Budismo e o divórcio: A preciosidade da impermanência e o início de um caminho só de início

 

É comum o relato de pessoas que buscaram pelo Budismo em um momento de extrema dor e sofrimento. Sem nenhuma intenção vitimadora ou pretenciosa, essa foi a minha condição e me proponho a narrar. Por volta dos meus 20 anos, quase 30, considerava minha vida como estando pronta. Embora muito jovem, somava um casamento de quase sete anos, independência financeira, reconhecimento profissional, uma casa com conforto e comodidade. Não tinha filhos, me julgava livre e, atendendo às exigências sociais, tinha ao meu lado um parceiro, que com o qual poderia legitimar minha felicidade. Era atleta marcial, detentora de uma saúde física, emocional e mental louváveis. Bom, pelo menos assim me considerava.

Circunstâncias como essas podem se tornar perigosas, pois em virtude das nossas facilidades, tendemos a ser imparciais e insensíveis diante de adversidades que não são nossas. Minha postura orgulhosa e arrogante me conferia, de maneira iludida, o direito de julgar, através dos meus olhos a dor do outro. Em outras palavras, eu costumava a “passar a régua”, oferecendo uma medida para e banalizar o sofrimento alheio. Até o momento em que a impermanência se manifesta e… Tudo muda.

Por não aceitarmos o fato de que tudo muda, sofremos. Essa máxima budista quando vivenciada na prática é bem mais profunda que a narrativa por si só. Da noite para o dia, fui diagnosticada com um distúrbio severo da glândula tireoide, hipotireoidismo Hashimoto, um quadro autoimune. Meus hormônios ultrapassavam em quase cinco vezes o valor máximo, limite já considerado extremo. O anticorpo que deteriorava minha glândula assumia um valor de quase cem vezes ao limite máximo esperado. De repente, crises de ansiedade, depressão, cansaço, desânimo se tornaram parceiros fiéis. Pela noite, sudorese noturna, taquicardia e insônia. Durante o dia, crises de pânico, letargia, confusão de espaço e tempo e um novo diagnóstico (aliás, considerado comum ao distúrbio da tireoide): loucura orgânica, consequência das alterações metabólicas em cadeia. E como se não bastasse, a suspeita de um câncer.

Mas a impermanência tem suas infinitas belezas. Isso é um fato. E a sua existência nos alimenta com o que chamamos, de maneira ingenuamente religiosa, de fé. Os médicos foram claros: após a estabilização do hormônio, isso passa. E de fato, passou. Mas não passou sozinho. Eu passei também e minha cura estava apenas começando. Tornei-me mais sensível à dor do outro, quase que como sendo minha. Não assumia filtros, pois na dor, nenhuma máscara se sustenta e, ao me despir dessa camada tão superficial e danosa, o espírito da compaixão me encheu os olhos. Tudo mudou e da maneira mais honesta de todas: mudou dentro de mim.

Olhei para o lado e enxerguei um casamento adoecido. Doeu e essa dor doeu mais forte que todas as outras vivenciadas até aqui. Percebi, por sinal, como é comum pessoas sofrerem por circunstâncias assim. No final das contas, todos nesse mundo dividimos um propósito único: a busca por amar e sermos amados. Porém, embriagados por nosso ego e nosso apego, estamos dispostos a tudo por isso. Mas só o tempo pôde me abrir os olhos. O tempo e o budismo, mas isso será falado mais adiante.

Voltando ao casamento. A lucidez do espírito compassivo, me transformou em um ser humano fortalecido e tal força me engrandeceu a honestidade. Resolvi me separar. Tomar essa decisão é trazer para si a responsabilidade do sofrimento de um outro alguém que, diferentemente de outros tempos, eu não conseguia banalizar. Em um divórcio, todos sofrem, todos perdem, não há vencedores. Em síntese, nesse momento, eu somava: uma saúde física debilitada, um diagnóstico de loucura orgânica, nódulos na tireoide com suspeita de câncer (cujo diagnóstico foi negativo) e um coração partido. Há uma citação do grande escritor João Guimarães Rosa que diz o seguinte: “Deus nos dá tudo, para que possamos perceber que podemos ser felizes. Depois nos tira tudo para percebermos que podemos ser felizes sem coisas”. Então para completar, abandonei meu emprego, comecei a trabalhar para mim mesma e, por fim, fui morar sozinha. Mas, e a dor? Ela ainda estava lá. E a cada dia, assim como minha determinação de seguir em frente, ela (a dor) também aumentava.

