Em 2015 atravessei um dos momentos mais sombrios da minha vida: a depressão. Era como se o mundo tivesse perdido suas cores e formas, reduzindo-se a uma tonalidade cinzenta que também se espalhava por dentro de mim. Até mesmo aquilo que antes me sustentava, como o mergulho nas palavras de Dostoiévski, Kafka, Tolstói, Machado de Assis, Lima Barreto e tantos outros, não despertavam mais qualquer prazer ou alegria. A depressão se instalara de forma inexorável, roubando-me de mim mesma e apagando todo o sentido que eu encontrava na vida.
Os dias se passavam sem que eu conseguisse desfrutar de um instante de tranquilidade mental. Minha mente parecia fora de controle; os pensamentos surgiam como se tivessem vida própria e, quanto mais tentava afastá-los, mais fortes se tornavam. Ao mesmo tempo, a apatia me mantinha suspensa diante do mundo, indiferente às pessoas, às coisas e até a mim mesma, aprisionando-me numa espécie de morte em vida. Por vezes, surgia uma lembrança frágil de que, em algum momento, houvera em mim um gosto pela vida; e foram esses pequenos lampejos que me impulsionaram a buscar ajuda médica. Foi nesse processo que conheci Diego, um médico recém-formado, ainda nos primeiros passos da profissão.
Diego trabalhava em uma Unidade Básica de Saúde (UBS) na periferia de Guarulhos, e seu consultório logo chamava atenção por se diferenciar do habitual; ele mesmo havia decorado o espaço com quadros de inspiração católica. Durante a primeira consulta, era impossível não reparar no ambiente. Também não pude deixar de notar as sandálias que ele usava. Tinham um aspecto de simplicidade e lembravam as sandálias de São Francisco. De fato, tudo isso destoava de todas as experiências médicas que eu havia tido até então. Não é raro encontrar profissionais cujo contato com os pacientes se limita a gestos impessoais, marcados por um distanciamento, em que o paciente é visto apenas como um corpo doente, e não como alguém com história, medos e necessidades.
Entre os quadros que decoravam o consultório, um em particular capturou meu olhar: o busto do Padre Pio. Na época, já me considerava ateia, mas, por ter crescido em uma família católica, conhecia bem a história do padre, que, segundo a tradição religiosa, narrava uma vida de dedicação aos mais necessitados. Ao fazer este comentário, iniciamos uma conversa sobre o padre, e dessa troca nasceu uma amizade. Diego dizia seguir o exemplo de Jesus e de São Francisco, dedicando-se ao serviço dos pobres, e acrescentava: “Eu peço a ele para lavar os pés de todos que entrarem em meu consultório”.
Confesso que, no início, ouvia suas palavras com certo ceticismo. Era convicta de que os religiosos agiam sempre movidos por interesses pessoais e, por esta e outras razões, me distanciava de todos eles. Apesar da descrença que carregava, percebi algo genuíno em Diego quando, durante uma de nossas conversas, ele me contou que também trabalhava em um presídio. É de amplo conhecido que os presídios são espaços de extrema precariedade e sofrimento e que, quando podem, os médicos buscam trabalhar em locais mais tranquilos e melhor equipados. Ele, porém, estava na prisão por vontade própria, motivado apenas pelo desejo de oferecer cuidado e atenção onde muitos evitam ir.
Para mim, era difícil acreditar que alguém pudesse se importar com sinceridade pelo sofrimento alheio. No entanto, a rotina de Diego se dividia entre a UBS e os atendimentos que realizava alguns dias da semana na prisão. Além disso, dedicava parte do seu tempo após o expediente a desenvolver um projeto com os internos, baseado na logoterapia; uma abordagem psicológica existencialista que busca apoiar pessoas a encontrar um sentido para viver mesmo diante do sofrimento extremo. Ao ouvir suas palavras, minha curiosidade sobre o projeto e sobre a abordagem clínica despertou imediatamente. A depressão me mantinha em uma espécie de inércia diante da vida e imaginei que aquela poderia ser uma saída possível. Foi então que ele me convidou para participar, como voluntária, das atividades que conduzia com os presos. Diego dizia que queria me mostrar, na prática, que o caminho da generosidade transforma também quem o percorre.
