ZEN, Tradição e Mudanças Culturais

無上甚深微妙の法は
百千万劫にも遭い遇うこと難し
我れ今見聞し受持することを得たり
願わくは如来真実の義を解せん

O Dharma incomparavelmente profundo e de uma sutileza infinita
é raramente encontrado mesmo em milhões de milhões de ciclos universais.
Possamos nós agora ouvi-lo,aprendê-lo e guardá-lo.
Ouçamos cuidadosamente as palavras do Tathāgata.

(Kaikyō-ge)

No começo das palestras, recitamos o Kaikyō-ge e é importante destacar que quando digo para ouvirmos “as palavras do Tathāgata” é para dizer que não posso falar por mim mesmo, tenho que falar a partir dos ensinamentos de Shakyamuni Buddha, o Tathāgata – um dos seus títulos é esse, aquele que não se altera, aquele que assim como vai, assim vem. Isso é o que significa o Tathāgata.

No início, historicamente, o Budismo era profundamente ascético e profundamente monástico. Os praticantes leigos eram entendidos como incapazes de alcançar o despertar nessa vida, que o despertar só poderia ser alcançado por meio da vivência como monge asceta e essa era a maneira como todos entendiam. Inclusive sangha era uma palavra que se referia apenas aos monges, essa era a sangha, a Sangha dos Monges, não era a dos leigos. 

O que nós estamos vivendo aqui agora é completamente diferente e eu queria explorar essa evolução histórica junto com vocês para nós percebermos a grandeza do que aconteceu com o Budismo durante todo esse tempo. Então, o que aconteceu no início? No início se entendia que aquele que despertava era um Arhat, aquele que vencia os inimigos, que vencia os seus inimigos internos. E ele fazia isso sozinho, ele fazia para si. Ele vencia todas as suas limitações e tornava-se um Arhat, um iluminado. E assim são entendidos os primeiros realizadores desse caminho, nos primeiros trezentos a quinhentos anos depois da morte de Buddha.

O que surge lá pelo primeiro século da nossa era, no nosso calendário, é o movimento Mahayana. O movimento Mahayana é um movimento que quer dizer isso, “Maha”, “Grande”, que quer levar todo mundo. Então nesse levar a todos, a tarefa do bodhisattva era carregar e transportar todos, para que todos despertassem. O sutra que marca esse momento é o Sutra de Vimalakirti. É um sutra que quer engrandecer o leigo, o praticante leigo, então ele toma um comerciante como seu herói que, tradicionalmente nos tempos antigos, era considerado uma pessoa de segunda classe, aquele que comprava e vendia, que obtinha lucro. Assim como hoje as pessoas dizem: “Ah é um capitalista”, naquele tempo eles diziam: “é um comerciante.” Os que estavam em primeiro lugar na categoria social eram os brâmanes na Índia, depois os kshatriyas, os guerreiros, governantes, que usavam armas e guerreavam. Depois vinham os comerciantes e só depois, aqueles que trabalhavam. Então vê-se quais eram as categorias sociais consideradas nobres. 

A herança cultural no Brasil ainda enxerga o trabalho manual como uma coisa sem dignidade. Sujar as mãos, carregar pedras, cavar. Porque na nossa herança cultural, era trabalho dos escravos, os últimos na categoria social, a tal ponto que foi necessário um édito papal para dizer que eles tinham alma. No tempo de Buddha, a mesma coisa.

Então, aquele que escreve o Sutra de Vimalakirti, que nós não sabemos quem foi, porque os sutras a esse tempo eram escritos sem assinatura, sempre se fazia como se Buddha e os personagens da sua época estivessem falando. E Vimalakirti é um personagem que é narrado nesse sutra como se fosse um contemporâneo dos discípulos de Buddha. 

