro é uma coisa secreta. Você faz e fez. Pronto! No meu caso, não sei se vocês sabem, eu estou em retiro desde maio. Teve um momento fechado, totalmente fechado e teve o momento presente, que é para eu manter as minhas práticas com muita intensidade, e abrir janelas durante o dia para que eu possa atender as necessidades do mosteiro, cumprir a agenda das aulas do mosteiro. Então estas são as janelas. Por exemplo, abri uma janela para você agora, para dar esta entrevista, mas eu estou no meu quarto de retiro. Não estou fora dele. A câmera está virada para cá, então ela não está virada para ver o que é que tem na minha frente. O retiro é secreto. E mesmo dando a entrevista devo sustentar a mente no estado de meditação. Isso tudo é treino da mente. Isto é ciência hoje em dia. A gente pesquisa isto. Só que, para chegarmos a esse lugar, que não é só para os privilegiados, pois isto não existe, uma vez que isso é possível a todos e a cada um de nós, é preciso que venhamos, lucidamente, eleger as prioridades. O que é importante na sua vida? Na vida de cada um? E respeitarmos a escolha de cada um.

 

Angyô san: No Zen, por exemplo, durante os retiros, temos uma meditação que se chama Kinhin, que é uma meditação andando, que normalmente fazemos entre dois períodos de 40 minutos de zazen. Há alguma prática parecida de meditação andando na sua tradição ou é exclusivamente sentado?

Lama Rinchen: Acredito que todos praticantes de meditação têm conhecimento sobre a possibilidade da meditação andando. No Budismo Tibetano, ela não é uma coisa muito dita, ou muito praticada. Mas todos nós sabemos que existe a possibilidade da meditação caminhando. Particularmente, acho ela extremamente saudável. Por exemplo, no Budismo Tibetano, o que existe, e é muito forte, são as yogas em retiro. São as Yogas Tibetanas. São exercícios intensos do corpo que a gente faz no quarto de retiro. Algumas são bastante tradicionais, depende de cada praticante, conversar com seu preceptor e escolher qual yoga ele quer fazer. Como os retiros são longos, a partir de três meses já passa a ser necessário ter alguma prática física. No entanto, também, há uma prática no Budismo Tibetano de fazer prostrações de corpo inteiro, e são exercícios bastante fortes também fisicamente falando. Mesmo que a gente não tenha uma meditação caminhando, durante os retiros fechados, é impossível, porque você está numa sala de retiro, você pode fazer as prostrações e pode fazer as yogas. Tem yogas específicas, de respiração, de movimentação do corpo. Algumas são bastante intensas, na verdade. Para nós o meditar caminhando não é tão tradicional.  Mas sabemos que existe e temos a liberdade de praticarmos se quisermos. Mas não é possível dentro do retiro. No retiro você está dentro do seu quarto, então, meu quarto não é muito grande na verdade, mas as yogas, essas que a gente faz, exercícios de yoga mesmo, é possível fazer num quarto de retiro e elas estimulam bastante a respiração, os alongamentos, e assim por diante, cumprem o papel de manter a saúde do corpo.

Eu acho a yoga, a meditação de caminhar, muito necessária, muito fantástica no sentido de você desenvolver meditações sobre os cinco sentidos, de meditar sobre os cinco sentidos, ter a consciência do vento, dos aromas, da sensação do caminhar, do ritmo do tornozelo, do dedão, do tornozelo, eu acho isso fundamental em termos de “full awareness”, plena consciência do seu corpo, acho fundamental.

 

Angyô san: Lama, se algum leitor tiver interessado em iniciar na tradição do senhor, o que é preciso fazer, por onde começar, existem centros nas capitais, em cidades, ou seria no mosteiro?

Lama Rinchen: Primeiro, que todas as informações, sobre a história, sobre a biografia sobre os principais professores da nossa tradição estão no nosso site: www.sakyabrasil.org. Não temos centros fora daqui o único centro Sakya é aqui em Cabreúva, onde eu moro. As pessoas que tiverem interesse e quiserem vir nos conhecer são extremamente bem-vindas e é como eu disse: um passeio pelo nosso site, dá uma boa ideia do que a tradição é, dos seus fundadores, os principais professores, as biografias deles e lá tem a agenda do mês, tanto a agenda das liturgias, quanto a agenda dos ensinamentos, palestras de terças-feiras, os cursos de quinta-feira, e os workshops de final de semana. Hoje em dia, com a pandemia, a gente está trabalhando muito online, como estamos aqui nós dois, isso eu achei bastante benéfico, eu confesso, que relutei muito em fazer isso, talvez porque eu seja bastante velho já, e achei muito difícil começar, mas depois que eu aprendi passei a gostar muito e entendi como é benéfico, porque a gente pode oferecer às pessoas que estão muito distantes a oportunidade de ouvir o Dharma, e assim por diante. Para começar no Budismo Tibetano, é com Refúgio e a partir dali, começam os estudos tanto da parte filosófica, quanto os estudos de meditação e, posteriormente, as iniciações e as práticas de deidades. É assim que funciona no Budismo Tibetano, basicamente.

 

Entrevista realizada por Angyõ san. Praticante na Daissen Ji. Escola Soto Zen.

Idealização e roteiro por equipe da coluna Meditação.

 

 

 

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