A ideia de escrever este texto, por si só, já é um resultado das amizades resultantes das práticas virtuais, no caso, os amigos do Jornal Budismo Hoje, da coluna Variedades. Esta coluna, este jornal, que é formado por pessoas que veem no Caminho a imensa graça de encontrar atitudes, palavras e pensamentos guiados pela sabedoria de Buda, é também um grandioso meio hábil para a realização de amizades e manifestações de afeto no “ato da cena e nos seus bastidores”.
O Buda Shakyamuni Dizia: “Ter ótimos amigos e estar em boa companhia não é metade do Caminho, não é parte do Caminho, é o próprio Caminho”. (Shundo Aoyama – do livro “Para uma pessoa bonita”). Cabe aqui outra passagem do mestre Dogen, que também escreveu no Shôbôgenzô Zuimoki: “Mesmo os estudantes do Zen que não tenham muita disposição em buscar o Caminho, apenas por estarem próximos a bons praticantes, acabam por criar bons relacionamentos e enfim podem ver e ouvir como eles. Os bons amigos estão conosco, não importa quão sofrida e solitária seja a prática”.
Mas, pensando sobre amizade, o que é ser amigo? Quando criança, certamente tivemos nos nossos pais a primeira noção do que vem a ser um amigo: expressões de cuidado, carinho e companhia etc. Mas basta uma pequena contrariedade com relação às nossas expectativas para que esta noção sobre amizade seja questionada. Então crescemos, conhecemos outras crianças da nossa rua, do nosso bairro e da escola e começamos a transferir estas noções sobre amizade que antes atribuíamos aos nossos pais para estas outras pessoas, com elas passamos a brincar, fantasiar, fazemos tarefas escolares em equipes, vamos para festinhas de aniversários etc.
E nessa dinâmica seguimos as nossas amizades por toda vida. Por toda vida? Não, acho que não é bem assim!
A esta altura do campeonato, de nossas experiências, é natural que já tenhamos percebido as inumeráveis amizades que ficaram no passado e que na maioria das vezes não apresentaram motivos em si mesmas para cessarem, apenas foram realocadas por circunstâncias da própria vida, mas como diz o sensei Genshô: “É a vida quem nos vive”. Portanto, simultaneamente, outras amizades surgem à nossa frente e isso hoje em dia se torna cada vez mais fácil e rápido devido ao encurtamento de distâncias pelo advento da internet que alicerça amplamente a nossa rede social.
Na letra da música de Milton Nascimento intitulada Canção da América, se prestarmos bastante atenção, veremos que ele coloca os verbos no passado e que, portanto, parece fazer alusão não a alguém, mas ao que causava nele a sensação de ter e perder amigos. E embora sua intenção fosse a de “guardar debaixo de sete chaves este amigo”, ele acabava partindo, como diz este trecho da mesma canção: “Mas quem ficou, no pensamento voou, com seu canto que o outro lembrou. E quem voou, no pensamento ficou com a lembrança que o outro cantou”. “Pois seja o que vier, venha o que vier…”.
Quantas pessoas queridas chegaram, ficaram por determinado tempo em nossas vidas, mas que seguiram seus caminhos, e nós também configuramos essa mesma representação na vida delas! Por quê? Por que temos a impressão de que a amizade é um sujeito e não algo que transcende a figura humana? Por que sofremos com a “impressão” de ter perdido um amigo? Por que é tão difícil praticar o que diz o poeta Vinícius de Moraes no seu Soneto de Fidelidade: “Que não seja imortal, posto que é chama, mas que seja infinito enquanto dure”?
De uns tempos para cá, eu tenho achado que as amizades não são as pessoas. Na maioria das vezes não escolhemos nossos amigos pela aparência física, pois se fizermos o exercício de lembrarmos agora de todos os nossos amigos do passado e atuais veremos a grande variedade que apresentam na cor da pele, cabelos e olhos, na estatura física, no gênero etc.
Se as amizades não são as pessoas, o que são então? Nessa perspectiva particular, eu fico com a hipótese de que fazemos amizades é com os assuntos afins e não com as pessoas. Estas são veículos deles e que, por procurarem “as mesmas coisas”, acabam se encontrando.
