Disciplina

 

“Quando Alice estava tomando chá com o Chapeleiro Louco, ela notou que não havia geleia. Pediu, então, geleia e ele disse: ‘A geleia é servida dia sim, dia não’. Alice reclamou: ‘Mas ontem também não havia geleia!’. ‘Isso mesmo’ respondeu o Chapeleiro Louco. ‘A regra é essa: geleia sempre ontem e geleia amanhã, nunca geleia hoje, porque hoje não é ontem nem amanhã”.

 

Tenho um colega, também psicólogo, que sempre diz “a disciplina é tudo o que temos”. Claro que essa afirmação é hiperbólica propositalmente, mas sempre foi algo em que vi muita virtude.

Não é incomum encontrar pessoas que acreditam que ter uma disciplina ímpar pode tornar a vida chata ou até mesmo robótica de alguma maneira. Mas será que é possível alcançar uma vida significativa e desperta sem disciplina?

No Budismo encontrei disciplina em todos os lugares. Disciplina para meditar, acordar cedo, trabalhar, descansar, praticar e em toda situação na qual você possa imaginar. O ato de sentar-se em zazen é envolto de disciplina: temos que manter a postura correta, a mente correta e não nos levantamos, independentemente do que aconteça até o sino bater novamente.

Se pararmos para pensar realmente não faríamos nada sem disciplina, pois disciplina é também sinônimo de ter energia quando pensamos em saúde mental e psicológica. Existe um modelo de terapia denominada “Ativação Comportamental” com extensa pesquisa e evidência como um dos tratamentos mais eficazes para indivíduos que sofrem com quadros depressivos, e é toda baseada na disciplina. Nesse caso, disciplina pode ser um tipo de remédio amargo que tomamos para conseguir viver uma vida comedida, moderada e que valorizamos.

Nesse modelo não esperamos, pensamos ou tentamos encontrar situações favoráveis para fazer o que precisa ser feito, a ordem é inversa. Ou seja, fazemos as atividades que precisam ser feitas justamente para que tenhamos pensamentos, motivação e situações mais favoráveis em nossas vidas. E geralmente isso funciona muito bem, pois na verdade são as nossas ações que refletem em nossa mente, pois essa dualidade entre mente e corpo não é tão separada assim como se pensa no cotidiano.

Isso não significa que é possível fazer tudo com perfeição e basta ter força de vontade. A ideia é justamente que é possível conseguir força de vontade pelas nossas ações. Pessoalmente, sempre considerei disciplina uma questão de exercitar o karma no cotidiano. Acordar cedo, trabalhar e fazer as demais atividades que são importantes são ações que geram resultados e isso pode levar qualquer pessoa para uma vida mais equilibrada e com tranquilidade.

É claro que nem tudo são flores, a disciplina exige o esforço apropriado. É por esse motivo que não podemos nos apegar às razões que nossa mente cria para nos estacionar em uma posição de conforto e inércia. Qualquer pessoa que tenha tentado criar hábitos já encontrou vários motivos para não precisar fazer o que precisa. Não é incomum deixarmos nossos compromissos para amanhã, ou que não acordamos na hora que precisávamos, pois é realmente muito difícil tal feito. A verdade é que a nossa mente coleciona motivos para qualquer coisa, cria justificativas e sempre nos engana. É por esse motivo que o apego é uma grande armadilha e raiz de muitos sofrimentos.

Que tal deixarmos de viver amanhã e ontem para vivermos hoje?

 

Texto de Renato Oliveira, psicólogo e terapeuta clínico. Praticante na Daissen Ji. Escola Soto Zen.

 

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