E Vimalakirti é um herói espiritual, em todo o sutra ele derrota os monges com sua sabedoria. Ele mostra que compreende melhor o Dharma que os discípulos. Tem uma passagem famosa no Sutra em que ele encontra os discípulos de Buddha no caminho e eles perguntam: “Aonde vais?” ele diz: “Vou para o mosteiro”. E eles dizem: “Mas não é por aí, o caminho do mosteiro é no outro caminho, é na direção que estamos indo.” E Vimalakirti responde: “Esse é o mosteiro de vocês. O meu mosteiro é lá na cidade, onde estão as pessoas que precisam de emprego, que precisam de alimento, precisam trabalhar, precisam sobreviver, precisam alimentar seus filhos. Lá é o meu mosteiro.”

Ele está dizendo: “Podem vocês, egoisticamente, cuidar do seu próprio despertar, sozinhos, sem ajudar ninguém.” É isso que Vimalakirti está dizendo. Então os discípulos de Buddha se sentem envergonhados nesse diálogo. E o Sutra de Vimalakirti é um sutra que marca o momento da mudança entre aquela orientação ascética e exclusivamente monástica para uma orientação que pretende levar todos juntos ao despertar. Então ele abre caminho para os leigos. Nós somos aqui herdeiros desse movimento, do movimento Mahayana. O Zen está enraizado nesse movimento Mahayana também.

Algumas teses defendem que existem diferentes rodas do Dharma, de que existe um primeiro momento em que é ensinada a virtude, depois são ensinadas as coisas como a compaixão, o não eu, o vazio, enfatizado no tempo de Nagarjuna. Porque esses termos, como vazio, raramente aparecem nos primeiros sutras no tempo de Buddha. Se vocês tomam o Dhammapada, vão encontrar a palavra sunya uma única vez e sunya significa vazio. Como nós poderíamos dizer, o movimento Mahayana não combate o movimento anterior, mas ele amplifica, amplifica para todos, inclui a todos. 

A ideia de que havia uma primeira roda do Dharma (e que depois Buddha teria escondido ensinamentos que as pessoas não estavam dispostas a absorver, para que fossem ensinados mais tarde) é uma fantasia, porque na verdade o Mahayana é uma evolução do Budismo. E uma tese que eu tenho sempre ensinado é: “Olhe com uma atenção histórica”. Então não é isso o que acontece, não ficaram escondidos ensinamentos, o que aconteceu foi uma evolução, um crescimento do Budismo com grandes mestres que o desenvolveram. É o papel de um mestre como Nagarjuna, Asanga e Vasubandhu que vão desenvolver as teses sobre a consciência, já no século II, século III. E esse grande movimento, que aprofunda a filosofia budista, vai redundar no Zen.

Mas o que é o Zen? O Zen é um Budismo que chegou à China e enfrentou condições completamente novas. Os monges no tempo de Buddha tinham que mendigar sua comida, não podiam comer depois do meio-dia. Não podiam… vocês pegam o Parinirvana Sutra, vão ver que esse sutra diz que os monges não podem amanhar a terra. Não podem plantar, não podem cultivar, não podem trabalhar, só precisam fazer as coisas essenciais para a sua sobrevivência naquele momento, mas a sua sobrevivência alimentar, por exemplo, tem que ser provida pela sangha, é a sangha que vai sustentar os monges, esta é a tese antiga.

Quando o Budismo entrou na China, de repente os monges não podem mendigar. Porque a mendicância não é bem-vista, porque afinal de contas, na China havia fome no inverno, porque não se produzia no inverno. Então como aconteceu na Europa, aqueles que produzem têm que acumular, preservar e estocar para sobreviverem no inverno. Lembrando aquela fábula de Esopo da cigarra e da formiga, porque a cigarra está passando fome e a formiga diz: “canta agora”, porque é o inverno e a formiga guardou. Então essa é a tradição na China e monges mendigando comida era uma coisa inaceitável. Os monges também não podiam viver ao léu, mendigando, viajando na floresta e dormindo embaixo de árvores. Isso era possível na Índia, mas isso não era possível na China. Eles iam morrer congelados, tinham que ter abrigo. Aí os monges se reuniram e decidiram: “Vamos fazer um monastério aqui, agora.” “Nós não podemos mendigar comida, o que que nós temos que fazer? Trabalhar. Nós temos que plantar, nós temos que sobreviver.” Então, os monastérios permanentes, que não existiam na Índia, foram construídos na China.