Desesperada, inquieta e ansiosa, busquei por respostas. Buscava pela consciência do que se passava. Apenas não entendia que, “buscar pela consciência” já é de certa forma, tê-la. E eu buscava por Deus. Resolvi então viajar e, ao longo das viagens, visitar o maior número possível de igrejas e catedrais e a cada uma que adentrava a dor apenas doía mais. Certo dia, resolvi visitar o Templo Zulai, o maior templo budista da América Latina, em São Paulo. O mais surpreendente nesse momento foi: diferentemente dos outros espaços que havia visitado, nos quais a dor potencializava, no templo budista a dor dilatou-se, transbordou, aumentou em proporções sem fim. O silêncio e a vastidão de lugares assim, apenas nos conduzem ainda mais para dentro de nós mesmos e nesse sentido, eu vi em mim o vazio e o abandono escancarados. Me lembro; chorei, chorei muito. Um choro incontido e visceral.

Ao sentir a proporção de uma dor tão engrandecida, minha natureza lógica me trouxe o simples raciocínio, expresso em uma fala interior, silenciosa: “Nesse mesmo lugar, onde minha dor assume uma proporção desmedida, seu lado oposto deve ser maravilhosamente feliz. Eu aceito vivenciar isso. Então me deem o que é meu!” Esse diálogo íntimo seria o início de um caminho que apenas se iniciaria dia após dia. Naquele instante eu não fazia ideia de onde minha decisão iria me levar. De repente, ao decidir mergulhar em um rio de incertezas, a correnteza agitada da minha mente e dos meus sentimentos parecia tomar um rumo mais caudaloso. Eu decidi ser budista. Ao voltar para casa, iniciei uma busca intensa por espaços de prática, encontrando a Escola Tibetana. Mantras, leituras estudos e mais estudos, meditação contemplativa me edificavam o dia a dia, durante longos cinco anos, até que um dia, encontrei o Zen.

O encontro com o Zen não me trouxe respostas prontas, não me prometeu nada, não angariava discursos. Tudo o que tinha: uma parede branca, olhos semicerrados, coluna reta e mãos em mudra cósmico*. Sentar. Nada mais. O silêncio gerado era o mesmo de quando visitei o templo Zulai, porém com uma grande diferença: era um silêncio estrondoso na paz que me trazia. O Zen não cessa as dores, não extermina pensamentos. O silêncio e a despretensão da prática, apenas nos permitem transcender as condições de uma mente comum e perceber, por meio de uma mente maior e mais refinada, tudo que se passa em nosso ego infantil e fragilizado, construído por nossas inseguranças, medos e apegos. O Zen é a expressão clara da mutação de todas as formas e vidas. Mergulhar no Zen é aceitar isso e absorver os olhos dessa clareza.

O Zen segundo alguns vários mestres sérios e admiráveis, não é religião, não é filosofia, não tem cunho quântico, psicanalítico ou científico. O Zen é uma experiência e por isso nos pede prática para ser comunicado. Sem perceber, o Zen me tornou um estilo de vida marcado pela compaixão, pela necessidade de diminuir minha autoimportância, pelo cuidado e atenção plena sobre minhas falas, ações e pensamentos, pelo compromisso de me tornar um ser humano melhor não para mim. É a consciência de um todo interdependente, na busca pelo amor.

Sim. Eu correspondia à transitoriedade e à mudança. E eu pude comprovar. Certo dia, movida pela natureza humana tendenciosa e curiosa, recebi como sugestão de amizade, em uma mídia social, o perfil do meu ex-companheiro. Claro que, acessei. E foi incrível! Naquele instante, acessando sua página, pude perceber o quanto de fato eu havia mudado. Certamente, meu ex-companheiro jamais se apaixonaria por mim hoje. E muito provavelmente, nem eu por ele. Nossas versões se tornaram tão distintas, que me fez lembrar a parábola do rio: “Um homem nunca passa duas vezes pelo mesmo rio. Porque o rio não será o mesmo e o homem também não será o mesmo”. Mas a pergunta é: foi criado outro rio? Foi criado outro homem? Ou apenas o rio e o homem seguiram seus fluxos?

Assim como o rio e o homem, percebi que nenhuma nova mulher foi gerada. Ela apenas fluiu na própria correnteza, na busca pela meditação silenciosa e pela própria liberdade, contando para isso, com o Zen. E isso significa assumir um caminho que só tem início e nada mais. O Zen, por meio da prática assídua nos mostra que é possível sermos felizes, à medida em que morremos em nós mesmos, nos transformando. O Zen nos mostra a liberdade, colocando-nos em contato com um mundo maravilhoso, no qual nos tornamos responsáveis diretos pelo mundo, ao passo que, assumimos para nós a responsabilidade maior de nos tornarmos felizes.

Apenas precisamos de alguém nesse mundo, para nascermos. Viver e morrer, seguimos sozinhos. Há ato de maior liberdade?

 

Para Maurício do Vale.

Por quase dez anos de experiências, tempo, vida partilhados.

No Dharma,

Gasshô.

 

Texto de Jule Amaral. Praticante na Daissen Ji. Escola Soto Zen.

 

 

 

 

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