Comunicação Não-Violenta Como Alternativa à Comunicação Competitiva

A girafa transformou-se no símbolo da Comunicação Não-Violenta porque ela é o mamífero que tem o maior coração (para conseguir bombear sangue até a cabeça). A CNV requer uma postura amorosa, com abertura, de coração para coração. Foto: Andreas Goellner/Pixa Bay

 

A Comunicação Não Violenta pode ser efetivamente aplicada em todos os níveis de comunicação e em diversas situações: relações íntimas, famílias, escolas, organizações e instituições, terapia e aconselhamento, negociações diplomáticas e comerciais, disputas e conflitos de qualquer natureza.

Marshall B. Rosenberg

Em várias de suas palestras o Monge Genshô enfatiza a influência do Zen Budismo em diferentes matizes da cultura e de costumes já incrustrados no Ocidente, muito embora parte das pessoas permaneça alienada das raízes históricas de muitos destes hábitos. Isso ocorre tanto em movimentos como o minimalismo, passando pelo Mindfulness (Atenção Plena) e por artes marciais diversas, até no modo como nos comunicamos.

Dentre as áreas da Ciência que se destacam na experimentação e lançamento de constructos baseados nos valores zen budistas encontram-se a Psicologia e a Neurologia. Não por menos os protocolos baseados em Atenção Plena (o cientista Jon Kabat-Zinn foi praticante do Zen), Comunicação Não-Violenta (Marshall Rosenberg bebeu da fonte budista indiana) e Terapia Focada na Compaixão (os psicólogos Paul Gilbert e Kristin Neff não escondem de ninguém a influência do Budismo em geral e do Zen, em particular, em suas teorias e constructos) são todos claramente validações de práticas japonesas milenares, frutos de séculos de influência budista no país do extremo Oriente.

Neste texto irei explanar uma destas vertentes, a Comunicação Não-Violenta (CNV), cuja aplicação de protocolos cresce de forma exponencial na Psicologia, na Educação e na Justiça brasileira. Mais do que um conjunto de técnicas, a Comunicação Não-Violenta tornou-se um poderoso estilo de vida que instrumentaliza as pessoas a (inter)agirem de forma mais autêntica, a partir do princípio da transparência e da empatia, o que de início já nos faz lembrar o preceito budista da Fala Correta.

O principal sistematizador da CNV foi o psicólogo estadunidense Marshall Bertram Rosenberg, que entre as décadas de 60 e 90 se dedicou a pesquisar e aplicar as técnicas em cenários desafiadores, as quais exigiam perícia comunicacional para evitar ampliação de conflitos e, em vários casos, dirimir controvérsias, além de estabelecer diálogos construtivos e assertivos. Ele foi um dos mais proeminentes cientistas em defesa da cultura de paz, da difusão da empatia e da compaixão.

A CNV parte do pressuposto de que, “no cerne de toda a raiva há uma necessidade que não está sendo satisfeita”…, ou seja, “a violência vem da crença de que as outras pessoas causam a nossa dor e, portanto, merecem punição” (ROSENBERG, 2006). Esta distorção faz com que estabeleçamos relações baseadas nos julgamentos e no medo, o que acaba reverberando numa série de mal-entendidos e agressões verbais e, em casos mais dramáticos, em violência física.

No Zen Budismo esta é uma das ilusões mais básicas, que está no cerne do sofrimento humano. Sendo que a diligência na prática do Zazen – e a observação das Paramitas – é um dos antídotos para evitar ser “sequestrado” por tais distorções.

A empatia é uma condição natural, já nasce conosco, e está na base da Comunicação Não-Violenta. Foto: Pixabay

 Na prática, Rosenberg nos convida a olhar para o nosso interior todas as vezes que nos sentirmos rejeitados ou injustiçados. E antes que possamos desferir uma narrativa reativa ou virulenta, tentar compreender quais foram as nossas necessidades não satisfeitas diante de um dado cenário comunicacional.

