“Essa é a história do Hurricane, o homem que as autoridades culparam por alguma coisa que ele nunca fez. Foi colocado numa cela na prisão, mas ele poderia ter sido um dia o campeão do mundo”.
Esse é o refrão da poderosa música de protesto chamada “Hurricane” do álbum Desire (1976) de Bob Dylan. Ela conta a história de Rubin Carter, apelidado “Hurricane”, um boxeador promissor dos anos 60 que foi preso injustamente. A música fala sobre como, possivelmente por perseguição racial, as autoridades o culparam por um crime que ele não cometeu, um homicídio triplo, e que, por isso, foi sentenciado a três penas de prisão perpétua. Esta história se tornou muito famosa e foi relatada também em um filme estrelado pelo ator Denzel Washington (“The Hurricane”, 1999).
O mais interessante é o caráter de Carter e a maneira como ele lidou com a situação. Mesmo sendo declarado culpado injustamente, ele nunca se viu como prisioneiro. Quando foi preso, ele teria afirmado ao diretor da penitenciária e aos carcereiros:
“Sei que vocês não têm nada a ver com a injustiça que me trouxe a esta prisão e estou disposto a ficar aqui, mas não irei, em circunstância alguma, ser tratado como um prisioneiro, porque não sou nem nunca serei impotente”.
Ele recusou-se a participar de audiências de liberdade condicional, não trabalhava para reduzir sua pena e não aceitava visitas. Ele se comportava de forma a manter a liberdade que nunca lhe foi tirada – a liberdade de escolher como reagir às circunstâncias – assim como quando Nichiren Shonin escreveu “como nascemos nesse país, nosso corpo deve obedecer ao governante, mas nossa mente e espírito nunca obedecerão” (“Ensaio sobre a Seleção do Tempo”, 1275).
Pessoas de grande caráter mostram uma força mental impressionante sob circunstâncias extremas.
Outro trecho da música de Dylan diz:
“Agora, todos os criminosos de terno e gravata estão livres para tomar martinis e ver o sol nascer, enquanto Rubin, se senta como Buda em uma cela de três metros quadrados, um homem inocente vivendo no inferno”.
Que imagem poderosa! Bob Dylan, único artista a ganhar o Nobel de Literatura, o Pulitzer, o Oscar, o Grammy e o Globo de Ouro, não usou a referência de um Buda numa cela de três metros quadrados à toa. Aqui, Carter é colocado como uma espécie de herói budista que transforma os obstáculos e perseguições em oportunidade para purificação e contemplação.
Faz especificamente referência ao Sutra de Vimalakirti onde um leigo chamado Vimalakirti, um Bodhisattva, transformou seu pequeno quarto de três metros quadrados em uma arena cósmica na qual centenas de bodhisattvas, discípulos sravakas e deidades podiam ali encontrar espaço. O quarto estava vazio, porque todos os campos de Buda são vazios e todos os campos de Buda são vazios, mesmo de vazio, porque todas as coisas são vazias. É nesse espaço que Vimalakirti debate com os principais discípulos do Buda. É nesse espaço transcendente que Carter suplanta seu longo sofrimento e encontra crescimento interior.
Durante todo o tempo encarcerado ele estava sempre estudando, principalmente sobre direito, história e filosofia, engajado em conseguir a sua absolvição. Hurricane levou quase duas décadas na prisão até provar sua inocência. Ele saiu da prisão não como um prisioneiro, mas de alguma forma, alguém melhor do que quando ele entrou. Algum tempo depois, foi condecorado com títulos honorários em Direito em duas universidades, uma no Canadá e outra na Austrália. Além disso, recebeu do Conselho Mundial de Boxe o cinturão honorário, algo inédito.
Quando foi libertado, não exigiu desculpas, pois isso significaria admitir que havia perdido algo e ele nunca se permitiu perder sua dignidade ou força. Carter decidiu como os acontecimentos o afetariam, escolhendo transformar a adversidade em algo positivo.
A liberdade de escolher como reagir é um direito que ninguém pode tirar de nós.
Texto por Guilherme Yotatsu. Monge do Budismo Nichiren Shu, praticante budista desde 2004 e se tornou Shami (monge noviço) em 2008 e recebeu a ordenação completa em 2023.
Imagem: Monk, por Bob Dylan