De modo que isso ocorre nesse momento, depois da chegada de Bodhidharma na China. Ele chega com o Zen, já havia chegado o Budismo quinhentos anos antes, mas o Budismo tinha ficado no modelo anterior. Então o que que era o caminho para o Budismo? Juntar-se aos poderosos. E isso foi o que aconteceu com os monges budistas dos primeiros tempos. Não eram do Zen, eram monges que queriam sobreviver e ensinar o Dharma, mas que seu único caminho era serem sustentados por mecenas, por nobres e poderosos. Foi isso o que aconteceu.

Quando o Zen chega à China, só tem um caminho: o monastério. Além disso, tinham que amanhar a terra, mudar as regras antigas que proibiam os monges de trabalhar e jogá-las fora. Neste momento surge o personagem da nossa palestra de hoje, que é Paichang, ou Paizhang, ou Hyakujo, em japonês. Diferentes nomes para este grande personagem. Ele nasceu em 720, ou seja, apenas um século depois de Bodhidharma ter começado o seu trabalho. E Paichang então reforma a ordem budista. Ele cria uma ordem, com novas regras e é dele que nós somos descendentes. Eu não vou ler a biografia dele, embora seja tentador, mas eu queria contar algumas passagens da vida de Paichang que tem o sabor do Zen e explicar porque isso se estabeleceu. Nós estamos falando aqui de uma evolução muito importante, porque mudou a história monástica, mudou o comportamento e mudaram as regras. 

No tempo de Buddha, os monges tinham duzentas e setenta e quatro regras para seguir. O Vinaya tem duzentas e setenta e quatro regras, as mais diversas, porque toda vez que havia um incidente, se criava uma regra. Não pode isso, não pode aquilo, não pode aquilo outro. E as mulheres, porque tinham a particularidade da gravidez e dos seus ciclos hormonais, tinham trezentas e onze regras, desabavam sobre elas mais regras. Um homem podia ser ordenado imediatamente, uma mulher não, apenas dez meses depois, pois vai que ela estivesse grávida na hora de pedir a ordenação? Então cria-se mais regra.

Aí ele foi estudar com Mazu e um dos episódios que eu queria contar para vocês é que Paichang acompanhava Mazu numa caminhada, quando eles avistaram um bando de patos selvagens voando. Mazu perguntou: “O que é aquilo? Paichang disse: “Patos selvagens”. “Patos selvagens?”, repetiu Mazu, “Para onde foram”? E Paichang respondeu: “Voaram”. Mazu então pegou o nariz de Paichang e torceu, Paichang gemeu de dor. A história não conta, aqui nessa biografia não se conta, mas na biografia de Mazu, que é muito interessante, ele era um homem de quase dois metros de altura, famoso por sua violência também. E Mazu torceu o nariz de Paichang, que gemeu de dor e perguntou: “Você insiste que eles voaram”? E com estas palavras Paichang teve um insight repentino, intuindo a verdade. Paichang voltou chorando ao alojamento dos assistentes. Outro monge lhe perguntou: “Está pensando em seus pais”? Paichang respondeu: “Não”. “Alguém lhe repreendeu”? Ao que Paichang respondeu: “Não”. “Então, por que está chorando”? E Paichang disse: “O mestre torceu o meu nariz e ainda está doendo”. O outro perguntou: “Mas houve algum desentendimento”? Paichang retrucou: “Vá você mesmo perguntar ao mestre”. O monge foi perguntar a Mazu: “Houve algum desentendimento com o assistente Paichang? Ele voltou ao alojamento chorando. Mestre, espero que possa me explicar por quê”? Mazu falou: “Paichang compreende, vá perguntar para ele”. Ao voltar para o alojamento, o monge disse a Paichang: “Nosso mestre diz que você compreende e me pediu que lhe perguntasse”. Paichang então caiu na gargalhada. O monge reagiu: “Um momento atrás você chorava, por que está rindo agora”? Ao que Paichang respondeu: “Um momento atrás eu estava chorando, agora estou rindo”.

