Morar em São Paulo é praticamente um sinônimo de dizer que você sempre estará rodeado de gente por todos os lados. E isso não quer dizer apenas à direita ou à esquerda, à sua frente ou atrás. É também saber que se mora ou trabalha com pessoas em diversos andares acima ou abaixo de você, que há gente circulando debaixo da terra pelos metrôs, ou pelos incontáveis aviões e helicópteros sobrevoando sua cabeça. Não tem escapatória. Sozinho, pelo menos fisicamente, você nunca estará.
Nessas idas e vindas dos afazeres cotidianos, olhar com mais atenção pelo caminho que você anda traz muitas perguntas à mente. A gente encontra milhares de pessoas pegando transporte público todos os dias, em todos os horário possíveis e eu sempre me surpreendo toda vez que um trem passa lotadíssimo e, o que sai logo em seguida, sai tão cheio quanto. Esperar a próxima condução nem de longe significa que ele estará vazio.
A primeira pergunta que me surge é: de onde veio essa gente toda? É impossível imaginar que moram numa mesma cidade… Mas então continuamos nosso trajeto e acabamos passando por lugares que apenas uma parede de vidro e metal lhe separam de um lugar extremamente luxuoso e, algumas estações depois, de múltiplas pessoas dormindo na rua. Passamos por ruas onde o lixo se acumula e temos que andar sempre atentos, pois a violência urbana também é uma realidade constante.
A gente começa a se questionar muito, se as ações que colocamos uma boa intenção em realizar valem realmente a pena de serem feitas. Afinal, parece ser impossível que, estar quieto diante de uma parede durante 40 minutos, todos os dias, tenha alguma eficácia na resolução dos problemas, que a gente vê todos os dias quando sai na rua. “Por que ainda estou fazendo isso se o mundo lá fora continuará igual”?
É um questionamento que surge, quando estou passando pelo Tietê: vejo dezenas de barracas e pessoas aparentemente sem rumo, perambulando pela região. Você caminha pelas vias e presencia motoqueiros furando o sinal, a impaciência em forma de buzina, dos motoristas em quase qualquer situação no trânsito, meninos aqui e acolá tentando furtar cordões das pessoas que passam, pedindo dinheiro, vê um carro de luxo passando e do seu lado alguém que parece só ter um cobertor como propriedade. Não é tão difícil se perturbar e achar que tanto faz ou tanto fez a ação que vou tomar daqui a pouco. Os problemas continuarão lá de um jeito ou de outro.
Mas paro para refletir e percebo que o problema também está no foco do meu olhar. Tantas coisas boas estão embutidas em nossas vidas, sem a gente perceber que, quando tudo está ok, parece ser nada demais. Sim, a vida parece caótica em São Paulo, mas porque somos muitos. Mas ser numeroso não é sinônimo de ser desordenado. Se percebemos corretamente as coisas, vemos que os conflitos são, de certa forma, até poucos.
Mesmo com o turbilhão de pessoas saindo e entrando no metrô, você vê uma organização silenciosa das coisas, que simplesmente vão acontecendo por si só. Ao abrir das portas as pessoas já se aglomeram na escada rolante e, passinho por passinho, uma se coloca atrás da outra. Ninguém obstrui a esquerda e, aqueles que têm mais pressa, vão caminhando mais rapidamente. Quando se chega à estação Luz, o cruzamento dos caminhos da linha amarela com a azul e o trem são praticamente um balé coletivo.
Eu espero você passar na minha frente, outro me espera passar. Todo mundo está com pressa, mas absolutamente tudo flui. Bastasse alguém sair empurrando uma pessoa e uma multidão seria empurrada junto. Você saiu de casa com o dobro de roupa que geralmente usa, para ver se se esquenta no frio paulistano, mas é quando está no vagão que se sente realmente aquecido. Dezenas de corpos imprensados às sete da manhã e você agradece porque é o único momento do dia que você não vai sentir frio.
Você chega no trabalho e todas as tarefas se realizam sem dificuldade, o restaurante que você costuma ir, no horário do almoço, teve seu prato favorito, todas as pessoas lhe trataram educadamente e você volta para casa sem nenhum incidente no dia. Chega a sua casa e é recebido com comida quentinha por seu parceiro e você percebe, então, que tudo pode ser bom, sem absolutamente nada de extraordinário ter acontecido. Apenas tudo no seu lugar, tudo correndo bem.
A sequência de boas ações estão aqui a todo momento. A maioria absoluta está fazendo, ou pelo menos tentando fazer, o seu papel para que tudo esteja organizado e cumprindo sua função. Se dar conta disso é entender que apenas fazendo nossa parte, tudo toma rumo e se organiza, assim como a fila da escada rolante. Uns devagar, outros mais depressa, mas não atrapalhando ninguém. Aparentemente não atrapalhar é também ajudar. E sim, sentar todos os dias olhando o rodapé da parede faz gradualmente as coisas serem mais claras. Tem dias que, um chacoalhão no copo de água com areia, faz tudo ficar meio turvo, mas a gente percebe que o decantamento também vai sendo mais rápido, sempre que isso acontece.
Fazer o que é preciso é o suficiente para implicar positivamente na vida de qualquer pessoa. Se pudermos fazer com prazer e alegria, melhor ainda. Isso também se perpetuará de alguma maneira, assim como aquele “bom dia” com um enorme sorriso que você recebe e perpetua dentro de você. Ele vai se moldar de alguma forma pelas suas mãos e ser entregue a outra pessoa com a mesma intensidade. Então, pensar sobre a prática em um mundo turbulento como São Paulo é perceber que ou eu serei o grão agitado no copo de água ou eu serei o grão que se acalmou e decantou, e se eu me decanto, eu não agito outros grãos, e se mais grãos deixam de se agitar, mais a água fica cristalina.
Texto de Jéssica Sales. Praticante na Comunidade Zen-Budista Daissen. Escola Soto Zen
