Se Cuida

 

Ainda que a total não identificação consigo mesmo seja a realização da prática espiritual, essa não identificação existe porque há identificação. Ainda que se diga “deixar cair corpo e mente” como sinônimo dessa não identificação, você ainda assim deve manter de pé este seu corpo, da melhor forma possível. É você quem deve, no fim de tudo, cuidar do seu corpo e mente durante a prática e mesmo depois dela. Encontrar meios de tranquilizar corpo e mente, neste momento, é o caminho para a realização da sabedoria e da liberdade final. Ao deixar cair ossos e músculos, abandonar a tensão e os pensamentos acumulados, deixando o corpo ir completamente em direção à terra, mantendo a energia mínima suficiente apenas para manter a postura adequada ao momento, é praticar a não identificação com o próprio corpo.

Corpo (e mente) é aquilo do qual não podemos nos livrar durante toda uma vida. Onde quer que eu vá o farei com o meu corpo. É ainda com este corpo que sempre encontro a libertação final, que é a libertação aqui e agora do próprio corpo. Sentamo-nos na plateia para assistir a um teatro sobre nós mesmos, onde supostamente estamos no palco, no entanto, estamos sós na plateia. Assim contemplamos a não existência final da ideia de nós mesmos. Sejamos nós o foco da nossa atenção, sejamos nós o não foco da nossa atenção.

Assim, na prática espiritual, a atenção vai além do focar em si ou além de si. Essa questão é transcendida pelo profundo entendimento de que não há contradição em deixar de estar totalmente identificado consigo mesmo, tendo ainda um corpo e mente. Isso na prática significa que não se deve focar (e permanecer) nos problemas pessoais, nos problemas dos outros, nos sofrimentos pessoais ou no sofrimento dos outros. Problemas pessoais são resolvidos da forma que é possível no momento, esse é apenas o nível da problemática. Os problemas dos outros, posso ajudar a resolver sempre que for o caso, mas ainda são apenas o mundo dos problemas e das soluções. Do sofrimento me desapego constantemente (não foco neles). O sofrimento dos outros são meus sofrimentos, também deles me desapego.

Não me prendendo aos meus problemas e sofrimentos, me torno cada vez mais apto a lidar comigo mesmo, transcendendo corpo e mente. Independentemente da cor dos meus olhos, da minha pele, da forma do meu corpo e da minha condição social. Indo além das minhas ações no passado, das ações da minha família no passado e suas consequências agora (os chamados karmas).

Durante a prática espiritual saímos do círculo do samsara, aparentemente inscrito em nós mesmos. A função do ego é tomar conta da existência do corpo, e ele tende a focar nos problemas para resolvê-los. Sem desprezar o ego, simplesmente o que precisa ser resolvido é resolvido no seu tempo. No entanto, nosso coração está livre, expandindo-se muito além dos pequenos e resolvíveis problemas físicos e psicológicos do corpo. Pode-se até buscar a ajuda de médicos e terapeutas, mas o Budismo, a prática espiritual, não é terapia. Se você confundir as coisas nesse sentido poderá ficar ainda mais perdido ou perdida.

Durante a prática, questões psicológicas podem ir se resolvendo naturalmente, mas é apenas um efeito colateral benéfico. Não identificados com o corpo, completamente não identificados com a minúscula consciência do ego, experimentamos a mente luminosa que vai além de qualquer consciência.

 

Texto de Monge Seigen Sensei. Sangha Kyozen. Escola Soto Zen.

 

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