No primeiro dia em que estive na prisão, experimentei um misto de sensações: curiosidade, apreensão e insegurança se misturavam dentro de mim. Naquele momento, por questões burocráticas, ainda não poderia entrar no raio nem ter contato direto com os presos, mas acompanhei os atendimentos do médico na enfermaria. A enfermaria era um local cercado por grades, em um espaço pequeno, onde a carência de condições materiais saltava aos olhos. Não havia remédio para todos, os suprimentos eram escassos, e, por vezes, faltava até água. O ambiente era muito abafado. Os sinais do abandono eram visíveis: ali, “cada um se virava como podia”, como me disse a enfermeira de plantão naquele dia.
Alguns funcionários tratavam os internos com profundo desprezo, como se não enxergassem neles pessoas, mas coisas sem valor. Muitos se referiam a eles não pelos seus nomes, como determina a legislação, mas simplesmente como “preso” ou pelos números de suas matrículas, numa forma evidente de diminuí-los. Muitos presos aguardavam atendimento por horas, às vezes até dias, sem receber a assistência necessária. Lembro-me de um preso que chegou à enfermaria com um corte profundo no pescoço, jorrando sangue. Ele foi atendido pelo médico, mas passou uma semana aguardando a viatura de transporte para ser levado ao hospital. Quando voltei à prisão na semana seguinte, ele ainda estava lá, deitado em uma maca, em um corredor gelado e fétido, rosto pálido, quase sem forças. O corte já havia infeccionado e ele ainda estava à espera de uma transferência que deveria ter ocorrido dias antes. Aquela cena, infelizmente, não era uma exceção, mas a rotina de um sistema marcado pela negligência. Ali, se a comida era escassa, sobravam ratos e doenças. Se faltavam remédios e outros insumos, sobrava descaso e desumanidade. Cada gesto de cuidado do médico esbarrava nas limitações materiais e estruturais do espaço, como se ele próprio estivesse aprisionado pela realidade que tentava amenizar.
Naquele primeiro dia, observei cada interno que chegava à enfermaria, relatando suas dores e outras queixas; alguns também comentavam sobre o “BO” que os havia levado à prisão. Suas narrativas me atravessavam de maneira intensa, pois revelavam homens que já haviam ultrapassado os limites do sofrimento impostos pelas condições precárias em que viviam, frequentemente privados do mínimo de dignidade. Ouvir suas histórias me comoveu como nunca havia acontecido antes. Mais do que constatar o que já sabia sobre a prisão e seu sofrimento cotidiano, aquele encontro me transformou diante de vidas marcadas pela exclusão e pela desumanização. Não estava ali para julgar os erros de ninguém; isso cabia à justiça. O que eu queria, a partir dali, era acolher e oferecer algum conforto em meio a tanto sofrimento.
Na prisão, pequenas ações ou gestos que, em outro contexto, pareceriam banais, adquiriram para eles um significado totalmente diferente. Um aperto de mãos gerava um sorriso esperançoso; apenas ouvir, ouvir pessoas rejeitadas pela sociedade, dava-lhes um senso de valor e respeito. Um simples analgésico era recebido como um diamante, e até mesmo uma caneta se tornava um tesouro. Cada gesto de atenção transformava, por breves instantes, a dureza do cárcere em algo um pouco mais humano e significativo.
Muitos presos também sofriam de depressão, assim como eu, quando pus os pés na prisão pela primeira vez. Eu sabia bem o que sentia quem enfrenta crises de ansiedade, mas eu tinha acesso a tratamentos e medicamentos; os internos não. Esse cuidado simplesmente não existe dentro do presídio. Aqueles que não tinham familiares para enviar medicamentos no famigerado “jumbo” dependiam exclusivamente do Estado, cuja presença era praticamente inexistente. Ao mesmo tempo, testemunhei algo inesperado: a solidariedade entre os presos, que se traduzia em gestos simples, dadas condições em que viviam, porém, muito significativo entre eles. Com isso, não pretendo, de forma alguma, romantizar a experiência de quem vive atrás das grades, pelo contrário, mas de reconhecer que a solidariedade era usada entre eles, como um mecanismo de sobrevivência diante de todas as dificuldades enfrentadas.
