A prática invisível no Zen

No Zen, temos diferentes níveis de prática. Alguns são mais evidentes e superficiais, enquanto outros são tão sutis que se tornam invisíveis para os que olham de fora.

Existe a dimensão devocional, principalmente no Zen popular japonês, muito influenciado pelo xintoísmo, na qual pessoas fazem ofertas em troca de terem seus pedidos atendidos. Genshō Rōshi conta que em seus tempos de
treinamento monástico em Sōjiji-soin, na Península de Noto, por diversas vezes, precisou carregar as ofertas que seriam entregues em cerimônias diárias a uma divindade local protetora dos pescadores. Em um templo que
Kakuji e eu visitamos, havia uma estátua de madeira cujo rosto estava completamente desgastado. Um monge nosso amigo nos explicou que os leigos que visitavam o local esfregavam as mãos na estátua enquanto pediam
por curas espirituais para doenças físicas.

O Zen de Bodhidharma, Tendō Nyojō e Dōgen, no entanto, não tem qualquer coisa a ver com isso, mas convive com tais práticas, pois coexistem no mesmo ambiente geográfico e histórico no qual elas se dão. Quando se caminha por
um monastério japonês, transitamos por diferentes dimensões de prática. A mais visível talvez seja a devocional, com suas cerimônias, ofertas e participação popular. Já a mais sutil se dá de forma invisível, na mente do monge (ou praticante leigo). Entre uma e outra, há gradações de práticas com maiores ou menores pontos de contato.

Ainda visível e evidente é o que chamamos de forma. No Zen, cuidamos do corpo, de cada detalhe dos movimentos e posturas, para, com isso, trabalharmos a mente. A própria roupa dos monges é percebida como uma “máquina de treinamento”, pois com suas longas mangas, mantos e camadas que se sobrepõem, obriga seu portador a um cuidado ininterrupto ao se movimentar. Como se anda, se senta, se prostra, tudo é detalhadamente treinado pelos noviços até que consigam agir como se aquelas vestes fossem o prolongamento de seus corpos 1 .

As complexas cerimônias servem como meio hábil para que todos os monges estejam plenamente atentos e presentes, atuando em conjunto, como órgãos de um grande corpo. Para quem assiste de fora, aquela coreografia com sinos, incensos e prostrações pode aparentar puro perfeccionismo religioso. Mas tudo muda, uma vez que se entenda seu funcionamento como um mecanismo que por meio da forma trabalha as mentes dos monges.

Outra camada da prática Zen é o estudo do Dharma, tanto o autoestudo quanto, principalmente, o estudo dirigido por um mestre. Por meio dele, acessamos os exemplos e palavras dos ancestrais, dissolvemos dúvidas e guiamos nossas atitudes. É um pilar de sustentação do Caminho, mas é preciso atenção. Como adverte Genshō Rōshi:

“O Zen volta-se contra o excessivo escolasticismo, contra a lógica academicista de
discussões extensas sobre detalhes da doutrina que foram se tornando cada vez mais
sofisticadas nos primeiros mil anos de história do budismo. É como se no Zen
disséssemos que basta de discussão, pois o que importa é realmente a compreensão
além das palavras. Portanto, vamos nos sentar em zazen.”

1 Como nos explicou Ryoju Tahara em um treinamento para cerimônias no templo Daissenji,
em Florianópolis, em 2022.

Assim, chegamos à mais importante dimensão do Zen: a prática formal, o zazen. Diante da parede, nenhum pensamento acadêmico resiste. Ali, submetidas à crua realidade do zafu, a lógica e a sagacidade se deparam com
seus limites e precisam aceitar sua impotência. O silêncio do shikantaza expõe ao praticante cada uma de suas limitações, escancara inseguranças e desvela o quanto todos somos comuns, humanos, demasiadamente humanos. Na simplicidade aparente do se sentar está o maior dos portais, aquele que dá acesso à realidade última.

Mas não conseguimos nos sentar ininterruptamente, uma hora temos que nos levantar e cuidar de aspectos práticos de nossas vidas. E aí é que surge, potencialmente ao menos, a mais sutil e invisível das camadas de prática,
aquela que se dá na mente do praticante a cada pequeno ato de seu dia. Pelo período em que vive em um mosteiro de treinamento, o monge tem a oportunidade diária de escolher dar, ele mesmo, mais significado àquilo tudo o
que vivencia lá. Se não fizer isso, consciente e ativamente, corre o risco de voltar apenas sabendo como executar mais cerimônias.

“O sesshin é uma crise artificial”;, sempre nos lembra Genshō Rōshi. E o que senti é que o angō – período de treinamento – é uma crise artificial planejada para ser estrutural. Durante meses, dormir e comer menos do que o
necessário, viver sob pressão e obedecendo ordens da hora em que acorda até o momento que finalmente dorme, ter privacidade apenas quando tranca a porta do banheiro.

Assim sendo, ou o monge trabalha, invisível e internamente, para transformar aquele cotidiano em prática espiritual verdadeira, ou vai apenas “sobreviver”; ativando e fortalecendo, provavelmente, algumas das piores partes de sua
personalidade.

Mas é sim possível usar cada detalhe daquele cotidiano para aprender mais sobre si mesmo. Tudo é tão intenso e repetitivo, que acaba nos dando a oportunidade para nos tornarmos mais íntimos e conscientes dos nossos
padrões mentais. No mosteiro, podemos aprender a trabalhar nos vendo como menos importantes do que o grupo, a sangha. Temos chances diárias, também, de focarmos menos em nossas emoções e mais no que podemos
fazer para ajudar alguém que passe por um momento difícil (e lá sempre existem pessoas passando por dificuldades).

Grande parte das vezes, se seguirmos apenas os nossos impulsos iniciais, não reagiremos da melhor maneira, pois estaremos apenas realimentando nossos padrões mentais habituais. Para isso, voltamos à outra camada da prática que já mencionamos, o estudo. Nos casos de impasse, nos lembramos dos exemplos dos ancestrais, revisamos nossos votos e preceitos e transformamos em atitudes as palavras do nosso mestre. Renunciar ao que vemos como
“nossa” forma de agir para seguir o que apontam os ancestrais, o mestre, os preceitos e os votos é um meio hábil muito poderoso na Senda espiritual.

Quando ninguém está nos vendo, quando só nós mesmos sabemos o que pensamos e sentimos, aí então entramos no que estou chamando nesse texto de prática invisível. Isso vale mais do que todas as nossas atitudes sob os olhares de testemunhas, mais do que tudo o que falamos publicamente sobre nossa prática, mais do que toda nossa possível erudição.

Em uma antiga narrativa, um mestre instruía que quando estivéssemos sozinhos em casa, agíssemos como se estivéssemos diante da mais importante visita e quando estivéssemos recebendo a mais solene visita agíssemos como se estivéssemos sozinhos. Em outras palavras, é preciso agir sempre como se estivéssemos sob o olhar do nosso mestre, mas não só isso, é preciso pensar e sentir como se nossas ideias e sentimentos fossem se tornar públicos. De tal forma, usamos cada detalhe cotidiano para cuidar das nossas ações, das nossas falas, da nossa mente.

Texto de Monge Muryo 無量. Monge noviço na Daissenji. Escola Soto Zen.

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