Por exemplo, se ficamos chateados quando alguém nos comunica que não gostou de nossa roupa, em vez de reagirmos inconscientemente e reativamente, podemos apenas observar tal incidência – sem julgar a pessoa que falou isso – e identificar qual necessidade nossa não foi atendida diante deste fato (será que nossa necessidade de ser reconhecido foi atendida?). Claro, do ponto de vista do Zen isso ocorre por causa da crença em um eu intrínseco, separado, e que, portanto, pode ser alvo da incompreensão dos outros.

Treinar a nossa mente no sentido de sairmos do centro das projeções é uma estratégia bastante eficaz de cortar a ilusão do eu. Este movimento, por si só, evita que nos tornemos alvo das projeções de terceiros ou, o pior, que caiamos na “tentação” de projetar nos outros aspectos mal resolvidos em nós mesmos (FROMM, 2000).

Gostar da pessoa pelo que ela é, deixando de lado as expectativas do que quero que ela seja, deixando de lado meu desejo de adaptá-la às minhas necessidades, é uma maneira muito mais difícil, porém mais enriquecedora de viver uma relação íntima satisfatória.

Carl Rogers

Isto requer que saibamos diferenciar as observações fenomenológicas dos juízos de valor1, para que seja possível identificar tanto as reivindicações por trás das narrativas que soam agressivas, quanto as nossas reações ressentidas diante de tais investidas.

Neste cenário desafiador, Rosenberg nos convida, então, a superar os julgamentos e seguir rumo a uma comunicação de coração para coração (compassiva). Como isso se dá? Com o forte desejo de distinguir os sentimentos (mais íntimos e sutis) das opiniões (que tendem a ser mais parciais e, logo, mal interpretadas).

A capacidade de se colocar no lugar do outro, e de entender as necessidades por trás dos processos comunicativos, requer abertura do coração. Foto: Pixabay

Estes sentimentos que eclodem diante dos processos comunicacionais enviesados sempre apontam para necessidades não atendidas. De acordo com Rosenberg, as necessidades podem ser identificadas se conseguirmos percebê-las como universais, ou seja, são comuns a toda a espécie humana, como por exemplo a necessidade de segurança, de amar e ser amado, necessidade de pertencer a um grupo etc.

Quando fico chateado porque um amigo criticou a cor da minha roupa, provavelmente me sinto frustrado e a necessidade de ser aceito não foi atendida. Apenas quando assumimos os nossos sentimentos e necessidades, é que podemos comunicá-los para o interlocutor, convidando-o a compreender nosso ponto de vista.

As análises que fazemos dos outros são, na verdade, expressão das nossas próprias necessidades e dos nossos próprios valores.

Marshall B. Rosenberg

Esta tarefa não é fácil, sobretudo porque culturalmente estamos imersos numa lógica competitiva, excessivamente baseada no desempenho, e a Comunicação Não-Violenta é calcada essencialmente em pressupostos colaborativos. É preciso, portanto, tentar negociar partes que parecem irreconciliáveis num modelo existencial excessivamente racional: Logos e Eros2. Em súmula, há de se abrir um espaço para narrativas que não contemplem apenas os discursos lógicos, mas aqueles que nascem do coração.

No Zen, isso ocorre a partir das frases paradoxais. Tais expedientes nos convidam a abandonar a mente racional e acessar outro local que não pode ser explicado, apenas sentido. Quanto a isso, Monge Genshô inclusive costuma alertar para a importância do silêncio.

Sobre este assunto, Carl Jung já havia apontado que “onde o amor impera, não há desejo de poder; e onde o poder predomina, há falta de amor. Um é a sombra do outro”… Na mesma medida, o psiquiatra suíço alertou que “sua visão se tornará clara somente quando você olhar para dentro do seu coração. Quem olha para fora, sonha. Quem olha para dentro, acorda” (JUNG, 1964).

O alerta junguiano, que reverbera em cheio com os pressupostos zen budistas e humanistas da CNV, parte do pressuposto de que narrativas polarizadas e excessivamente racionais – afiadas como uma lança – nos privam de estabelecer relações mais autênticas e, quase sempre, apontam para uma lógica vertical (que resulta em hierarquia e poder). É preciso, portanto, um desdobrar-se para que seja possível criar um campo de empatia e de não dualidade.