Quando eu volto para as lembranças de minha infância e juventude, percebo que o que me mantinha ligado aos meus amigos eram interesses pelos mesmos assuntos, tais como: brinquedos, escola, diversões e paqueras. Hoje, vivendo a minha fase de adulto, os interesses são outros e bastante diferentes dos interesses dos amigos de outrora. Atualmente quem tece o fio que agrega o meu ciclo de amizade são aqueles que assim como eu procuram pelos ensinamentos de Buda com o objetivo de tornar-se uma pessoa melhor para si mesmo e para o mundo. São aqueles que procuram o Dharma de Buda para melhor compreender o que nos causa sofrimento e nos livrarmos dessas causas e poupar pelo menos os outros da nossa própria ignorância.
Nessa perspectiva, muito me ajuda a comunidade budista virtual. Não sou privilegiado geograficamente de morar próximo a regiões onde se abrigam as sanghas mais desenvolvidas, como Florianópolis, São Paulo e outras mais, porém sinto-me envolvido, respeitado e querido por todos. E quando posso participar de seshins presenciais, tenho a grande satisfação de conhecê-los pessoalmente e isso tem se intensificado à medida que o tempo vai passando, ao ponto de já ter sido hospedado uma vez na casa de uma praticante muito generosa, que abriu a sagrada intimidade de seu lar para um “distante” (como se, de fato, para o Zen, fosse possível haver distâncias).
Olhando sob esta perspectiva, vejo o quanto foi importante abrir mão quando sentia que as velhas amizades estavam pedindo espaço para seguir seus caminhos. Só assim construí causas e condições favoráveis para que novas amizades chegassem, desta vez conduzidas pelo Dharma de Buda. Como sou afortunado por tudo isso, pelo Caminho que se apresentou por meio dos caminhantes!
Porém, o que neste momento eu acho também relevante salientar é que agora posso perceber que dentro dessa nova realidade em que vivo, que mesmo com amigos de sangha e irmãos no Dharma, apesar de tudo isso, mesmo assim o fluxo permanece em movimento. Dentro da própria sangha, com todo respeito e bem querer, as afinidades e sintonias parecem girar de tempos em tempos, com alguns elas diminuem e passam para poder chegar a outros e brotar novamente. Para mim esse movimento é fantástico, pois posso perceber e aceitar com sabedoria essa impermanência também aqui dentro da sangha. Cada vez que surge uma nova afinidade ou amizade, não tenho mais aquela velha impressão de ter perdido a amizade anterior ou de ter passado, mas sim de amplitude.
“O mau cheiro da corda, o aroma do papel”
“Um dia, Shakyamuni Buda estava caminhando e encontrou um pedaço de corda caído. Ele se voltou para um discípulo e disse: “Pegue essa corda e diga-me que cheiro ela tem”. Ao que o discípulo respondeu: “Senhor Shakyamuni, tem um cheiro insuportável”. Mais adiante, Buda encontrou um pedaço de papel caído no caminho. Da mesma forma, ele pediu que o discípulo o pegasse e sentisse seu odor. Dessa vez ele disse; “Tem um aroma muito agradável”. Ao ouvir isso, Buda explicou mansamente: “A corda não era fétida desde o começo. Mas, como tocou algo malcheiroso, ganhou esse cheiro insuportável. No entanto, o papel não tinha um bom aroma desde o começo. Mas, como embrulhou algo perfumado, ganhou esse aroma agradável. Da mesma maneira, vocês também devem ter bons amigos. Um bom amigo é tudo na vida. É a maior fortuna que se pode ter”. (Shundo Aoyama Roshi – A coisa mais preciosa da vida. p. 52).
Eu venho do mundo virtual da Daissen e do @sobrebudismo. Sou muito grato aos seus idealizadores, pois a prática virtual teve o mesmo papel do barqueiro Bodhisatva na minha vida que, ao conduzir o seu barco me resgatou, me deu a oportunidade de ver a outra margem e de navegar, pois como dizia Fernando Pessoa: “Navegar é preciso, viver não é preciso”.
Texto de Fábio Chaves Brito. Praticante na Daissen Ji. Escola Soto Zen.