Essa é bem uma história no estilo Zen, que vocês vão ler nos textos antigos. No dia seguinte, Mazu dirigiu-se ao assento do mestre, no salão do Dharma, e assim que a congregação se reuniu, Paichang veio à frente e desenrolou sua esteira. Mazu então abandonou o seu assento. Logo depois Paichang foi aos aposentos particulares de Mazu e escutou as palavras dele: “Agora mesmo, porque desenrolou sua esteira antes que tivesse pregado o Dharma?” Paichang disse: “Ontem o mestre torceu o meu nariz e doeu”. Mazu perguntou: “Onde é que guardava sua mente ontem”? Ao que Paichang retrucou: “Hoje meu nariz não dói”. Mazu disse: “Você entende profundamente o negócio de ontem”. Paichang saudou e se retirou.

Essas historietas (Hyakujo é um personagem que aparece várias vezes nos textos antigos, na crônica do penhasco azul e Mumonkan, coletâneas de koans) refletem um pensamento do Zen que está focado na questão do aqui e agora. O que é real e o que é irreal? O que você sonha com a sua mente? O que dentro da sua cabeça é perspectiva? Por que você vê patos voando e diz: “Eles se foram”? Eles estão aqui ou não estão aqui? Por que ele torceu o nariz de Paichang? Porque nesse momento doeu, Mazu não perdoava. 

Há um famoso conto sobre Mazu, que um aluno diz: “Ah, eu quero ir estudar com outro mestre, não estou satisfeito com o senhor”, coisa que às vezes acontece comigo mesmo. E aí o mestre disse: “Vá visitar o mestre Mazu”. E ele foi lá. Ele chegou na cabana de Mazu e Mazu não fez nenhuma pergunta nem lhe deu nenhuma resposta, deu-lhe trinta socos e o jogou do alpendre. E ele voltou todo machucado e o mestre perguntou: “Então, como foi sua entrevista com Mazu”? Ele disse: “Ele me deu trinta socos e me jogou da varanda”. E o mestre disse: “Ah! Mestre Mazu gostou muito de você”.

Para entender isso, nós temos que entender o ambiente monástico do Zen. Quando você está em um monastério, quando eu estava no monastério de Sōji-ji, nós tínhamos um ritual todos os dias depois da cerimônia da manhã. Nós íamos até a sala dos monges e todos os monges se ajoelhavam e ficavam em gasshō. E os instrutores iam de monge em monge dizendo “Você fez isso errado; Você é isso; Você é um idiota; Você é tolo; Você não prestou atenção naquilo”. E a cada um que era repreendido, eu também, lá em gasshō, era repreendido e você tem que responder “Shitsurei tashimashita, arigatou, shitsurei tashimashita”, que quer dizer “Obrigado, obrigado por se importar comigo.” Porque a pior coisa é quando você não for mais repreendido. Se você não for mais repreendido é porque desistiram de você, não gostam de você. Então ser repreendido é ser amado. Então, por causa disso, o mestre disse: “Mazu gostou muito de você”. Imagine, gastou energia para lhe dar trinta socos, normalmente ele dá só um.

Então, o que que faz Paichang? Ele reescreve as regras para os monges e estabelece uma regra que é impressionantemente parecida com a regra dos monges beneditinos que surgiram no ano 500 depois de Cristo com São Bento. Quem esteve no retiro de São Paulo na Abadia de Santa Maria? A regra é “Ora e labora.” Ou seja, oração e trabalho. E no mosteiro budista é a mesma coisa, “meditação e trabalho.” Trabalho sem parar. 

