Do que estamos dispostos a abrir mão?

 

 

“É agradável não conhecer os próprios defeitos, pois, assim, nada perturba o brilho cor-de-rosa das ilusões”. Carl Jung

 

Existe uma metáfora no Zen de uma pessoa à beira de um precipício e ela olha para trás e vê sua vida imaginária, suas frustrações, ilusões, suas construções e tudo aquilo que disseram que era importante, como seu nome, profissão e conta bancária.

Estudar o Zen é dar um passo à frente e pular no escuro desconhecido. Morrer antes de morrer. O quão fundo desejamos ir e do que estamos dispostos a abrir mão para mergulharmos de cabeça na busca espiritual?

Creio que primeiro é necessário haver uma completa insatisfação com a vida ordinária. É preciso olhar para o mundo e perceber que há alguma coisa errada com a história que nos contaram, com este faz de conta, este espetáculo fantasioso.

O tamanho desta insatisfação será colocado à prova após os primeiros meses de prática. O princípio é como o processo de início de namoro: conhecendo o professor, o ambiente, a Sangha e o Dharma e é somente após isso que iremos nos confrontar com o desafio de seguir em frente, porque seguir em frente significa ter a certeza que o mundo às nossas costas é um sonho e que estamos prontos para olhar para a parede, pelo menos algumas vezes por dia, para desvendarmos este mar de ilusões.

Assim como existe o católico não praticante, existe o zen-budista não praticante. Aquele praticante que gosta de sentar às vezes quando tem tempo, quando não está com sono, quando não é tarde demais e nem muito cedo, vai à Sangha só quando o tempo está bom, pensa que sesshins são muito duros e desconfortáveis e sempre encontra alguma justificativa para não sentar. Mais do que abrir mão do conforto, temos uma infinidade de desejos, distrações e diversões que nos puxam no sentido oposto à prática.

Frequentemente nos deparamos com pessoas reclamando que sua prática não evolui. Algumas considerações a respeito da frase “Minha prática não evolui” são necessárias. A primeira é a palavra evolui. O que significa exatamente evoluir? Em nossa sociedade e no modo como ela foi construída, existe uma régua, uma forma de medir a “evolução” das pessoas, sejam elas estudantes, estagiários, empresários, vendedores ou mesmo buscadores espirituais. É como se estivéssemos nos deslocando, no campo do conhecimento, do ponto A para o ponto B.

Temos que entender que não estamos indo a lugar algum, não existe um “lugar” melhor aonde chegar, assim como não existe um alguém melhor para se tornar. O lugar sempre foi e sempre será este; nunca saímos ou sairemos daqui e a pessoa melhor que nos forçam a acreditar que possamos ser, não passa de mais uma construção, mais uma ilusão. Nós já estamos onde deveríamos estar e já somos quem deveríamos ser.

A questão é que com os olhos da ignorância não enxergamos. Fomos ensinados a perseguir uma evolução que só existe neste mundo de faz de conta e os pais se orgulham e sentem-se felizes porque o filho tirou boas notas e ficou em primeiro lugar na escola, porque conseguiu um grande estágio em uma empresa ou foi chamado para compor um grupo seleto de grandes mentes científicas. Mas qual o real sentido disso? O quão fundo desejamos ir para descobrir quem somos? Do que estamos dispostos a abrir mão?

Jung dizia que é agradável não conhecer os próprios defeitos, pois, assim, nada perturba o brilho cor-de-rosa das ilusões. É tão gostoso, não é? Os prazeres diversos, o sexo, os doces, as festas, o reconhecimento, as honras, o poder e as drogas, mas não só isso. Há quem se vicie e goste das brigas, das discussões, das agressões e da violência.

Olhar para isso tudo e aceitar que é apenas parte de um jogo ou de uma peça de teatro, uma representação, é fundamental para a busca de respostas. Feita esta descoberta vem então o hercúleo trabalho que é resolver abrir mão e dedicar-se profundamente ao caminho espiritual, seja ele qual for, pois é muito difícil servir a dois deuses.

Não existe um caminho fácil. Não existem cursos de final de semana com iluminação garantida. Não existe despertar sem horas e mais horas de treinamento no zafu. Sentar apenas nos sesshins não garante clareza. Sentar-se apenas uma vez por semana ou alguns minutos por dia também não abre nossas mentes, isso é como sentarmo-nos à beira do rio e lavarmos apenas as mãos. Não ficaremos limpos. É preciso mergulhar o corpo inteiro e ir tirando, como quem descasca uma cebola e separa as diversas camadas, os véus da ilusão.

Podemos praticar somente quando o tempo estiver bom, nem muito quente ou nem muito frio. Podemos praticar apenas quando não for tarde e estivemos cansados. Podemos praticar apenas saciados e sem fome. Podemos praticar apenas quando o corpo não estiver com dor. Podemos praticar somente quando não houver uma festa ou diversão. Podemos praticar apenas quando for confortável e gostoso ou podemos nos sentar com o desconforto e aprender com ele. No Aikido costumamos dizer que sair de casa para treinar com um dia bonito de sol é muito fácil, mas que quando saímos de casa com chuva, frio e sem carro ou qualquer comodidade, aí está o verdadeiro treino, aí existe o verdadeiro mérito. Mesmo que cheguemos ao Dôjô e o encontremos de portas fechadas, o treino foi realizado. Movemo-nos e respondemos ao chamado de nosso mestre interior e não nos deixamos vencer pela preguiça ou regalo.

A frase do primeiro parágrafo, “Morrer antes de morrer” significa responder a questão “Quem somos nós” antes que nossa manifestação se finde. Morrer para quem pensamos que somos e abandonarmos as ilusões e construções desta vida fictícia e passageira. Abandonar corpo e mente, em japonês Shinjindatsuraku, exige um grande esforço e o entendimento de que nada neste mundo corresponde à realidade ou a quem somos. E dar as costas para isso é condição sine quo non para o despertar.

Nada neste mundo nos diz respeito, nenhuma história é sobre nós ou sobre quem somos. O cosmos e tudo que nele existe não existe por nós ou para nós. Mas por ser tão gostoso e divertido e nos trazer poder e prazer, nos apegamos e temos dificuldade em ir fundo na prática. Nossa vida efêmera e insignificante tem a duração de um flash e acreditarmos nela e nos apegarmos é o maior desperdício de tempo que podemos praticar.

 

Texto de Monge Chûdô. Monge na Daissen Ji. Escola Soto Zen.

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