O insight sobre os três Re’s

 

O caminho do Dharma é descrito como prática. O Dharma na verdade, consiste na transmissão de ensinamentos budistas, que por milênios são oferecidos de mestres a alunos, mestres a discípulos e mestres para apenas interessados (este último em um contexto mais moderno).

Definido como “Caminho” o Dharma é, por assim dizer, um processo a ser trilhado, sendo por isso, bastante eficiente a ajuda de um guia, no caso, um mestre. O próprio Buda contou com mestres, tanto para a prática da meditação, quanto em suas experiências mundanas. E esse é um aspecto importante. A figura de Buda, em escrituras mais sérias e realistas, é retratada como “um ser humano comum”. Assim sendo, viveu e experimentou mazelas, envelhecimento e morte, como qualquer um de nós.

Perceber a figura do Buda como ser humano que experienciou condições realmente humanas, fortalece a prática budista, o caminho do Dharma. Isso porque não se trata aqui de uma apreciação de seres sobrenaturais, sentados em posição de lótus, cujo ápice da cabeça se abrirá e a glândula pituitária receberá um feixe de luz dourado. Ao contrário, trata-se de um homem que se dedicou à busca pela expansão da própria consciência, de forma diligente e genuína, percorrendo o próprio caminho e nos mostrando a capacidade inerente em nós de fazermos o mesmo.

O Dharma, esse caminho, essa prática que há mais de dois mil e quinhentos anos acolhe e ampara mentes ávidas pela libertação, está a todo instante se mostrando aos olhos sensíveis e corajosos. E não se trata de conceitos filosóficos, religiosos, quânticos ou mesmo psicanalíticos. O budismo não angaria a natureza separatista, ao contrário. A equanimidade, tanto referida na prática budista, é antídoto para a “separabilidade” comum às definições. Melhor dizer que o budismo é método. E como método pode ser aprendido e ensinado. Mas sua assimilação ultrapassa conceitos puramente intelectuais. Ele nos pede experiência.

Como experiência, o budismo então não se separa do Dharma, pois esse é o caminho que leva à experiência em si. Ao mesmo tempo, a experiência à qual se propõem o praticante tem como referência a figura de um homem iluminado, o Buda. Por sua vez, todos esforços desenvolvidos nessa travessia, só tomam cores e formas de fato valiosas, quando amparadas por amigos, a comunidade ou Sangha. É por meio deles que a experiência da prática se faz possível. Afinal, trilhar um grande percurso, de maneira solitária, pode ser muito doloroso. Assim, essas três grandiosas referências, o Buda, o Dharma e a Sangha, são chamadas de “As três joias e funcionam como faróis que clareiam ao longe e orientam ao longo do mar da ignorância.

Referindo-se ao Dharma, especificamente, os efeitos da prática diligente, reconhecida na figura de Buda e amparada por seu método, pode alcançar as mais diferentes esferas de nossa vida humana, não há como negar. O Dharma se mostra como um caminho pleno, exequível e transformador, não apenas para a prática da meditação, mas também para a vida cotidiana, marcada por desafios de convivências e experiências.

A vida humana comum, sob o ponto de vista do Dharma, consiste no cenário mais rico para exercício dos ensinamentos. Existir em sociedade nos transporta a condições de conduta ética e constante vigia de nossas ações, falas e pensamentos. Não há como negar nossas tendências sombrias em relações mais profundas e íntimas. Não conseguimos sustentar máscaras por muito tempo, tão pouco tolerar falseamentos. As experiências humanas são nosso maior desafio para aprimoramento espiritual, emocional, mental. Assim, como método que precisa ser experimentado, o budismo encontra nas condições de convivência um grande veículo para seu avanço e aprimoramento. Viver e conviver… aí está a fonte.

Ao apropriar-se da própria vida como ferramenta, o budismo não promete salvação pós-morte. O momento presente é a dádiva maior. Assim, uma das grandes perguntas a serem feitas, seria: como conduzir minha vida, de forma que cada pequeno instante vivido seja marcado por sabedoria e virtude?

Em sua simplicidade complexa, os ensinamentos budistas transmitidos pelo Dharma nos apontam um componente incrível, que define o fluxo da própria vida de forma dinâmica. Esse componente é o Karma que consiste em nada mais que a conhecida expressão: ação e reação. A teoria ao redor do Karma nos aponta que, todas as condições de existência são marcadas por ações pregressas que permitem a ocorrência das circunstâncias atuais. Por outro lado, nossas ações do presente, definirão reações futuras, em um ciclo completo e articulado de causas e efeitos, ações e reações. Assim, se nossas ações presentes podem determinar nossas experiências futuras, nossa necessidade de vigilância, de auto-observância, deve ser ainda mais fortalecida.

Analisar a vida como um componente dinâmico e harmonioso de causas e efeitos, pode, todavia, também fazer crescer nossa natureza de bondade e compaixão. Os frutos de nossas ações são colhidos inevitavelmente e, muitas vezes, nos perdemos em inúmeros “porquês” tentando entender aquilo que nos foge à razão. Nesse momento, a resignação, ou seja, a aceitação pacífica das circunstâncias, entendendo que nem tudo está sob nosso controle, pode ser um instrumento de liberação de dores e sofrimentos.

Aceitar as condições que não entendemos, buscando a paz e lucidez necessárias, desperta em nós uma qualidade que nos permite avançar, transpor obstáculos da própria mente limitada pela ignorância e envolta por inúmeros conflitos. Essa qualidade é a resiliência, nossa capacidade de adaptação a circunstâncias difíceis e adversas, com sabedoria, consciência clara e inteligência.

A resignação e a resiliência nos permitem alcançar novas formas de olhar o mundo, as criaturas, as coisas e todas as formas de vida. A partir dessa junção, nossa compaixão se expande, nos tornamos mais aptos e agradáveis à convivência e abrimos caminho para dar à nossa vida um novo significado. Nós podemos ressignificar.

Os três Re’s são bons exemplos do que a prática do Dharma, os estudos do caminho de Buda, são capazes de despertar em nós: resignação, ou aceitação humilde e pacífica de circunstâncias que não consigo mudar. A resiliência, ou a forma adaptada de ver a vida de maneira mais favorável e saudável, é potencializada, inclusive, pela própria resignação. E por fim, a nossa capacidade de mudar as cores do nosso espetro mental, plantar boas sementes kármicas e colher frutos de maior felicidade, a partir da Ressignificação de nossas mentes.

O Dharma foi ensinado por um ser humano para seres humanos. Receber esses ensinamentos é abrir as portas de um caminho repleto de transformações. É preciso coragem, é certo. Mas acima de tudo, é necessário um coração disposto e puro.

 

Texto de Julie Amaral. Praticante na Daissen Ji. Escola Soto Zen

 

 

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