E Hyakujo estabeleceu a regra de que dia sem trabalho é dia sem comida. Por isso, nos mosteiros Zen, a gente trabalha segunda, terça, quarta, quinta, sexta, sábado, domingo e segunda de novo. Porque não tem o dia de descanso. Aquilo que a gente supõe como dia de descanso é dia de faxina, é dia que você vai fazer todas as coisas, arrumar os quartos, trancar as coisas, levantar os tatames, tirar o pó debaixo etc. Você vai trabalhar, trabalhar, trabalhar internamente e, no dia seguinte, volta para os trabalhos externos. Ou seja, o dia de descanso é só um dia de mudança de trabalho, não é um dia de descanso realmente, não é aquele da tradição judaico-cristã que é o dia do senhor, no qual ninguém vai trabalhar, nem você, nem o seu jumento, nem ninguém vai fazer coisa alguma. 

Isso, então, é uma mudança radical para aqueles monges que não podiam trabalhar do Paranirvana Sutra, pois os monges passaram a ter que trabalhar todos os dias. Porque sem trabalho, a mente se dispersa. De modo que a ênfase da prática fica na meditação, no trabalho e no estudo. Três coisas, três atividades constantes. E quanto aos monges, não se supõe que um monge vai se aposentar, não existe isso do monge dizer “eu vou me aposentar.” 

O superior geral da nossa ordem, que morreu em 2008, trabalhou até trinta dias antes de morrer. Só que ele tinha nascido em 1900… Então ele morreu com 108 anos, trabalhou até os 108 anos. Não tem assim: “Ah, eu estou com 108 anos, vou me aposentar.” Não, não tem, trabalha até terminar. E é assim que, se vocês prestam atenção na história dos patriarcas da nossa ordem, Dōgen, morre ainda trabalhando, Keizan também. Estão doentes, mas continuam escrevendo o seu poema de morte, falando com seus alunos, até o fim, até o último momento. 

Então essa grande mudança que Paishang criou, ela fundamenta o que nós estamos vendo hoje aqui na Daissen. O que é a Daissen realmente? Daissen é uma tentativa de retorno à prática antiga, em seus fundamentos. Não há um interesse em rituais de homenagem a deidades ou qualquer coisa que esteja ligada a um sincretismo religioso, porque o Budismo fez muito isso. O Budismo Tibetano se sincretizou com a Igreja Bön, se sincretizou com o Tantrismo indiano. O Budismo japonês, na nossa própria escola, se sincretizou com as tradições xintoístas e confucianas. 

Você olha e diz assim “Não, isso é do Xintoísmo, não é originário do Budismo. Mas já que estamos aqui, então homenageamos e não lutamos contra”. Só que neste momento histórico que nós estamos aqui no ocidente, nós temos alunos que vem para o Zen porque não aceitam mais nada. Então eles não querem as coisas que estão ligadas às superstições antigas, eles não querem isso, eles querem uma limpeza. É um grande momento. É um momento histórico que talvez nós não estejamos vendo com clareza. Por isso existe uma resistência em manter coisas antigas, ou um medo de adotar coisas novas. E nós temos que andar num fio da navalha com bastante cuidado, porque não podemos jogar fora a criança junto com a água do banho. Então temos que manter as tradições, temos que manter a história, temos que manter o espírito do Budismo e do Zen, mas não precisamos importar orientalismos. Não, não precisamos.

Essa é uma crítica muito interessante que eu ouvi do Dalai Lama, acho que em 2011, numa famosa reunião em um hotel em São Paulo. Acho que foi em 2011, que ele esteve aqui em 2006 e 2011. E ele chegou e disse assim: “Porque os ocidentais estão se vestindo como tibetanos? Porque mudam os móveis da casa para colocar móveis orientais? Isso não é o Dharma, não tem sentido.” E ele disse isso e ficou todo mundo chocado, tinha gente vestida com roupas tibetanas assistindo ele falar no hotel. E ele foi muito claro a respeito disso, com toda razão. Porque, por exemplo na Daissen, nós não queremos fazer japoneses, não é isso. As coisas maravilhosas da cultura, nós queremos trazer, mas queremos saber transformar e adaptar às nossas necessidades, ao que nós estamos fazendo.

