No caminho para entender os ensinamentos de Buddha, vamos vendo e revendo textos preciosos. São um mergulho na vida de Siddharta Gautama, sua motivação, suas dúvidas e sua jornada até o despertar. Depois disso, sua decisão de transmitir esses ensinamentos aos discípulos diretos, geração após geração de monges iluminados, tudo chega até nós.
Entre tantos ensinamentos, os que explicam a existência têm um lugar de destaque. O Budismo nos ensina que a existência tem três características: anicca, anatta e dukka. Na minha condição de leigo, sinto-me estimulado a realizar minhas próprias reflexões sobre conceitos tão profundos.
Anicca, podemos compreender como a impermanência. Ou seja, todas as coisas que existem são impermanentes. “Tudo muda o tempo todo no mundo”, como diz a letra de Lulu Santos. Apesar de racionalmente compreendermos essa impermanência, vivemos como se tudo fosse se manter exatamente como está e para sempre; assim, reagimos quando qualquer coisa se altera. Seja um dia que faz mais calor do que gostaríamos, ou um dia que chove além da quantidade que acreditamos que seria a melhor. Realmente seria muito difícil – para não dizer impossível – se “as forças da natureza” agissem conforme o desejo de cada pessoa.
Anatta significa não eu. De forma a não haver nada estável, permanente, dentro de nós. Nada tem uma “alma” própria e duradoura. Nem o ventilador aqui do meu lado, nem eu mesmo. Sensei Genshō sempre nos diz que esse é um conceito difícil e eu concordo inteiramente com ele – para mim, muito difícil. Apesar de achar que entendo o que significa, fui educado em uma família católica, então, aprendi desde cedo que nossa essência seria eterna, nossa “alma”.
No Budismo é diferente. E me recordo que quando comecei a estudar ecologia, compreendi que os seres vivos e também, por extensão, os minerais, só existem em relação uns com os outros. Como na relação entre animais e plantas, na qual uns absorvem oxigênio e liberam gás carbônico, enquanto as plantas absorvem o gás carbônico e liberam oxigênio. Ou seja, esses dois reinos, animal e vegetal, da vida, não teriam um eu independente, já que inexistiriam se não houvesse o outro reino – sem falar nos minerais que, na verdade, circulam no interior tanto de animais quanto de plantas.
Compreendo que o conceito de anatta se aplica também quando penso na natureza como um todo. O mar. Que só existe como o conhecemos porque existe a terra que o limita e lhe dá forma.
Nossa verdadeira natureza é sermos um com todos os seres, compreendendo que estamos todos conectados em um único universo. A ideia de uma rede onde cada nó representa um ser, ou elemento e todos se sustentam e se relacionam, é uma imagem que compreendo e em muitos momentos senti sua existência.
Dukkha, esse terceiro aspecto presente na existência, significa que a vida é insatisfatória, no sentido de ser cíclica. Temos sempre altos e baixos. Alegria e tristeza, amor e separação, riqueza e pobreza, saúde e doença. O que ocorre é que nós nos apegamos às situações “boas” e temos aversão às situações “ruins”. O apego e a aversão levam à insatisfação que leva ao sofrimento humano. Mas na realidade a vida em sua plenitude é o conjunto dessas situações. Essa compreensão sobre a vida é básica para que possamos aceitá-la como é.
Nossa mente muitas vezes nos aprisiona fazendo com que fiquemos buscando uma explicação para os acontecimentos da vida. Podemos nos libertar dessa armadilha se aceitamos a vida tal como é; sabendo que ela tem momentos maravilhosos, de felicidade e alegria e, tem também momentos de tristeza, sofrimento e dor. Não sendo, portanto, nem só uma coisa nem só a outra.
A interconexão entre essas três marcas da existência faz com que minha percepção sobre a existência seja reformulada considerando que as três características: anicca, anatta e dukkha atuam sempre simultaneamente. As três se inter-relacionam para nos dar uma visão budista da vida e uma compreensão do todo, que no fundo constitui esse universo do qual somos parte.
A interconexão de todas as coisas, de todos os seres – incluindo nós humanos – é que constitui a vida que sempre permanece. A vida de qualquer indivíduo perde importância, porque na verdade, o indivíduo não tem vida isolada da vida do universo todo. Como nos ensina Genshō Sensei, cada um de nós é o próprio universo.
Escrever sobre ensinamentos profundos e fundamentais sobre a existência é um grande desafio, especialmente para mim que recém-iniciei esta caminhada. Fico muito feliz de começar a compreender essas três características fundamentais que sustentam o entendimento sobre a vida na visão budista. Percebo como se fossem três pés de um banquinho, que sustentam uma pessoa com simplicidade, conforto e estabilidade. E que, na ausência de um deles, nos faria cair do banquinho no chão duro.
Ter estudado a relação entre os seres humanos e todos os demais seres e elementos constituintes do nosso ecossistema – e que permitem a existência de vida no planeta Terra – é uma boa base para compreender quanto é real e preciosa a visão budista da vida e, como em cada ponto da realidade, podemos ver e sentir nossa conexão com tudo que existe e com todos os seres.
Atualmente se evidencia uma crise climática e ambiental sem precedentes, provocada pela ação dos humanos. Compreender nossa interconexão com a terra e com todos os seres, como nos ensina o budismo é, sem dúvida, uma necessidade, para que possamos agir de forma a preservar a vida de todos os seres, neste maravilhoso planeta.
Texto de Edson Diogo. Praticante na Comunidade Zen-Budista Daissen. Escola Soto Zen