Em Refugiados no Zen: Ensinamentos sobre o Despertar (2024), Monge Genshō ensina que o caminho espiritual começa com uma profunda inquietação diante da vida. Assim como Shakyamuni Buddha, que, ao experimentar uma angústia extrema diante do sofrimento ao seu redor, partiu em busca de uma saída, assim, todos nós iniciamos nossa jornada espiritual movidos por essa mesma inquietação e, à semelhança de Buddha, buscamos um caminho para compreendê-la e superá-la.
Em 2015, ainda não era praticante zen-budista, mas hoje, ao recordar o período em que vivi a depressão e ao rememorar minhas experiências na prisão, vejo que o Dharma já estava lá. Consigo compreender melhor que a mesma angústia que me atravessava, deixando-me sem sentido para viver, também atravessava os presos. Nós não éramos diferentes. Nosso sofrimento partia de um mesmo ponto em comum: a desesperança diante da própria vida.
Hoje consigo perceber com mais clareza a importância da generosidade e da compaixão para quem sofre. Vejo que aquela experiência estava profundamente ligada aos ensinamentos do Zen, como as três marcas da existência: dukkha, anicca e anatta. Com dukkha, aprendemos que a vida, tal como a conhecemos, contém sofrimento, frustração e insatisfação. Mas, isso não significa que a vida seja apenas dor; em Anicca, aprendemos que nenhum prazer ou aflição é totalmente duradouro, assim como o sofrimento enfrentado pelos presos e o meu próprio. Nada permanece fixo, tudo está em constante transformação. Na prisão, Diego e eu permanecíamos motivados a não desistir do projeto que desenvolvíamos, confiantes de que todas as pessoas podem mudar suas concepções e sua relação com a própria vida. Não seria isso também anatta, um “não-eu”, em que as identidades não passam de um fluxo contínuo de processos físicos e mentais em constante mudança?
Em Duvidar da Própria Compreensão, Densho Quintero afirma que a libertação do sofrimento não é individual. Para nos engajarmos verdadeiramente no caminho da compaixão, é necessário reconhecer que estamos conectados a todos os seres. Enquanto houver um único ser em sofrimento, não podemos ignorar sua dor, pois nossa prática se completa apenas na atenção e no cuidado por todos. Como afirma Densho Quintero, cada dor compartilhada nos lembra que estamos todos interligados e que, a prática da compaixão envolve reconhecer e atender à humanidade do outro. Desta forma, todos os que vivem atrás das grades, em condições de exclusão e marginalização, não são igualmente dignos desse olhar?
A experiência na prisão me ajudou a atravessar a fase mais aguda da depressão. Ao oferecer atenção, escuta e cuidado ao outro, percebi que era possível transformar meu próprio sofrimento em ação compassiva. Cada gesto, por menor que parecesse — ouvir, acolher, estar presente — trouxe um novo sentido à minha vida. Conhecer a realidade daqueles homens fez com que eu deixasse de me prender apenas aos meus próprios problemas, conectando-me a uma experiência de vida completamente diferente da minha. Há muito sofrimento e tristeza na prisão, mas, como Diego sempre me lembrava, também é possível enxergar beleza.
Assim, hoje, com as lentes do Zen, olho para aqueles anos e reconheço que a depressão levou-me até um médico que, por sua vez, abriu-me as portas do cárcere como espaço onde a compaixão e generosidade podiam se manifestar com uma liberdade inesperada. Percebo, agora, que o Dharma acontece independentemente de termos olhos para vê-lo. Como disse Joken Sensei em uma de suas palestras, Dharma é simplesmente lei: lei da natureza, da causa e da consequência. Ele sempre está em curso, mesmo quando não o percebemos. Sinto-me agradecida por poder reconhecer, nessas experiências, os ensinamentos de compaixão, dukkha e anicca. Nas próximas edições, Diego e eu traremos relatos da nossa experiência com o grupo de presos, e eu, em particular, compartilharei o olhar posterior que o Zen lançou sobre aquelas vivências.
Texto de Érica Vieira dos Santos. Praticante na Comunidade Zen-Budista Daissen. Escola Soto Zen