Quando eu estava no mosteiro de Yoko-ji, nos EUA,  Akiba Rōshi – com quem eu encontrei a última vez em setembro do ano passado e é o Sookan da América do Norte, me disse: “Nós, mestres japoneses, não sabemos como traduzir o Zen para o ocidente. Vocês, novos professores ocidentais, é que têm que traduzir. Mas, para traduzir, vocês têm que aprender. Aprender o Budismo oriental. Se você não aprender, não pode traduzir”. Por isso nós mandamos todos os nossos monges para um monastério no Japão. Vá para o Japão, pratique lá e aí então, vivenciando com sua carne e seus ossos, a tradição como era, aí você pode ser capaz de traduzir adequadamente para cá. Então o que nós estamos fazendo é essa enorme tentativa, criando algo como o CED, nosso sistema de ensino dentro da Daissen, para todo mundo aprender o Dharma com profundidade. 

Por isso nós estamos insistindo: zazen. Nós temos que fazer zazen. Zazen é o centro da prática. Foi isso que o Buddha fez para se iluminar; foi isso que todos os patriarcas fizeram no passado; foi isso que Dōgen fez; foi isso que Keizan fez; foi isso que Bodhidharma fez nove anos, sentado, segundo a tradição, dentro de uma caverna. Foi assim, foi realmente praticando para abrir os olhos e enxergar. 

E isso é que é experiência, isso é que permite enxergar. Mas você precisa entender o Dharma, por isso precisa estudar. Então as joias do Budismo são o Buddha, a prática, o Dharma, o ensinamento, a compreensão e a Sangha, a comunidade. E ainda trabalhar para os outros, para não ficar centrado em si mesmo. Senão você entra naquele esquema antigo, em que alguém estava centrado em si mesmo e não consegue espalhar para o mundo e influenciar o nosso mundo. Nós precisamos mudar o nosso mundo por meio da mudança interna das pessoas. Porque se os nossos dirigentes tivessem sido influenciados eticamente por princípios budistas, agiriam diferente.

Então, rememorando, o Budismo tem uma trajetória de evolução. Paichang é um grande modificador, porque mudou as regras para nós, para os monges. Os monges passaram a trabalhar, passaram a cozinhar. Estabeleceu-se, por causa disso, uma cozinha que não matava dentro dos monastérios, estabeleceu-se uma cozinha tentando minimizar o sofrimento, porque você não vai eliminar o sofrimento de jeito nenhum, o simples fato de estar vivo é estar causando sofrimento aos outros. 

Então você tem que minimizar, diminuir o seu impacto no mundo e para isso nós temos que mudar nossos pequenos hábitos internos e se nós espalharmos esse tipo de noção, nós mudamos os hábitos de um povo inteiro. Esse é o início de um movimento nesse sentido.

Talvez nós não enxerguemos assim. “Ah, nós não vamos mudar nada agora”. Se dissessem isso para Buddha, ele teria desistido, porque ele começou com cinco alunos. Se tivessem dito isso para Dōgen, ele só tinha o mosteiro de Eiheiji e mais nada, e não era um grupo grande de monges. E em todos os lugares é assim, as sanghas não são muito grandes porque o treinamento é duro, ele não é leve. Há uma grande exigência para você começar a treinar o Zen, é uma reforma interna e essa não é fácil. Então, quando nós vamos nas sanghas, é difícil uma sangha nos dias normais ter mais de vinte pessoas. Isso é difícil, no país inteiro. No oriente também, a mesma coisa. Em nenhum lugar o Zen foi uma multidão, mas a sua influência cultural é absolutamente desproporcional. 

Prestem atenção, mesmo no nosso mundo, a influência das ideias budistas é muito maior do que poderia se supor pelo número de praticantes budistas que existem. Então não é pouca coisa. Nós começamos com uma pequena semente, mas podemos mudar uma civilização inteira. Para aqueles que têm ido para o Japão, ou para a Tailândia, para lugares assim, veem a conduta do povo e veem que as coisas são diferentes porque a cultura mudou. Mas quem mudou a cultura através dos séculos? A influência do Budismo.

 

Texto de Genshō Rōshi 玄祥. Abade do Templo Daissenji. Escola Soto Zen.

 

Pin It on Pinterest

Share This