Ser empático é ver o mundo com os olhos do outro e não ver o nosso mundo refletido nos olhos dele.

Carl Rogers

Quando não julgamos e passamos a entender nossos sentimentos e necessidades, conhecemos melhor a nós mesmos e abrimos um espaço para relações mais autênticas e gentis. Foto: Jill Wellington/Pixa Bay

 

Fica claro, neste sentido, que a Comunicação Não-Violenta prima por maior abertura para a construção de um diálogo horizontalizado (onde todas as vozes possam ser igualmente ouvidas), e que os ruídos comunicacionais que resultam em violência, quase sempre, são fruto de uma lógica cultural predominante.

A CNV nos convida a começar a “assumir que somos todos compassivos por natureza e que estratégias violentas – verbais ou físicas – são aprendidas, ensinadas e apoiadas pela cultura dominante” (ROSENBERG, 2006).

Esta posição favorece um olhar mais compassivo tanto conosco, quanto com as demais pessoas à nossa volta. A tarefa não é fácil, ela requer atenção e treino diário. Mas certamente, se colocada em prática aos poucos, garante uma vida mais autêntica e compassiva.

Sobre isso, Monge Genshô observa que a compaixão depende do esquecimento de nosso próprio ego. “As pessoas têm um eu que, normalmente, nas mais primitivas pessoas, termina na sua pele. Tais pessoas cospem e jogam lixo no chão porque não enxergam que o mundo vai além de sua pele”. Então, a Comunicação Não-Violenta, em muito, depende desta capacidade de colocarmos em xeque a nossa crença num eu separado. Esta é, inclusive, uma das tônicas principais do Zen. Não é uma tarefa fácil, mas é necessária – e urgente.

 

Texto de Sonielson Kido. Jornalista, psicólogo, professor e praticante na Daissen Ji. Escola Soto Zen.

 

Referências

FROMM, Erich. A arte de amar. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

HUSSERL, E. Fenomenologia e psicologia. Napoli: Filema Edizioni, 2007.

JUNG, Carl G. Mysterium Coniunctionis. 2ª edição. Petrópolis: Vozes 1988.

___________. O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1964.

ROGERS, Carl R. Tornar-se Pessoa.5aed. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

ROSENBERG, Marshall B. Comunicação não violenta. Técnicas para aprimorar relacionamentos pessoais e profissionais 1 ed. São Paulo: Summus, 2006.

 

Notas

1 – Juízos de valor quando confundimos as nossas opiniões (baseadas em crenças pessoais) com o fato fenomenológico em si. Um exemplo: se alguém me diz que estou diferente, o fato fenomenológico em si apenas se restringe a isso, ou seja, “fulano me achou diferente”. Mas, imbuído de juízo de valor ou de uma distorção do fato, posso pensar que “fulano me achou diferente porque estou feio. Logo, fulano não gosta de mim”. O ideal, nestes casos, é usar a “Epoché”, ou seja, a suspensão do juízo de valor e procurar entender as causas que levaram a pessoa a me considerar diferente a partir do olhar dela (HUSSERL, 2007).

2 – Eros e Logos, em Psicologia Analítica, são opostos que se complementam. Sendo Eros ligado ao princípio do sentimento e do amor (não necessariamente o amor romântico, mas àquele que nutre e que cuida) e Logos associado aos aspectos racionais, necessário para que ocorram as diferenciações lógicas (bem e mal, certo e errado etc.). O ocidente optou sistematicamente pela predominância de Logos em detrimento de Eros (simbolicamente ligado à dimensão do feminino), o que causou uma polarização psíquica e excesso de racionalismo e legalismo, em detrimento de outros atributos igualmente importantes, como o cuidado e a empatia. O objetivo é que estes opostos se complementem, numa dinâmica de compensação, em que cada pessoa deve encontrar a sua justa medida (JUNG, 1988).

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