Zazen em chamas: Dharma e Política

O veneno costuma entrar disfarçado de perfume. A infiltração da política partidária no Dharma raramente se anuncia como corrupção; apresenta-se como engajamento virtuoso, como necessidade urgente de “tomar partido” pelo bem. Templos passam a hastear bandeiras, mestres endossam plataformas políticas, e o que era caminho de libertação interior torna-se, sutilmente, mais um instrumento de poder temporal. Há uma tentativa crescente de sequestrar o Dharma de Buda por correntes ideológicas modernas para fins políticos, algo que no linguajar tradicional seria descrito como “demoníaco”, ou seja, profundamente anti-dhármico.

A incompatibilidade entre política e Dharma é fundamental. Não há um único texto budista clássico que defenda esta ou aquela corrente política. A política convencional prospera no apego a identidades e visões ideológicas rígidas, no “nós contra eles”. O Dharma, contudo, diagnostica exatamente esse apego a visões (micchā-diṭṭhi) como fonte primária de sofrimento. Os ensinamentos de vacuidade (śūnyatā) e não-eu (anattā) são projetados para desfazer esses essencialismos de grupo e a própria noção de um “inimigo” fixo. As Quatro Nobres Verdades são a verdadeira plataforma do Dharma, e ela transcende todas as facções humanas, inclusive não se limitando aos seres humanos, mas a toda espécie de seres.

Além disso, o Dharma regula estritamente os meios. No Caminho Óctuplo, a conduta correta é sempre o padrão, inegociável. A ética budista, centrada na não-violência (ahimsa) e na fala correta (abster-se de mentir, caluniar ou incitar divisão), barra os métodos mais comuns da propaganda política. A política, por outro lado, frequentemente opera sob a lógica de que os fins justificam os meios, uma premissa que o Dharma rejeita categoricamente. Onde o discurso político é movido pela raiva ou parcialidade, o Dharma cultiva a equanimidade (upekkhā) e a compaixão (karuṇā). O ideal do Bodhisattva é servir a todos os seres, sem tribos ou exclusões.

O cânone budista é inequívoco: o próprio Buda não tomava partido em disputas políticas. Ele aconselhava governantes e comunidades sobre ética, paz e coesão, mas evitava rigorosamente alinhar-se a facções. Quando o rei Ajātasattu planejava atacar a confederação dos Vajji, o Buda não apoiou nenhum lado. Nos diálogos com o rei Pasenadi de Kosala, o foco era a responsabilidade moral individual e a impermanência, não o alinhamento político. O arquétipo do “Monarca Justo” (Cakkavatti) descrito pelo Buda era um ideal ético, não uma plataforma partidária. Quando o conflito era iminente, como na disputa pela água do rio Rohiṇī entre seus próprios clãs, ele atuou como mediador, perguntando o que valia mais: a água ou o sangue dos seres?

O Buda foi ainda mais rigoroso internamente. O caso de Devadatta, seu primo, é o arquétipo da politização e da cisão da Sangha. Devadatta buscou aliança com o poder secular (o príncipe Ajātasattu) para usurpar a liderança e cindir a Sangha. O Buda rejeitou categoricamente sua ambição, condenando a cisão da Sangha como uma das ofensas mais graves ao Dharma. O alerta era claro: a ambição de poder temporal não tem lugar no Dharma.

A política busca uma redenção coletiva através de soluções materialistas, que são sempre incompletas por ignorarem a mente como a verdadeira raiz dos problemas. Focada no poder temporal e na identidade de grupo, ela é transitória. O Dharma, em contraste, é atemporal (akālika) e ensina o Caminho do Despertar. Esta libertação é estritamente interna, mirando a raiz do sofrimento (dukkha), e não pode ser imposta por decreto ou manipulação externa do samsara.

Quando essa incompatibilidade é ignorada, a história mostra um padrão trágico de captura. O processo geralmente começa com a sacralização de ideologias: a nação, a raça, o partido ou um ideal vago são apresentados como missão sagrada. Defender determinada corrente política ou o Estado passa a ser o mesmo que “defender o budismo”. Vimos isso no Japão imperial, onde alguns mestres zen reinterpretaram o desapego como justificativa para pilotos kamikaze, promovendo a máquina militar com a autoridade do falso Dharma. Vimos no Sri Lanka, onde o nacionalismo cingalês-budista tentou reduzir o budismo a uma identidade étnica, alimentando décadas de conflito e violência contra minorias. E de forma trágica em Mianmar, onde monges radicais usaram sua autoridade para desumanizar a minoria Rohingya. Na China contemporânea, a política visa controlar a Sangha, monitorar sermões e até gerenciar a sucessão de linhagens, como na controversa nomeação estatal do Panchen Lama.

Em todos esses casos, o resultado é o mesmo: o Dharma, quando misturado à política, deixa de ser Dharma verdadeiro, deixa de ser remédio universal para o sofrimento e torna-se mais um instrumento de poder. O Dharma deve permanecer puro, livre das contaminações das disputas passageiras. Não por indiferença ao sofrimento do mundo, mas precisamente porque sua eficácia depende dessa pureza. Quando o templo hasteia uma bandeira partidária, ele abdica de sua função de refúgio para todos os seres. Quando o mestre endossa uma facção, ele troca a libertação universal por uma vitória tribal temporária. A verdadeira compaixão budista não se expressa em manifestos políticos, mas na transformação silenciosa da mente.

Texto de Jōken Sensei. Professor Leigo do Dharma na Comunidade Zen-Budista Daissen. Escola Soto Zen.

 

Pin It on Pinterest

Share This