Butoh e a Arte da Presença

 

Butoh 舞踏 é uma dança de origem japonesa que nasceu no pós-guerra, quando o Japão estava recebendo a invasão cultural do ocidente (provavelmente em 1959). Sendo uma das expressões de vanguarda naquele período, traz, contudo, a marca da confluência entre os pensamentos artísticos ocidentais e orientais. E, desta forma, sem delimitações estéticas.

Tornou-se mais conhecida e passou a assumir posição no cenário mundial das artes a partir da década de 70. Tatsumi Hijikata (1928-1986) e Kazuo Ohno (1906-2010) são conhecidos como os precursores dessa arte considerada subversiva. (Talvez aqui resida um dos fatos muito interessantes do Butoh.)

Não foi em palcos, nem em dojos ou escolas de dança que o Butô teve seu berço. Cabarés, boates, bares e as ruas do submundo japonês ofereceram morada à uma forma de arte performática que ficou conhecida nessa época como Ankoku Butoh 暗黒舞踏 (Dança das Trevas). Possivelmente, a imagem que vem à mente até hoje, inicialmente, é de uma dança com ritmo lento e denso realizada por artistas magros em uma espécie de contorcionismo obscuro.

Porém, muito distante de ser uma ode à escuridão, o Butoh traz em suas veias a alma do povo japonês da maneira mais sutil: através da estética do wabi sabi. A simplicidade, o rústico, o profundo, o abismal no existir humano onde a natureza se reflete e se abre como parte de um todo nele próprio, tão somente. Kazuo Ohno dizia que “o belo continua até a eternidade. Há um existir infinito.” Para além da dualidade, o dançarino transcende a forma e o tempo em uma “experiência pura”. Rompe os espaços. Une as diferenças. Mergulha em “MA” 間.

Essa característica, que assume para nós ocidentais a aparência inicial de tranquilidade, é descrita de forma muito interessante pelo estudante do Zen, o psiquiatra e diplomata alemão, Karlfried Gräf Durckheim, como o “caminho da maturidade”. Sendo que, antagonicamente, há uma vida “irreal enquanto o homem está perturbado pela tensão entre o sujeito e objeto, em seu âmbito mental.” Algo semelhante é dito por Kazuo Ohno: “O único movimento que tem significado é aquele que deriva da alma”.

De fato, o Butoh se expressa através do silêncio e movimentos comedidos, tais como um dedo apontando à uma direção, caminhada lenta com um ou poucos passos, e talvez um olhar. Não há desperdícios. O espaço ocupado pelo dançarino é quase sempre reduzido a não mais que dois ou três metros. Assim, o espectador é convidado a realizar um mergulho dentro das sensações, como a angústia, e ir ao encontro do silêncio. Kazuo Ohno explica belamente o sentido disso quando fala de nossas experiências interiores. “As feridas do nosso corpo fecham e se curam, mas existem as feridas escondidas, aquelas do coração. Se você souber aceitá-las descobrirá a dor e o prazer que são impossíveis expressar com palavras. Você encontrará a realidade poética que só o corpo pode expressar”.

Em muitos sentidos, o Butoh se assemelha à prática do Zen. Uma parte importante da prática está na imobilidade corporal, como ocorre no zazen, ou em caminhadas comedidas, como no kinhin. No Zen praticamos o não-desperdício de nossos recursos. O aproveitamento consciente do tempo. A abertura para tudo aquilo que não se refere à si próprio. Em sua experiência com os mestres do Zen, o Dr Durckheim percebe que “cada gesto, tão evidente e livre [é] como o voo de um pássaro a elevar-se, a brincar. Cada ação é rápida e precisa: só o que é necessário, e nada mais! Buscar água quando há um incêndio, e nada mais! Comer quando se tem fome, e nada mais! Dormir quando se tem sono, e nada mais! Escrever quando se escreve, e nada mais! Tudo isso com uma presença plena, bem lúcida, sem a menor interferência de outro pensamento ou de outra ação. Nenhum apego, mas deixando a vida fluir, brotando do centro, tão livre e leve como um bater de asas, seguro do rumo como uma flecha que acerta no meio do alvo, ligeira como o passo de um dançarino.

Podemos de alguma forma resumir todas essas palavras com o verso do Shodoka que diz:

Caminhar é Zen,

Sentar também é Zen.

Se falo, se calo,

Repouso ou me apresso:

Tudo, em essência,

É imobilidade.”

(Tradução de Karlfried Gräf Durckheim)

 

Para Kazuo Ohno, a criação do Butoh estava relacionada à força “um sentimento de gratidão”, tal como deveria ser para todos os seres humanos. “Na minha dança eu nunca me preocupei em saber se o que eu criava era ou não era Butoh, só pensava em fazer algo bom. Entretanto, nunca estive satisfeito com minha dança. Eu danço movido por um sentimento de gratidão. O que me interessa é que o Homem, com este corpo tão pequeno, contém todos os elementos do Universo dentro de si. Para mim, se eu não puder dançar esse homem, se não houver essa forma de dançar, não haverá sentido em dançar.”

 

Texto de Hélio Jinke, monge Zen Budista, gestalt-terapeuta e discípulo de Monja Isshin Havens Sensei, Jisui Zendô.

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