A cultura do caqui

Este pode parecer um tópico um pouco inusitado, mas a fruta que nós brasileiros conhecemos como caqui tem sua origem no Sul da Ásia e, particularmente, no Japão, possui uma história cativante de se ouvir. Você que gosta de comer caqui, já pensou sobre o que essa fruta tem para contar e, talvez mais surpreendente ainda, o que ela pode nos ensinar sobre a prática budista? Vamos explorar esse tópico.

O nome dessa fruta no Brasil vem diretamente do japonês, kaki (柿). E isso não é à toa, foram imigrantes japoneses que a trouxeram para cá em 1916. Hoje, é muito produzida no estado de São Paulo e no sul do país, por se dar bem em climas mais temperados. A terra brasileira já tinha seus caquis, variantes da família Ebenaceae, mas os que tínhamos aqui eram adstringentes, ou seja, não eram muito prazerosos de se comer, porque “amarravam” a boca. A variedade japonesa é a fruta doce que conhecemos e apreciamos hoje.

E isto é o interessante sobre a história dessa fruta. Foi em terras japonesas que o primeiro caqui não adstringente surgiu, durante o período Kamakura (anos 1185-1333). A variedade Zenjimaru foi o primeiro caqui do mundo a nascer doce na árvore. Antes dele, todo tipo de caqui, e existem muitos, eram adstringentes. Os primeiros caquis doces foram motivo de comemoração e eram oferecidos como tributo aos xoguns, os líderes militares do Japão antigo. Por um tempo, a fruta foi motivo de muitos contos folclóricos e investidas poéticas, como esse famoso haicai do poeta Shiki Masaoka:

Mordendo um caqui

Um sino ressoa

Hōryū-ji

 

Conta a história que o poeta escreveu o haicai durante sua estadia em uma muito famosa estalagem japonesa. Uma bela servente tinha acabado de colher o caqui e oferecê-lo, e, quando ele mordeu, no exato momento o sino de um templo próximo, Hōryū-ji, tocou.

Mas o que isso tem a ver com budismo? Kosho Uchiyama, um mestre Zen da escola Sotoshu, discípulo do famoso mestre Kodo Sawaki, utiliza a metáfora do caqui de uma forma muito bela e certeira na hora de ensinar sobre os alicerces do caminho budista, nos ensinando paciência, constância e respeito na nossa caminhada. Ele escreve, logo nas primeiras páginas de seu livro “Opening the Hand of Thought”, na tradução livre, Abrindo Mão do Pensamento:

“O caqui é uma fruta estranha. Se você o comer antes de amadurecer completamente, o gosto é horrível. Sua qualidade adstringente faz sua boca amarrar. Na verdade, é impossível comê-lo verde, se você tentar, teria que simplesmente cuspí-lo todo fora. A prática budista é assim também: se você não a deixa amadurecer bem, não pode nutrir sua vida. Por isso eu tenho a esperança de que as pessoas vão começar a praticar e continuar até que sua prática fique realmente madura” (Uchiyama, 2004, p. 1).

O mestre continua contando um pouco da história sobre a fruta que começamos a conhecer. Como ele aponta, é impossível plantar um caqui doce direto da semente de frutas de um caquizeiro doce. Simplesmente, não funciona, as frutas nascem adstringentes. Para conseguir caquis doces, você precisa pegar um galho de uma árvore doce madura, e enxertá-la em uma árvore adstringente.

Como falamos anteriormente, até Zenjimaru, não existia caqui doce. Como Uchiyama explica, uma árvore adstringente precisa ter centenas de anos de vida antes de produzir um galho doce. Ele continua:

De certa forma, o Budismo e nossas vidas são idênticos a esse processo. Se você deixar a humanidade como é, possui uma qualidade adstringente, não importa a parte do país ou do mundo que você observar. Aconteceu, porém, que milhares de anos atrás, na Índia, na cultura daquela época, um caqui doce surgiu; o budismo. Ou, mais precisamente, nasceu Shakyamuni Buddha, como um galho em uma árvore adstringente que depois de muitos, muitos anos, finalmente cultiva frutas doces. Depois de um tempo, o galho foi cortado e enxertado em uma árvore chinesa adstringente, depois, um galho doce foi plantado no país barbárico que era o Japão. Mais recentemente, galhos dessas árvores asiáticas foram enxertadas em árvores no solo americano (Uchiyama, 2004, p. 2)”.

Para o mestre, esse processo significa o adocicar de uma cultura pela prática e o cultivo do budismo. No entanto, ele diz, funciona da exata mesma forma em nós, individualmente. A prática é como o enxerto de um galho doce em uma árvore originalmente adstringente, que somos nós. Por isso, ele adverte, nós devemos ter calma, e cultivar está árvore e seu galho doce, generosamente enxertado pelo mestre que o trouxe até nós, de forma que um dia possamos colher seus frutos.

Por um tempo, a qualidade adstringente pode permanecer; alguns frutos podem sair mais doces, outros menos. Mas a mensagem de Uchiyama é clara: vale a pena continuarmos até termos a oportunidade de, assim como o poeta Shiki Masaoka, mordemos o caqui e sermos tomados pela surpresa de sua verdadeira doçura.

 

Texto escrito por Matheus Anshin, comunidade zen budista Daissen.

 

Fontes:

Kosho Uchiyama, Opening the Hand of Thought, 2004. Todos os trechos foram traduzidos livremente.

Caqui, Wikipédia, a enciclopédia livre. https://pt.wikipedia.org/wiki/Caqui

Persimmon: The fruit of the Gods. https://artsandculture.google.com/story/persimmon-the-fruit-of-the-gods-ministry-of-agriculture-forestry-and-fisheries/nQWBAlTQQNVFIA?hl=en

Imagem: https://unsplash.com/pt-br/fotografias/Al0geA4zDqw

 

 

 

 

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